Português: Análise do Canto XXIV da Ilíada

domingo, 3 de outubro de 2021

Análise do Canto XXIV da Ilíada

             A Ilíada termina de modo semelhante ao que começou. De facto, Príamo atravessa as linhas inimigas para suplicar a Aquiles o corpo do seu filho, tal como Crises, no Canto I, se dirigiu ao acampamento grego, para que lhe fosse restituída a sua filha. No entanto, ao contrário do que sucedeu com este último, a prece de Príamo é atendida de imediato. A invocação, pelo rei de Troia, do pai do herói grego cria um vínculo momentâneo entre ambos. Aquiles sabe que está fadado a não regressar a casa, o que significa que, em breve, Peleu será o pai desolado que Aquiles fez de Príamo ao assassinar-lhe o filho e profanar o corpo. Essa súbita consciência de que o seu próprio progenitor está condenado a sofrer aquilo que Príamo sofre agora aplaca a cólera de Aquiles e emociona-o.

            É preciso ter consciência, porém, de que o vínculo entre Aquiles e Príamo é momentâneo, dado que, na essência, nada se alterou, desde logo porque Agamémnon, se deparasse com o rei de Troia no acampamento, logo o faria prisioneiro. Os próprios Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, tal como Hermes recorda ao velho rei. O destino de Troia está traçado: a cidade está fadada a cair às mãos dos Gregos, como nos recorda Andrómaca ao ver o corpo sem vida de Heitor. Não obstante todos estes factos, nomeadamente a certeza de que Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, a verdade é que a sua animosidade se torna, agora, mais nobre e respeitosa.

            Este último canto do poema exemplifica a mudança operada na personalidade de Aquiles. De facto, o herói surgiu, de entrada, como uma figura colérica, temperamental, orgulhosa, egoísta e impulsiva, contudo, no momento em que a obra finaliza, revela empatia, compaixão e simpatia pelo outro. Ao longo da Ilíada, o narrador mostra-nos um Aquiles incapaz de pensar em alguém mais do que em si próprio e nos seus problemas, guiado pelo orgulho e pelo rancor. Estes traços de personalidade são tão vincados que o filho de Tétis parece indiferente à sorte do seu povo, que parece condenado à derrota sem a sua presença no campo de batalha. Nada o abala nem demove, exceto a morte de Pátroclo. Contudo, este acontecimento não o torna melhor pessoa; pelo contrário, a sua raiva é mais forte do que nunca e a sua crueldade e desumanidade não explícitas a partir do momento em que põe fim à vida de Heitor e profana o seu corpo. NO entanto, o encontro com um Príamo despedaçado pela dor e a lembrança do seu pai, Peleu, humaniza-o, levando-o a corresponder positivamente ao apelo do rei dos Troianos, devolvendo-lhe o corpo do filho, e indo mais além inclusive, ao conceder uma trégua de doze dias na guerra, para que em Troia se proceda adequadamente às exéquias fúnebres do seu herói. Note-se que, neste passo e nestas decisões de Aquiles, não existe qualquer interferência por parte dos deuses, facto que confirma a tal humanização da personagem.

            Atente-se, todavia, que este “novo Aquiles” pode não ser duradouro, tendo em conta a sua reação quando Príamo lhe sugere que regresse a casa em paz, mas sem glória, algo que o grego considera um insulto. Há que ter em conta, porém, que o traço da raiva e da cólera não é exclusivo do líder dos Mirmidões, dado que até o próprio Príamo afirma que preferia que tivesse morrido qualquer um dos outros filhos no lugar de Heitor; Hécuba declara, em fúria, que gostaria de comer o fígado de Aquiles.

            Esta mudança operada em Aquiles enfatiza a importância que a cólera da personagem assumiu ao longo de todo o poema. Este não se conclui com a morte do herói aqueu nem com a queda de Troia e a derrota dos Troianos, mas com o apaziguamento da cólera. A ênfase é posta no lado das personagens, nas suas emoções e sentimentos, e não na guerra e nas suas peripécias. Como se explica esta opção de Homero? Por um lado, o público contemporâneo do autor estaria familiarizado com a história; por outro, o leitor de qualquer outra época fica a conhecer, desde cedo na obra, o desfecho da ação. Assim sendo, o suspense acerca da mesma desaparece a partir das primeiras páginas. Além disso, o motivo que condiciona o evoluir dos acontecimentos é a cólera de Aquiles, pelo que fará todo o sentido que a obra finalize quando o conflito que a iniciou se resolve. Deste modo, o tema central do poema parece ser a evolução pessoal do protagonista – Aquiles.

                        Por outro lado, a história tem uma estrutura circular, como já foi aludido anteriormente. Assim, o apelo de Crises pela devolução da sua filha encontra equivalência no retorno do corpo de Heitor a seu pai – o primeiro apelo (e a resposta negativa ao mesmo) inicia o conflito e o segundo encerra-o.

            A Ilíada finaliza com os funerais de Heitor, uma forma de concluir a história com um momento de dignidade e de honra não só dedicado ao herói troiano, mas, no fundo, de todos os que pereceram durante a guerra.

            O que resta do conflito bélico, nomeadamente o seu desenlace, a queda de Troia, o estratagema usado para tal ou a morte de Aquiles são relatados noutros textos, como, por exemplo, a Odisseia.

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