Português: Análise de "O Crepúsculo dos Deuses"

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Análise de "O Crepúsculo dos Deuses"

 
Assunto: o percurso do Homem, desde o momento em que “o mundo era mais nosso cada dia” até ao momento em que “se apagaram os deuses”, isto é, desde a primitiva cultura grega, considerada perfeita, até à sua destruição, possivelmente pelo império romano na fase mais decadente ou, de uma maneira mais geral, desde a idade de ouro até aos nossos dias.
 
 
Tema: o apelo para a recuperação da cultura grega ou do seu espírito.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-6) – A vitória da luz sobre as trevas.
 
            A conquista da liberdade e o fim da dominação persa deu aos gregos a alegria e o reencontro da luz. A vitória contra o império opressor restituiu a pureza da cidade. Nas ilhas e no mar Egeu reapareceu o sorriso, a claridade e a alegria.
            Homero (símbolo da poesia) fez florir sobre o mar o roxo, cor que simboliza o equilíbrio entre a terra e o céu, os sentidos e o espírito, o amor e a sabedoria, enquanto Kouros avançou um passo, símbolo do avanço da perfeição da humanidade; por seu lado, a palidez de Atena, deusa do pensamento, das artes, das ciências e das indústrias, “cintilou”.
            A isto acresce que os deuses venceram os monstros e os persas foram derrotados. Todos estes dados, nomeadamente este da vitória sobre os monstros, simbolizam o banimento da ignorância, da cegueira e da violência. Alegoricamente, a vitória dos deuses significa que o ser humano encontrou a sua verdadeira dimensão, conquistando o espírito olímpico da harmonia e da estética.
 
 
2.ª parte (vv. 7-15) – O canto da vitória da luz sobre as trevas.
 
            A treva foi sacrificada em grandes pátios brancos. A luz simboliza o fim das trevas, a harmonia e o caos, o encontro do mundo “mais nosso cada dia”. A este domínio da cor branca, símbolo da perfeição divina e da criação, junta-se o coro das vozes da vitória que purificou a cidade e a nudez do corpo, símbolo de uma nova criação, que permite encontrar a “medida exacta”, pois o nu traduz, não só a beleza artística, mas a verdadeira, a autêntica e objectiva dimensão do ser humano e a proporção dos seus membros. Esta estrofe (quarta) mostra como a alegria foi contagiante e como a claridade, o encontro do cosmos, trouxe a “medida exacta” do ser humano.
            Os resultados práticos dessa transformação encontram-se tipificados nas colunas de Sunion e passam pela união dos homens e das coisas. Ora, as colunas de Sunion – templo de Posídon, deus grego do mar – são o primeiro sinal de terra firme quando os nautas se aproximam do continente grego a partir das ilhas do mar Egeu; além disso, como em todos os templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
 
 
3.ª parte (vv. 16-23) – A derrota dos deuses.
 
            Os “antigos deuses sol interior das coisas” apagaram-se e as trevas dominaram novamente. Os deuses abandonaram, de novo, o homem e ele perdeu a sua luz interior. A cultura clássica antiga apagou-se e o vazio instalou-se entre os homens e as coisas e gerou a separação. A Sibila profetizou, então, aos mensageiros de Juliano (Flávio Cláudio Juliano, o Apóstata, imperador romano entre 361 e 363, tentou restaurar o paganismo, mas morreu numa campanha contra os persas, o que foi interpretado como castigo de Deus) que as trevas e a destruição voltariam, pois Febo (Apolo, entre os romanos, deus do sol, da luz, das artes, da música e da poesia) deixaria o templo, desapareceriam as profecias e a melodia das fontes e da água. Ou seja: já não há lugar para Apolo, que é o mesmo que dizer poesia, música, arte... Por outro lado, a água da fonte Hipocrene calou-se, isto é, acabou a vida, o mundo corrompeu-se. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente, a água acompanha as atividades do ser humano e surge como alfa e omega, ou seja, princípio e fim da existência; é símbolo de Deus; a sua essência recusa a divisão. Ao dizer que a água se “calou”, Sophia pode querer simbolizar o fim de uma realidade vivida. Tudo vem da água e tudo a ela regressa. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo.
 
            Esta narração da conquista da luz e da sua perda constitui, numa segunda reflexão, a alegoria da conduta do homem em geral e a denúncia, pela ironia, do obscurantismo que afligia o País na época em que o poema foi escrito. Sophia, dentro da dialética caos-cosmos, procura, de certa forma, mostrar que a passagem das trevas para a luz não é mais do que o encontro do equilíbrio e da ordem, pois isso é que constitui a verdadeira claridade. A imagem da Grécia antiga a que recorre, na luta contra o império persa, remete para a ideia de unidade alcançada no cosmos. Mas Febo, deus da claridade e da música, deixa a sua cabana, como se de novo regressasse a confusão, o conflito, a violência que marcam o caos. A profecia da Sibila a Juliano remete para a possibilidade da repentina destruição da obra harmoniosa e geométrica que é o cosmos.
            Nestas duas estrofes finais, iniciadas pela adversativa mas, verifica-se que de novo as trevas surgem como ameaça, pois o homem caminha para a perdição. A alegoria do caos, da ruína, para caracterizar o tempo de ameaça onde falta a liberdade é, frequentemente, utilizado por Sophia. As duas faces – caos e cosmos – só permitem a beleza quando se verifica a união entre o limitado e os ilimitados, entre a treva e a claridade, entre a confusão e a ordem. A dialética caos-cosmos é a alegoria da própria criação da vida e da morte, da transformação da matéria confusa, violenta e em conflito do caos na organização e harmonia do cosmos.
            Há neste diálogo com o mundo antigo uma aproximação à filosofia de Nietzsche e de Heidegger. Como este último pensador humanista, Sophia compreende, muitas vezes, que a realidade pode levar o ser humano à angústia como “sentimento da situação”, pois “o ser-no-mundo é sempre já decaído”. E na esteira niilista de Nietzsche, percebe que depois do clarão de alegria onde a esperança ganha alento, se exprime “o mundo dilacerado, destroçado em indivíduos”, como em Dionísio, a figura trágica do palco helénico. Ao falar do mito apolíneo e dionisíaco, o filósofo afirma que “do sorriso de Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens”. Em Sophia, o apolíneo brota “de um fundo dionisíaco”. A beleza e harmonia não foi dada ao homem, mas conquistada. Por isso, no fim, através da ironia, acomoda as ruínas do palácio, de Febo, da fonte e da água para melhor lutar pela pureza e pela liberdade, antes representada na alegoria do corpo nu, privilegiado mundo da beleza, criador e inventor do mundo mais exato e perfeito.
            “O nosso corpo estava nu porque encontrara / Sua medida exata”. A nudez do corpo sugere, por alegoria, que um certo sabor do encantamento provocado por Eros se misture com a sublimidade da verdadeira Beleza. A nudez do corpo, que surge em muitos outros poemas da autora, concilia uma certa euforia sensorial com a perseguição com a perseguição do sagrado, que constitui a arte como lugar de união entre o limitado e o infinito, ou a arte “que lhe descobre o santuário onde arde numa única chama, numa união eterna e original, o que está na vida e na ação, logo no pensamento também”. O corpo desnudo permite mais facilmente ler em cada parte as expressões mais específicas do sentir e até do pensar.
 
            A aliança do homem com o mundo natural, o encontro da harmonia, do equilíbrio, da justa medida, para Sophia, tem como paradigma a arte grega e a verdade dos seus deuses. A atração pela arte e a nostalgia dessa civilização levam-na a recriar as imagens do mundo grego, sem, no entanto, deixar de se afirmar uma humanista cristã. Na lição da Grécia antiga procurou a consciência da justiça e do humanismo. “Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas” (Arte Poética – III). A Poetisa afirma que a “Grécia é um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra...”.
            Sophia busca a perfeição e a harmonia de um ser humano que saiba erguer-se a partir das suas limitações e imperfeições. Não celebra os deuses para que os homens sejam como eles, mas celebra os deuses para tornar os homens mais divinos, mais capazes de avançar para a margem do Bem e da Verdade. O mundo antigo, a que recorre a Poetisa, simboliza não só as origens, mas também a perfeição e a unidade ou o tempo absoluto que procura. Os gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o espírito olímpico. Sophia, fascinada pelos valores e cultura clássicos, falam-nos da arte grega, dos deuses mitológicos e da harmonia e equilíbrio alcançados. Os antigos deuses surgem a traduzir as forças interiores de cada ser humano que, embora muitas vezes inexplicáveis, lhes dão a força para vencer e encontrar o cosmos. Mas apesar dos vários símbolos da perfeição que recorda do mundo antigo e que pretende alcançar, observa que o homem continua a caminhar para o caos.
            As imagens da Grécia antiga trazem a Sophia a alegre esperança da renovação do homem, que, de repente, dá lugar à visão do mundo perfeitamente perturbado e pessimista. É isso que encontramos neste poema: depois de encontrar a pureza, a liberdade, a beleza, o mundo mais exato e perfeito, o homem permite o triunfo das forças das trevas sobre a claridade.
            Com “Crepúsculo dos Deuses”, Sophia mostra-nos o percurso do ser humano ao longo da sua caminhada pelo mundo e põe em destaque a perda com o momento em que “se apagaram os antigos deuses”, que constituíram o “sol interior das coisas”. O corpo que “estava nu porque encontrara / Sua medida exata” distancia-se desse mundo que “era mais nosso cada dia”. Há aqui uma alegoria a tentar recuperar os signos da ruína, conseguindo assim que o símbolo se temporalize no presente. Este poema, como em geral toda a poética de Sophia, mostra-nos um compromisso com a realidade, quer através destas alegorias que convocam a perda, o “vazio” e a “ausência”, quer pela grande ironia que percorre toda a composição. “Crepúsculo dos Deuses” começa por nos mostrar a conquista do Homem que celebra a vitória; mas quando este encontra a “sua medida exacta” percebe “que se abriu o vazio que nos separa das coisas”. Recordando o pensamento socrático, Sophia vê, ironicamente, que o mistério permanece, mesmo na perda. Por isso, não dá a resposta, antes destrói a certeza com a resposta enigmática da Sibila. Comprometida com a realidade, confronta a beleza e esplendor da claridade e da alegria com a privação da luz, a ruína e a ausência. É a alegoria do tempo dividido, associado ao comportamento humano, por oposição ao tempo absoluto, transcendente, da unidade da vida, mas que, por ironia, os deuses dominam com a claridade que vence “os monstros nos frontões de todos os templos” ou com a “ausência” e com a nudez da “água que fala”.
 
 
A mitologia
 
            Dada a proximidade de Sophia à cultura grega e os seus constantes apelos para a recuperação dessa mesma cultura e do seu espírito, não é de estranhar que a mitologia esteja presente nos seus poemas, sobretudo a que se liga à cultura.
 
Kouros é um servidor de um deus, figura escultórica que representa um jovem nu (VII a. C.), símbolo da força e da perfeição.
 
Atena é a deusa grega do pensamento, das artes, das ciências e das indústrias, filha de Zeus, divindade epónima de Atenas, assimilada a Minerva pelos Romanos.
 
Sunion é o templo de Posídon, deus grego do mar, equivalente ao deus Neptuno dos Romanos, templo situado no promontório da Grécia antiga, que forma a extremidade sudeste de África.
 
Sibila ou Sibilas eram sacerdotisas lendárias de Apolo, às quais atribuíam o dom de profecia e diversos oráculos. A mais célebre é a de Cumas.
 
Febo = Apolo, filho de Zeus e irmão gémeo de Diana, Estabeleceu-se em Delfos, centro do mundo, na encosta do Parnaso depois de matar a serpente Píton. Aí dava os seus oráculos, por intermédio da Pitonisa. Era o músico do Olimpo, o deus da verdade e da luz, curava as doenças e ensinou aos homens a arte da Medicina. Morava com as Musas. De uma delas, Calíope, teve Orfeu. Várias pessoas que amou ou que o amaram transformaram-se em árvores ou flores. Dafne, para lhe escapar, transformou-se em loureiro; Apolo, inconsolável, fez para si, com um ramo deste arbusto, uma coroa que se tornou a coroa dos poetas.
 
Hipocrene era uma fonte favorita dos poetas, no monte Hélicon, onde habitavam as Musas, que eram filhas de Júpiter e da Memória. Esta fonte terá brotado duma patada dada pelo cavalo alado Pégaso: as águas teriam a virtude de dar inspiração poética a quem dela bebesse.
 
▪ Embora não pertença à mitologia, convém, no entanto, destacar a figura de Juliano, imperador romano, sobrinho de Constantino, que reinou de 361 a 363. Tendo abandonado o Cristianismo, tentou restaurar o paganismo.
 
 
Símbolos
 
. O mundo antigo a que recorre Sophia simboliza a perfeição e a unidade ou tempo absoluto que procura. Os Gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o espírito olímpico.
 
. A nudez do corpo permite encontrar a “medida exata”, pois o nu traduz não só a beleza artística, mas a verdadeira, autêntica e objetiva dimensão do ser humano e a proporção dos seus membros.
 
. As colunas de Sunion são o primeiro sinal de terra firma quando os marinheiros se aproximam do continente grego a partir das ilhas do Egeu; além disso, como em todos os templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
 
. A luz simboliza o fim das trevas, a harmonia e o caos, o encontro do mundo “mais nosso cada dia”.
 
. Os antigos deuses traduzem as forças interiores de cada ser humano, sendo embora muitas vezes inexplicáveis, dando-lhe a força para vencer e encontrar o cosmos.
 
. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente, a água acompanha as atividades do ser humano e surge como alfa e ómega, ou seja, princípio e fim da existência; é símbolo de Deus, a sua essência recusa a divisão.
 
 
Intertextualidade
 
▪ Sophia faz uma leitura do mito das três idades, da idade de ouro, do relato bíblico cosmogónico e aponta o nosso tempo como distante da perfeição grega; lança um apelo a uma renovação pagã no sentido da valorização do ser humano, na sua total dimensão.
 
▪ Sophia e Alberto Caeiro:
– o amor à Natureza e o desnudamento da sua beleza;
– a visão simples das coisas;
– a presença do real.
 
▪ Sophia e Ricardo Reis:
– o amor à cultura clássica;
– a medida e o rigor da construção dos versos;
– as referências à cultura clássica;
– reconhece a beleza do efémero, mas, diferentemente de Reis, não renuncia às paixões, antes as quer mesmo que a oprimam;
– revela-se pagão (recorre com frequência à mitologia), sem deixar de ser católica.
            O seu paganismo assume-se positivo, encontrando no retrato dos deuses uma ética e uma estética. O que pretende é uma relação justa com o real e uma relação justa com o homem. O mundo dos deuses do paganismo serve-lhe de modelo axiológico da inteireza, da verdade e da justiça. Procurando essa relação justa com as coisas, com a Natureza, com os homens e com o divino, a sua poesia reflete um grande humanismo.
 
▪ Sophia e Álvaro de Campos: o canto livre e aberto, expansivo e algo sensacionista.
 
▪ Sophia e F. Pessoa: a exatidão, o brilho e música do discurso, acreditando como ele que a arte deve criar um todo parecido com os todos que há na Natureza – isto é, um todo em que haja a precisa harmonia entre o todo e as partes componentes, não harmonia feita e exterior, mas harmonia interna e orgânica.
 
▪ Sophia aceita o princípio de Aristóteles de que um poema é um “animal”.
 

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