● Assunto: o percurso do Homem, desde
o momento em que “o mundo era mais
nosso cada dia” até ao momento em que “se apagaram os deuses”,
isto é, desde a primitiva cultura grega, considerada perfeita, até à sua destruição,
possivelmente pelo império romano na fase mais decadente ou, de uma maneira
mais geral, desde a idade de ouro até aos nossos dias.
● Tema:
o apelo para a recuperação da cultura grega ou do seu espírito.
● Estrutura
interna
▪
1.ª parte (vv. 1-6) – A vitória da luz sobre as trevas.
A conquista da liberdade e o fim da
dominação persa deu aos gregos a alegria e o reencontro da luz. A vitória
contra o império opressor restituiu a pureza da cidade. Nas ilhas e no mar Egeu
reapareceu o sorriso, a claridade e a alegria.
Homero (símbolo da poesia) fez
florir sobre o mar o roxo, cor que simboliza o equilíbrio entre a terra e o
céu, os sentidos e o espírito, o amor e a sabedoria, enquanto Kouros avançou um
passo, símbolo do avanço da perfeição da humanidade; por seu lado, a palidez de
Atena, deusa do pensamento, das artes, das ciências e das indústrias, “cintilou”.
A isto acresce que os deuses venceram
os monstros e os persas foram derrotados. Todos estes dados, nomeadamente este
da vitória sobre os monstros, simbolizam o banimento da ignorância, da cegueira
e da violência. Alegoricamente, a vitória dos deuses significa que o ser
humano encontrou a sua verdadeira dimensão, conquistando o espírito olímpico da
harmonia e da estética.
▪
2.ª parte (vv. 7-15) – O canto da vitória da luz sobre as trevas.
A treva foi sacrificada em grandes
pátios brancos. A luz simboliza o fim das trevas, a harmonia e o caos, o
encontro do mundo “mais nosso cada
dia”.
A este domínio da cor branca, símbolo da perfeição divina e da criação,
junta-se o coro das vozes da vitória que purificou a cidade e a nudez do corpo,
símbolo de uma nova criação, que permite encontrar a “medida exacta”, pois o nu traduz, não só a
beleza artística, mas a verdadeira, a autêntica e objectiva dimensão do ser
humano e a proporção dos seus membros. Esta estrofe (quarta) mostra como a
alegria foi contagiante e como a claridade, o encontro do cosmos, trouxe a “medida exacta” do ser humano.
Os resultados práticos dessa
transformação encontram-se tipificados nas colunas de Sunion e passam pela
união dos homens e das coisas. Ora, as colunas de Sunion – templo de Posídon,
deus grego do mar – são o primeiro sinal de terra firme quando os nautas se
aproximam do continente grego a partir das ilhas do mar Egeu; além disso, como
em todos os templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
▪
3.ª parte (vv. 16-23) – A derrota dos deuses.
Os “antigos deuses sol interior das coisas” apagaram-se e as
trevas dominaram novamente. Os deuses abandonaram, de novo, o homem e ele
perdeu a sua luz interior. A cultura clássica antiga apagou-se e o vazio
instalou-se entre os homens e as coisas e gerou a separação. A Sibila
profetizou, então, aos mensageiros de Juliano (Flávio Cláudio Juliano, o
Apóstata, imperador romano entre 361 e 363, tentou restaurar o paganismo, mas
morreu numa campanha contra os persas, o que foi interpretado como castigo de
Deus) que as trevas e a destruição voltariam, pois Febo (Apolo, entre os
romanos, deus do sol, da luz, das artes, da música e da poesia) deixaria o
templo, desapareceriam as profecias e a melodia das fontes e da água. Ou seja:
já não há lugar para Apolo, que é o mesmo que dizer poesia, música, arte... Por
outro lado, a água da fonte Hipocrene calou-se, isto é, acabou a vida, o mundo
corrompeu-se. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente,
a água acompanha as atividades do ser humano e surge como alfa e omega,
ou seja, princípio e fim da existência; é símbolo de Deus; a sua essência
recusa a divisão. Ao dizer que a água se “calou”,
Sophia pode querer simbolizar o fim de uma realidade vivida. Tudo vem da água e
tudo a ela regressa. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo.
Esta narração da conquista da luz e
da sua perda constitui, numa segunda reflexão, a alegoria da conduta do
homem em geral e a denúncia, pela ironia, do obscurantismo que afligia o
País na época em que o poema foi escrito. Sophia, dentro da dialética
caos-cosmos, procura, de certa forma, mostrar que a passagem das trevas para a
luz não é mais do que o encontro do equilíbrio e da ordem, pois isso é que
constitui a verdadeira claridade. A imagem da Grécia antiga a que recorre, na
luta contra o império persa, remete para a ideia de unidade alcançada no
cosmos. Mas Febo, deus da claridade e da música, deixa a sua cabana, como se de
novo regressasse a confusão, o conflito, a violência que marcam o caos. A
profecia da Sibila a Juliano remete para a possibilidade da repentina
destruição da obra harmoniosa e geométrica que é o cosmos.
Nestas duas estrofes finais,
iniciadas pela adversativa mas, verifica-se que de novo as trevas
surgem como ameaça, pois o homem caminha para a perdição. A alegoria do
caos, da ruína, para caracterizar o tempo de ameaça onde falta a liberdade é,
frequentemente, utilizado por Sophia. As duas faces – caos e cosmos – só
permitem a beleza quando se verifica a união entre o limitado e os ilimitados,
entre a treva e a claridade, entre a confusão e a ordem. A dialética
caos-cosmos é a alegoria da própria criação da vida e da morte, da
transformação da matéria confusa, violenta e em conflito do caos na organização
e harmonia do cosmos.
Há neste diálogo com o mundo antigo
uma aproximação à filosofia de Nietzsche e de Heidegger. Como este último
pensador humanista, Sophia compreende, muitas vezes, que a realidade pode levar
o ser humano à angústia como “sentimento da situação”, pois “o ser-no-mundo é sempre
já decaído”. E na esteira niilista de Nietzsche, percebe que depois do clarão
de alegria onde a esperança ganha alento, se exprime “o mundo dilacerado,
destroçado em indivíduos”, como em Dionísio, a figura trágica do palco
helénico. Ao falar do mito apolíneo e dionisíaco, o filósofo afirma que “do
sorriso de Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens”.
Em Sophia, o apolíneo brota “de um fundo dionisíaco”. A beleza e harmonia não
foi dada ao homem, mas conquistada. Por isso, no fim, através da ironia, acomoda
as ruínas do palácio, de Febo, da fonte e da água para melhor lutar pela pureza
e pela liberdade, antes representada na alegoria do corpo nu, privilegiado
mundo da beleza, criador e inventor do mundo mais exato e perfeito.
“O
nosso corpo estava nu porque encontrara / Sua medida exata”. A
nudez do corpo sugere, por alegoria, que um certo sabor do encantamento
provocado por Eros se misture com a sublimidade da verdadeira Beleza. A nudez
do corpo, que surge em muitos outros poemas da autora, concilia uma certa
euforia sensorial com a perseguição com a perseguição do sagrado, que constitui
a arte como lugar de união entre o limitado e o infinito, ou a arte “que lhe
descobre o santuário onde arde numa única chama, numa união eterna e original,
o que está na vida e na ação, logo no pensamento também”. O corpo desnudo
permite mais facilmente ler em cada parte as expressões mais específicas do
sentir e até do pensar.
A aliança do homem com o mundo
natural, o encontro da harmonia, do equilíbrio, da justa medida, para Sophia,
tem como paradigma a arte grega e a verdade dos seus deuses. A atração pela
arte e a nostalgia dessa civilização levam-na a recriar as imagens do mundo
grego, sem, no entanto, deixar de se afirmar uma humanista cristã. Na lição da
Grécia antiga procurou a consciência da justiça e do humanismo. “Em Homero
reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas”
(Arte Poética – III). A Poetisa afirma que a “Grécia é um ponto de
partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir
da imanência, partir do seu estar na terra...”.
Sophia busca a perfeição e a
harmonia de um ser humano que saiba erguer-se a partir das suas limitações e
imperfeições. Não celebra os deuses para que os homens sejam como eles, mas
celebra os deuses para tornar os homens mais divinos, mais capazes de avançar
para a margem do Bem e da Verdade. O mundo antigo, a que recorre a Poetisa,
simboliza não só as origens, mas também a perfeição e a unidade ou o tempo
absoluto que procura. Os gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o
espírito olímpico. Sophia, fascinada pelos valores e cultura clássicos,
falam-nos da arte grega, dos deuses mitológicos e da harmonia e equilíbrio
alcançados. Os antigos deuses surgem a traduzir as forças interiores de cada
ser humano que, embora muitas vezes inexplicáveis, lhes dão a força para vencer
e encontrar o cosmos. Mas apesar dos vários símbolos da perfeição que recorda
do mundo antigo e que pretende alcançar, observa que o homem continua a
caminhar para o caos.
As imagens da Grécia antiga trazem a
Sophia a alegre esperança da renovação do homem, que, de repente, dá lugar à
visão do mundo perfeitamente perturbado e pessimista. É isso que encontramos
neste poema: depois de encontrar a pureza, a liberdade, a beleza, o mundo mais exato
e perfeito, o homem permite o triunfo das forças das trevas sobre a claridade.
Com “Crepúsculo dos Deuses”, Sophia
mostra-nos o percurso do ser humano ao longo da sua caminhada pelo mundo e põe
em destaque a perda com o momento em que “se
apagaram os antigos deuses”, que constituíram o “sol interior das coisas”. O
corpo que “estava nu porque encontrara /
Sua medida exata” distancia-se desse mundo que “era mais nosso cada dia”. Há
aqui uma alegoria a tentar recuperar os signos da ruína, conseguindo
assim que o símbolo se temporalize no presente. Este poema, como em geral toda
a poética de Sophia, mostra-nos um compromisso com a realidade, quer através
destas alegorias que convocam a perda, o “vazio” e a
“ausência”, quer pela grande ironia
que percorre toda a composição. “Crepúsculo dos Deuses” começa por nos mostrar
a conquista do Homem que celebra a vitória; mas quando este encontra a “sua medida exacta” percebe “que se abriu o vazio que nos separa das coisas”.
Recordando o pensamento socrático, Sophia vê, ironicamente, que o mistério permanece,
mesmo na perda. Por isso, não dá a resposta, antes destrói a certeza com a resposta
enigmática da Sibila. Comprometida com a realidade, confronta a beleza e esplendor
da claridade e da alegria com a privação da luz, a ruína e a ausência. É a alegoria
do tempo dividido, associado ao comportamento humano, por oposição ao tempo
absoluto, transcendente, da unidade da vida, mas que, por ironia, os
deuses dominam com a claridade que vence “os
monstros nos frontões de todos os templos” ou com a “ausência” e com a nudez da “água que fala”.
● A
mitologia
Dada a proximidade de Sophia à
cultura grega e os seus constantes apelos para a recuperação dessa mesma
cultura e do seu espírito, não é de estranhar que a mitologia esteja presente
nos seus poemas, sobretudo a que se liga à cultura.
▪ Kouros é um servidor de um deus,
figura escultórica que representa um jovem nu (VII a. C.), símbolo da força e
da perfeição.
▪ Atena é a deusa grega do pensamento,
das artes, das ciências e das indústrias, filha de Zeus, divindade epónima de
Atenas, assimilada a Minerva pelos Romanos.
▪ Sunion é o templo de Posídon, deus
grego do mar, equivalente ao deus Neptuno dos Romanos, templo situado no
promontório da Grécia antiga, que forma a extremidade sudeste de África.
▪ Sibila ou Sibilas eram
sacerdotisas lendárias de Apolo, às quais atribuíam o dom de profecia e
diversos oráculos. A mais célebre é a de Cumas.
▪ Febo = Apolo, filho de Zeus e irmão
gémeo de Diana, Estabeleceu-se em Delfos, centro do mundo, na encosta do
Parnaso depois de matar a serpente Píton. Aí dava os seus oráculos, por
intermédio da Pitonisa. Era o músico do Olimpo, o deus da verdade e da luz, curava
as doenças e ensinou aos homens a arte da Medicina. Morava com as Musas. De uma
delas, Calíope, teve Orfeu. Várias pessoas que amou ou que o amaram
transformaram-se em árvores ou flores. Dafne, para lhe escapar, transformou-se
em loureiro; Apolo, inconsolável, fez para si, com um ramo deste arbusto, uma
coroa que se tornou a coroa dos poetas.
▪ Hipocrene era uma fonte favorita dos
poetas, no monte Hélicon, onde habitavam as Musas, que eram filhas de Júpiter e
da Memória. Esta fonte terá brotado duma patada dada pelo cavalo alado Pégaso:
as águas teriam a virtude de dar inspiração poética a quem dela bebesse.
▪ Embora não pertença à mitologia, convém, no
entanto, destacar a figura de Juliano, imperador romano, sobrinho de
Constantino, que reinou de 361 a 363. Tendo abandonado o Cristianismo, tentou
restaurar o paganismo.
● Símbolos
. O mundo antigo a que
recorre Sophia simboliza a perfeição e a unidade ou tempo absoluto que procura.
Os Gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o espírito olímpico.
. A nudez do corpo
permite encontrar a “medida exata”, pois o nu traduz não só a beleza artística,
mas a verdadeira, autêntica e objetiva dimensão do ser humano e a proporção dos
seus membros.
. As colunas de Sunion
são o primeiro sinal de terra firma quando os marinheiros se aproximam do
continente grego a partir das ilhas do Egeu; além disso, como em todos os
templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
. A luz simboliza o
fim das trevas, a harmonia e o caos, o encontro do mundo “mais nosso cada dia”.
. Os antigos deuses
traduzem as forças interiores de cada ser humano, sendo embora muitas vezes
inexplicáveis, dando-lhe a força para vencer e encontrar o cosmos.
. O silêncio da água
prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente, a água acompanha as atividades
do ser humano e surge como alfa e ómega, ou seja, princípio e fim
da existência; é símbolo de Deus, a sua essência recusa a divisão.
● Intertextualidade
▪ Sophia faz uma leitura do mito das três
idades, da idade de ouro, do relato bíblico cosmogónico e aponta o nosso tempo
como distante da perfeição grega; lança um apelo a uma renovação pagã no
sentido da valorização do ser humano, na sua total dimensão.
▪ Sophia e Alberto Caeiro:
–
o amor à Natureza e o desnudamento da sua beleza;
–
a visão simples das coisas;
–
a presença do real.
▪
Sophia e Ricardo Reis:
–
o amor à cultura clássica;
–
a medida e o rigor da construção dos versos;
–
as referências à cultura clássica;
– reconhece a beleza
do efémero, mas, diferentemente de Reis, não renuncia às paixões, antes as quer
mesmo que a oprimam;
– revela-se pagão
(recorre com frequência à mitologia), sem deixar de ser católica.
O seu paganismo assume-se positivo,
encontrando no retrato dos deuses uma ética e uma estética. O que pretende é
uma relação justa com o real e uma relação justa com o homem. O mundo dos
deuses do paganismo serve-lhe de modelo axiológico da inteireza, da verdade e
da justiça. Procurando essa relação justa com as coisas, com a Natureza, com os
homens e com o divino, a sua poesia reflete um grande humanismo.
▪ Sophia e Álvaro de Campos: o canto livre e aberto,
expansivo e algo sensacionista.
▪ Sophia e F. Pessoa: a exatidão, o brilho e música do
discurso, acreditando como ele que a arte deve criar um todo parecido com os
todos que há na Natureza – isto é, um todo em que haja a precisa harmonia entre
o todo e as partes componentes, não harmonia feita e exterior, mas harmonia
interna e orgânica.
▪ Sophia aceita o princípio de Aristóteles de que um
poema é um “animal”.