Português: Análise do Canto XXIII da Ilíada

sábado, 2 de outubro de 2021

Análise do Canto XXIII da Ilíada

             A raiva que Aquiles dirigira, anteriormente, contra Agamémnon é agora reorientada para Heitor e, tal como antes, também neste passo o líder dos Mirmidões se deixa cegar pela cólera, vingando-se no corpo do comandante troiano e queimando inimigos capturados na pira funerária, juntamente com Pátroclo. Por outro lado, os três últimos cantos da Ilíada seguem um padrão estrutural semelhante aos primeiros vinte. Além do facto já observado de a raiva por Agamémnon ser substituída pela dirigida a Heitor, tal como Aquiles se reconciliou com o rei dos Gregos, também agora se reconciliará com Príamo, o pai do seu inimigo morto.

            A profanação do cadáver de Heitor começou já no canto anterior e prossegue neste. O modo como ela é praticada faz com que o leitor não simpatize com Aquiles, o que contrasta com a imagem com que ficamos de Heitor. De facto, este matou Pátroclo, mas não profanou o seu corpo, ao contrário do que o filho de Tétis fez com o seu e que vai para além do aceitável e do razoável.

            Esta cólera de Aquiles é temperada por dois acontecimentos deste canto: o sonho com Pátroclo e os jogos fúnebres em sua honra. Em amos os momentos, o leitor toma contacto com um lado mais humano e clemente do herói grego. O aparecimento do fantasma de Pátroclo enfatiza a importância que o sepultamento adequado dos mortos tinha para os Gregos, algo que um Aquiles irracional recusa a Heitor. Note-se ainda a importância que o corte da mecha de cabelo do líder dos Mirmidões e a sua colocação na pira funerária assume nesta fase da obra, pois simboliza que Aquiles prefere morrer de forma gloriosa na guerra do que regressar a casa em paz e ter uma existência longa. Por outro lado, o sonho com Pátroclo constitui um caso raro, no poema, de evento sobrenatural (além da presença das divindades olímpicas) e pode traduzir uma espécie de diálogo de Aquiles consigo mesmo. O pedido do fantasma no sentido de ser sepultado em conformidade representa a crença grega segundo a qual a alma do morto não descansa enquanto este não estiver enterrado. Além disso, esta aparição em sonhos prepara o caminho para a reconciliação de Aquiles com Príamo, que se concretizará no Canto XXIV. O falecido representa o lado mais humano do filho de Tétis.

            Os jogos em homenagem de Pátroclo apresentam-nos um Aquiles sem cólera, mais justo e diplomático, como se pode constatar quando resolve a contento uma disputa sobre prémios, que se assemelha, de algum modo, ao incidente que esteve na génese do conflito com Agamémnon: o herói grego tenta despojar Antíloco, o cocheiro, do prémio que ganhara nos jogos. Tal como este terminara a competição em segundo lugar, atrás de Diomedes, também Aquiles terminara na segunda posição, atrás de Agamémnon; Antíloco, à semelhança do que Aquiles fizera antes, recusa a injustiça e a humilhação de não ver reconhecidos os seus triunfos. No entanto, contrariamente ao que sucedera com o conflito entre o filho de Tétis e Agamémnon, esta disputa em torno de Antíloco é resolvida de forma pacífica e não se reflete de forma duradoura nas personagens e nas suas relações. Em suma, os jogos fúnebres constituem um momento de pausa no luto.

            Por outro lado, é provável que estes jogos tenham tido como modelo eventos desportivos reais, como, por exemplo, as competições olímpicas, que surgiram na mesma época em que a Ilíada terá sido composta. Especialistas na obra de Homero consideram que as primeiras competições constituíam uma série típica de jogos: a corrida de cavalos de dois cavalos, o boxe, a luta livre e a corrida a pé. Outras competições terão constituído acréscimos posteriores.

            Os jogos eram muito importantes na cultura grega da época, desde logo porque constituíam uma oportunidade de os competidores alcançarem a fama e a glória, honra e prémios em tempos de paz. Convém notar que estes jogos configuravam um momento de teste das habilidades exibidas na guerra, bem como de ostentação de triunfos e feitos.

            Além das vitórias nos jogos, a hierarquia e a habilidade são também homenageadas. Aquiles deseja atribuir o segundo prémio na corrida de carros ao melhor condutor, que, na realidade, chegou em último lugar. Nestor é premiado pela sua vida e feitos enquanto guerreiro. Aquiles, revelando uma diplomacia que não se lhe conhecia, declara Agamémnon o vencedor do concurso de lançamento de lança sem a competição se ter efetuado, reconhecendo-se, assim, a sua posição como comandante geral do exército grego.

            Por último, há a assinalar o facto de estes jogos constituírem uma oportunidade para o leitor ver em ação os heróis gregos. Deste modo, os eventos colocam-nos perante uma competição mais civilizada (do que a guerra) e proporcionam-lhes uma despedida condigna. De facto, apenas Aquiles surge em cena no Canto XXIV, o último do poema.

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