A Ilíada termina de modo semelhante ao que começou. De facto, Príamo atravessa as linhas inimigas para suplicar a Aquiles o corpo do seu filho, tal como Crises, no Canto I, se dirigiu ao acampamento grego, para que lhe fosse restituída a sua filha. No entanto, ao contrário do que sucedeu com este último, a prece de Príamo é atendida de imediato. A invocação, pelo rei de Troia, do pai do herói grego cria um vínculo momentâneo entre ambos. Aquiles sabe que está fadado a não regressar a casa, o que significa que, em breve, Peleu será o pai desolado que Aquiles fez de Príamo ao assassinar-lhe o filho e profanar o corpo. Essa súbita consciência de que o seu próprio progenitor está condenado a sofrer aquilo que Príamo sofre agora aplaca a cólera de Aquiles e emociona-o.
É preciso ter consciência, porém, de
que o vínculo entre Aquiles e Príamo é momentâneo, dado que, na essência, nada
se alterou, desde logo porque Agamémnon, se deparasse com o rei de Troia no
acampamento, logo o faria prisioneiro. Os próprios Aquiles e Príamo continuam a
ser inimigos, tal como Hermes recorda ao velho rei. O destino de Troia está
traçado: a cidade está fadada a cair às mãos dos Gregos, como nos recorda
Andrómaca ao ver o corpo sem vida de Heitor. Não obstante todos estes factos,
nomeadamente a certeza de que Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, a
verdade é que a sua animosidade se torna, agora, mais nobre e respeitosa.
Este último canto do poema
exemplifica a mudança operada na personalidade de Aquiles. De facto, o herói
surgiu, de entrada, como uma figura colérica, temperamental, orgulhosa, egoísta
e impulsiva, contudo, no momento em que a obra finaliza, revela empatia,
compaixão e simpatia pelo outro. Ao longo da Ilíada, o narrador
mostra-nos um Aquiles incapaz de pensar em alguém mais do que em si próprio e
nos seus problemas, guiado pelo orgulho e pelo rancor. Estes traços de personalidade
são tão vincados que o filho de Tétis parece indiferente à sorte do seu povo,
que parece condenado à derrota sem a sua presença no campo de batalha. Nada o
abala nem demove, exceto a morte de Pátroclo. Contudo, este acontecimento não o
torna melhor pessoa; pelo contrário, a sua raiva é mais forte do que nunca e a
sua crueldade e desumanidade não explícitas a partir do momento em que põe fim
à vida de Heitor e profana o seu corpo. NO entanto, o encontro com um Príamo
despedaçado pela dor e a lembrança do seu pai, Peleu, humaniza-o, levando-o a
corresponder positivamente ao apelo do rei dos Troianos, devolvendo-lhe o corpo
do filho, e indo mais além inclusive, ao conceder uma trégua de doze dias na
guerra, para que em Troia se proceda adequadamente às exéquias fúnebres do seu
herói. Note-se que, neste passo e nestas decisões de Aquiles, não existe
qualquer interferência por parte dos deuses, facto que confirma a tal
humanização da personagem.
Atente-se, todavia, que este “novo
Aquiles” pode não ser duradouro, tendo em conta a sua reação quando Príamo lhe
sugere que regresse a casa em paz, mas sem glória, algo que o grego considera
um insulto. Há que ter em conta, porém, que o traço da raiva e da cólera não é
exclusivo do líder dos Mirmidões, dado que até o próprio Príamo afirma que
preferia que tivesse morrido qualquer um dos outros filhos no lugar de Heitor;
Hécuba declara, em fúria, que gostaria de comer o fígado de Aquiles.
Esta mudança operada em Aquiles
enfatiza a importância que a cólera da personagem assumiu ao longo de todo o
poema. Este não se conclui com a morte do herói aqueu nem com a queda de Troia
e a derrota dos Troianos, mas com o apaziguamento da cólera. A ênfase é posta
no lado das personagens, nas suas emoções e sentimentos, e não na guerra e nas
suas peripécias. Como se explica esta opção de Homero? Por um lado, o público
contemporâneo do autor estaria familiarizado com a história; por outro, o
leitor de qualquer outra época fica a conhecer, desde cedo na obra, o desfecho
da ação. Assim sendo, o suspense acerca da mesma desaparece a partir das
primeiras páginas. Além disso, o motivo que condiciona o evoluir dos
acontecimentos é a cólera de Aquiles, pelo que fará todo o sentido que a obra
finalize quando o conflito que a iniciou se resolve. Deste modo, o tema central
do poema parece ser a evolução pessoal do protagonista – Aquiles.
Por outro lado, a
história tem uma estrutura circular, como já foi aludido anteriormente. Assim,
o apelo de Crises pela devolução da sua filha encontra equivalência no retorno
do corpo de Heitor a seu pai – o primeiro apelo (e a resposta negativa ao
mesmo) inicia o conflito e o segundo encerra-o.
A Ilíada finaliza com os
funerais de Heitor, uma forma de concluir a história com um momento de
dignidade e de honra não só dedicado ao herói troiano, mas, no fundo, de todos
os que pereceram durante a guerra.
O que resta do conflito bélico,
nomeadamente o seu desenlace, a queda de Troia, o estratagema usado para tal ou
a morte de Aquiles são relatados noutros textos, como, por exemplo, a Odisseia.
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