Aquiles é o protagonista da Ilíada. Ele é filho de Tétis, deusa do mar que o tornou invulnerável (exceto no calcanhar, por onde o segurou) ao mergulhá-lo no rio Estige quando era bebé, e de Peleu, um homem mortal.
Trata-se do maior guerreiro do
exército aqueu e o líder dos Mirmidões, que combatem ao lado dos Gregos contra
os Troianos. Nas palavras de Maria Helena da Rocha Pereira (in Estudos de
História da Cultura Clássica, 6.ª ed., p. 173), “Aquiles [é] o herói
modelo, nobre e valente, mas impulsivo […]”. De facto, Aquiles é uma personagem
que encerra em si as características de um extraordinário combatente, o maior
dentre os Aqueus, mas as suas falhas de caráter impedem que haja com
humanidade, nobreza, compaixão e integridade. É um homem orgulhoso que se deixa
cegar pela raiva quando esse orgulho é ferido, como se comprova através do
conflito que mantém com Agamémnon, que o leva a abandonar a guerra, juntamente
com os seus Mirmidões, enquanto o comandante grego não se desculpar. Mais do
que isso, a cólera é tão grande que pede aos deuses que provoquem a derrota do
rei grego e do seu exército, isto é, do seu próprio povo, dos seus
companheiros. O seu sentido de honra pessoal inviabiliza qualquer acordo e
apenas a perda de um amigo – Pátroclo – o demove da sua ausência da batalha.
A sua inação e a retirada da guerra condicionam
o desenrolar dos acontecimentos. O que o move é o desejo de honra e glória,
granjeadas no conflito bélico, desejo esse que é tão intenso que a personagem
prefere morrer coberto de glória a regressar a casa, são e salvo e em paz, com a
garantia de uma vida longa.
De início, Aquiles parece possuir um
sentido agudo de ordem social que se manifesta quando revela a sua preocupação
com a desordem que grassa no acampamento grego; uma praga mortal instalou-se no
exército e o protagonista quer conhecer a razão. Por outro lado, estamos na
presença de alguém que, por vezes, desrespeita as normas sociais. É o que
sucede quando decide convocar uma assembleia do exército logo no início do
poema, algo que estava reservado apenas a Agamémnon. Essa reunião permite-lhe
ficar a saber o motivo da praga, no entanto, com isso, faz instalar a desordem
entre os Aqueus quando é revelado que o culpado da doença é o próprio
Agamémnon. Deste modo, é a tentativa do líder dos Mirmidões de devolver a ordem
ao acampamento que, em última análise, causa maior desordem. A sua raiva é tão grande
que quase tenta matar o líder aqueu, o que não consegue somente porque Atena o
impede.
Note-se que Aquiles não abandona a
guerra e os companheiros sem motivo. De facto, Agamémnon exige que o filho de
Tétis lhe entregue Briseida, o seu prémio de guerra, e Aquiles vê nesta
exigência um paralelo com o rapto de Helena por Páris, comparando-se a Menelau.
Assim sendo, na sua ótica, o conflito entre si e Agamémnon é tão justificado
quanto a guerra contra os Troianos. Mesmo depois de o chefe aqueu concordar em
lhe devolver Briseida juntamente com vários presentes, Aquiles mantém-se irredutível,
o que indicia que um dos seus maiores defeitos é o orgulho excessivo. A oferta
de Agamémnon, na perspetiva do filho de Tétis, não compensa a afronta e o
insulto públicos que acredita ter sofrido.
Aquiles norteia a sua vida por um
código heroico claro, no entanto, quando se afasta da guerra, começa a questionar
a glória individual, principiando a desenvolver-se a noção de que o lar, a
família e o indivíduo são igualmente importantes para a sociedade e para o
herói. Esta visão surge concretizada, no poema, na figura de Heitor. Estes
conceitos só se tornam mais efetivos após a morte de Pátroclo e o encontro com
Príamo. Ele sente que é sua obrigação vingar o passamento do amigo e reconhece
as suas insuficiências enquanto seu protetor.
Durante a maior parte da obra, as
ações de Aquiles são guiadas pela sua cólera. A sua batalha junto ao rio
Escamandro evidencia toda a sua ferocidade, impiedade e fúria insana no campo
de batalha. O próprio deus do rio, confrontado com os seus excessos, como a
mutilação de corpos dos inimigos, o censura e acusa de crueldade excessiva e desproporcionada.
No fundo, Aquiles está a tentar vingar a morte de Pátroclo matando o máximo de
soldados troianos que conseguir, como se todos fossem culpados do sucedido. A
fúria e a violência cruel do filho de Peleu encontram o seu término com a morte
de Heitor e a mutilação do seu cadáver e são definitivamente sanados aquando do
encontro com Príamo.
A consequência mais evidente do
abandono da guerra por parte de Aquiles é o facto de estar longe da vista do
leitor durante a maior parte da Ilíada. Estamos na presença do herói
bélico por excelência, no entanto não pega numa arma em mais de 80% dos versos
do poema. Esta opção por parte de Homero talvez tenha a ver com o objetivo de o
poeta querer enfatizar o momento em que o filho de Tétis retorna ao campo de
batalha para tirar a vida a Heitor, como vingança pela morte de Pátroclo.
Por outro lado, desde cedo – mais precisamente
desde o canto inicial – nos apercebemos do drama que atinge o protagonista da
obra. Num certo sentido, Aquiles está sempre do lado oposto do resto do mundo,
incluindo a própria mãe, neste caso porque têm desejos diferentes para a vida
do líder dos Mirmidões. Quando o filho lhe relata a ofensa de Agamémnon, fica
claro que a roda do Destino foi posta em funcionamento e dela não haverá
possibilidade de fugir. Aquiles parece já ter decidido que prefere viver uma
vida curta motivada pela busca da glória individual, mas Tétis não se conforma
com isso: “Quem dera que junto às naus estivesses sentado sem lágrimas / e sem
sofrimento, visto que curta é a tua vida, sem duração! / Agora será rápido o
teu destino e mais do que todos os outros / sofrerás. Para um fado cruel te dei
à luz no nosso palácio” (I, vv. 415-418). Atente-se neste passo: “[…] mais do
que todos os outros / sofrerás”. Ele parece indiciar que, para Homero, o herói
deverá ser capaz de sentir/suportar mais dor do que o comum dos mortais. Os
próprios deuses, como se verifica pelas palavras de Tétis, não escapam ao sofrimento
e à dor. Outros exemplos são dados por Afrodite, deusa grega do amor, e Ares, a
divindade da guerra, ambos feridos por simples mortais.
Aquiles combate para alcançar a
glória pessoal, porém afasta-se da guerra pelos motivos conhecidos. Quando Agamémnon,
desesperado, no Canto IX, envia uma embaixada, constituída por Ajax e Ulisses à
sua tenda, prometendo-lhe várias riquezas se ele reconsiderar e refregar à
refrega, o filho de Tétis recusa. Porquê? Porque deixou de acreditar na guerra.
É isso que transparece na seguinte fala, dirigida a Ulisses: “Igual porção cabe
a quem fica para trás e a quem guerreia; / na mesma honra são tidos o cobarde e
o valente: / a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança” (vv.
318-320). Deste modo, quando Aquiles regressa à guerra, não o faz já motivado
pela procura da glória, mas por um motivo pessoal e íntimo: a dor causada pela
morte do amigo Pátroclo. Nas palavras de Frederico Lourenço, na introdução à
sua magistral tradução da Ilíada (p. 18), “[…] se, por um lado, quando o
herói máximo comete o seu máximo feito (matar Heitor), o heroísmo «tradicional»
já deixara de lhe fazer sentido, há, por outro lado, como que uma reinvenção do
conceito de heroísmo no ato de matar na plena consciência de que a morte da
vítima acarreta a morte de quem mata. Às vezes parece que morrer, na Ilíada,
é muito mais importante do que viver.”