Português: Análise do Canto XXII da Ilíada

sábado, 2 de outubro de 2021

Análise do Canto XXII da Ilíada

             O tão aguardado duelo entre os dois maiores heróis das partes conflituantes concretiza-se finalmente. Homero controla habilmente o enredo, entrelaçando os eventos de forma admirável. Por exemplo, a cena da pesagem dos destinos de Aquiles e Heitor assemelha-se, embora em sentido contrário, à que ocorre no Canto VIII, quando o destino do exército troiano se sobrepõe ao do grego. Por uma questão de dignidade, Heitor tem de lutar até à morte para resgatar a honra perdida quando, de forma imprudente, ignorou os conselhos e ordenou ao seu exército que acampasse fora dos muros da cidade, o que levou à fuga dos seus homens, causando-lhe enorme vergonha e à sua liderança. Por outro lado, o primeiro momento glorioso de Heitor, quando ele liquida Pátroclo e fica com a sua armadura, acaba por se tornar determinante para a sua perdição, dado que Aquiles conhece perfeitamente onde ela é vulnerável e é aí que desfere o golpe fatal. Estas conexões sugerem o caráter cíclico da vida e do universo, que tende(m) a equilibrar-se: uma oscilação do pêndulo leva a outra; as ações de uma pessoa acabam por voltar para o assombrar.

            Por outro lado, o confronto entre os dois inimigos constitui um duelo de heróis e de valores. O enfrentamento evidencia claramente a superioridade de Aquiles no que respeita à força física, mas o tratamento vergonhoso e cruel que dedica ao corpo de Heitor diminui-o e torna-o indigno. E fá-lo apenas guiado pela sua raiva desmedida, irracional e incontrolável. Heitor, pelo contrário, redime-se das suas falhas anteriores. As suas orelhas moucas aos prudentes conselhos de Polidama, que o levaram a acampar fora da cidade na noite anterior, implicaram consequências terríveis para as suas tropas. Agora, ele não pode recuar, pois tal seria ainda mais desonroso, e a sua recusa de regressar à segurança do interior da cidade simboliza a sua vontade madura de sofrer as consequências dos seus atos. A tentativa de negociar um duelo honrado evidencia um forte sentido de dignidade pessoal. A tentativa de obter do inimigo a garantia mútua de um tratamento respeitoso do cadáver do derrotado traduz a sua decência. Por último, a tentativa desesperada de alcançar a glória ao atacar Aquiles, mesmo depois de ter consciência da traição dos deuses e da iminência da sua morte, enfatizam a sua coragem e o seu heroísmo.

            À primeira vista, poderíamos ser levados a concluir que a morte de Heitor simboliza a morte dos valores que encarna – a dignidade, a coragem, a decência, a honra, o heroísmo, etc. –, no entanto, a atitude posterior de Aquiles, quando recebe Príamo e se consciencializa da sua crueldade e barbarismo, fruto da cólera incontida e incontrolável, significa que ele terá interiorizado a importância desses valores.

            Em suma, Aquiles é o mais forte fisicamente, o herói mais valoroso no que à guerra diz respeito (ele não precisa de ajuda divina para correr nem se cansa), porém Heitor é a personagem mais humana e digna. O filho de Tétis não trata o oponente como humano, antes o vê como uma presa. As duas personagens representam, enfim, dois tipos diversos de heroísmo: o grego é o símbolo da força física e da destreza na guerra, mas possui falhas de caráter; o troiano é mais humano e representa um caráter mais heroico, valorizando o respeito mútuo, mesmo em situações limite, como a guerra ou a iminência da morte.

            Como acontece frequentemente, as visões sobre os acontecimentos e as ações diferem de personagem para personagem. É o que acontece, por exemplo, com Andrómaca, que vê a recusa do marido de se acolher dentro de Troia como uma manifestação de orgulho. Contudo, é exatamente isso que o torna honrado e digno. O próprio Príamo parece pressentir tal quando, mesmo implorando ao filho que se acoite dentro das muralhas, receia a desgraça de morrer velho numa cidade conquistada pelo inimigo, sugerindo que é preferível morrer jovem de forma gloriosa.

            Curiosa é a cena em que Heitor foge de Aquiles, correndo sucessivamente em volta da cidade. Se, por um lado, somos levados a ler na atitude do troiano um gesto de fraqueza e cobardia (até porque ele prometera nunca fugir do oponente), por outro, encontramos nela algo de caricatural e cómico. De facto, assistir, no contexto daquele duelo, à figura de duas personagens correndo uma atrás da outra num campo de batalha vazio tem o seu quê de cómico. Porém, o que está em causa – a vida de Heitor – não encerra qualquer comicidade.

            Por último, há que ter em conta que o destino de Troia está intimamente ligado ao seu defensor: Heitor. Príamo prevê, à semelhança do que Andrómaca fizera no Canto VII, que a cidade cairá sem a liderança do seu filho. Por seu turno, a mesma Andrómaca, ao ver o marido morto, receia, com toda a razão, pelo futuro do filho de ambos, ao ficar sem pai. Dentre as várias versões sobre o que, de facto, aconteceu a Astíanax após a Guerra de Troia, a mais corrente é a de que ele terá sido atirado por Neoptólemo (também conhecido por Pirro, era filho de Aquiles e Deidamia) do cimo das muralhas da cidade, por receio de que, sendo cria de Heitor, vingasse a morte do pai e, além disso, se tornasse um dia rei de Troia.

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