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sábado, 27 de agosto de 2022

Conto «Asclépio, o "Caçador de Eclipses"», de Pedro Teixeira Neves

        Asclépio Euclides, especialista em eclipses, lunares e solares, embora graduado com distinção nestes últimos, tentava acalmar a sua audiência quanto aos efeitos nefastos do fenómeno solar que se previa para os dias seguintes, um eclipse solar a oitenta por cento! “Poderão, de qualquer modo, e se assim o entenderem – isto é, se o medo for muito… –, ir rezar umas ave-marias e uns pai-nossos para a igreja. O Padre Santinho por certo vos acolherá dizendo que ‘a luz de Deus, essa, jamais se apagará aos fiéis!’”. E sorriu, tirando os óculos ao mesmo tempo que passava a palavra à sua colega de bancada, a Dr.ª Letícia Catarata. Que usou da dita nestes termos: “O Doutor Euclides brinca. Nada receiem. Uma certeza, porém! Não deverão jamais olhar diretamente para p Sol. Os eclipses são fenómenos perfeitamente naturais e não só nunca fizeram mal a ninguém como nunca farão.” Certo, muito certo, mas a Dr.ª Catarata enganava-se. Tão rotundamente como a note que daí a três dias, em pleno meio-dia, engoliria a quase totalidade da luz solar. Estava-se em 1968, o país tratava-se de razões com o segundo grande eclipse solar do século e o professor Asclépio Euclides, malgrado toda a sua experiência na matéria, que inclusive lhe valera o cognome de “caçador de eclipses”, teria ainda muito com que se espantar.
Pio, como desde petiz era conhecido entre familiares e amigos, começou a interessar-se por acontecimentos raros, fenómenos científicos e afins, teria aí os seus cinco, seis anos. Com os pais e as suas sete irmãs, vivia nesses tempos do princípio do século em Moçambique, próximo da exuberante Foz do Rovuma. O Doutor Lupino, tio de Asclépio, morava também, havia meia-dúzia de anos, com a prestigiada família Euclides Semedo e fora ele o “culpado” da verdadeira paixão do sobrinho pelas “coisas da ciência”, como às apetências da criança sempre se referia, em conversas com amigos, o pai do pequeno Pio, Thomás Euclides Semedo, desse modo como que dizendo esperar que fossem aquilo apenas “manias da idade”. Que não eram, como se verá.
O tio Lupino servira em Lourenço Marques durante largos anos, mas depois de uma aparatosa operação de salvamento em que se tinha envolvido, a um corneteiro da rainha que caíra às revoltas águas de um rio, Lupino, batendo com a cabeça num tronco de +arvore, passara a sofrer de uma progressiva “falta de memória”, como vaticinaram diplomaticamente os dois médicos chamados a opinar sobre o caso. Acontecera isso em 1902 e logo delicadamente foi Lupino convencido, ou, melhor, convidado a antecipar a reforma da sua valorosa carreira militar. Não lhe fizeram a coisa sem mais nem menos, pois sempre se tratava de um Comandante. Para que não fizesse muitas ondas, lavraram-lhe então um louvor em que se elencavam todos os seus feitos em cumprimentos de missão, documento esse que a própria Rainha se encarregou de assinar. Nos seguintes termos constava e o mesmo Lupino, aos olhos de quantos visitavam a fazenda Semedo, fazia questão de dar a conhecer:
 

“Louvor ao Comandante Euclides Semedo,

 
Em virtude de: 1.º No decorrer da expedição aos Grandes Lagos, em 1879, ter salvo a golpe de espada, e com risco da própria vida, um seu subordinado que se vira atacado por um feroz leão; 2.º Aquando da expedição a Inhambane, em 1893, ter providenciado e comandado de forma pronta e célere o combate às chamas que haviam deflagrado no acampamento do corpo expedicionário; 3.º Ter participado, em 1895, com brio e valentia insuperáveis, nas campanhas de pacificação de Moçambique comandadas pelo excelentíssimo Capitão Mouzinho de Albuquerque; 4.º Ter, em 1902, e enquanto Comandante da Coluna do Barué, em operações por Manica, ajudado ao salvamento do corneteiro da Rainha n.º 6/199 da segunda companhia que por accidente cahiu ao rio Inhamucarara; ter ainda participado nas seguintes ações: Combate de Xoarira, Ataque e tomada da Denga de Ranguand, Escaramuça ao norte do monte Nhangara, Recontro de Bexinga, todos estes atos em 1902.
Por, em todas estas ocasiões, ter dado bastas provas da sua louvável filantropia, recomenda o Excelentíssimo General Seraphim Ferreira Júnior que individualmente se louve o Comandante Lupino Euclides Semedo.
 
Lourenço Marques, 25 d’agosto de 1902
 
o General Seraphim F. Júnior
a Rainha
(assinaturas irreconhecíveis)”
 
Solteirão dos quatro costados, o Comandante Lupino decidiu-se, pois, em virtude do acidente acima descrito, a ir morar com o irmão, à data Governador-Geral de Colónia, posto cimeiro na hierarquia da administração colonial em Moçambique. E era um pequeno génio o homem que desde então passou a fazer companhia ao jovem Asclépio – filho nunca tido embora sempre desejado –, povoando-lhe a infância de descobertas e sensações que jamais esqueceria. Enquanto as sete manas se entretinham com a mãe e duas precetoras a aprender as graças e predicados de boas fadas do lar, e, nos intervalos da culinária e dos lavabos, a dedilhar intermináveis escalas no velho piano de cauda, Asclépio, ou Pio, embrenhava-se com Lupino pelas matas circundantes à casa da fazenda em autênticas expedições científicas ao melhor estilo de um Serpa Pinto, que não muito antes se embrenhara com sucesso pelos intestinos africanos, aventurando-se por terras e horizontes onde até então só bicharada existia – pelo menos na imaginação e conhecimento dos ocidentais, cujos mapas da época, de resto, isso mesmo comprovavam apresentando ferozes e coloridos animais no interior do Continente Negro; foi assim até finais do século XIX. Mas juntos, dizia-se, como se duas crianças, que um era, o outro já nem por isso, sobrinho e tio demoravam-se horas após horas, tardes após tardes, dias após dias, meses e anos por fim, inventariando fauna e flora que lhes aparecessem pela frente. E não era tão pouca quanto isso! No velho barracão por detrás das cavalariças, entretinham-se depois de cada investida prospetiva, até que os chamassem para o jantar, a catalogar os espécimes apanhados, constituindo aquilo que na família já se dizia ser um “Museu de História Natural”. Na verdade, não seria muito mais do que um interesse gabinete de curiosidades. Mas foram anos passados naquela vida, investidos em verdadeiros cientistas, biólogos, botânicos, geógrafos, geólogos e até astrónomos, num crescendo de aprendizagem “in loco” que teve um dos seus pontos altos no ano de 1919, quando se deu o primeiro eclipse total do Sol em terras de Moçambique.
 O fenómeno dos eclipses foi, na realidade, de tudo quanto lhe aguçou a curiosidade do tio Lupino, o que mais entusiasmou o pequeno Asclépio. E quantas noites não demorou ele a adormecer esforçando-se por compreender, como vira nas páginas de um magnífico livro ilustrado inglês, tamanho mistério da natureza. E assistir a um desses milagres d ao vivo!? Não seria fantástico!? – Mas quando, Tio Lupino, quando?, perguntava-lhe amiúde todo ansiedade. Na verdade, de por via da raridade de tais acontecimentos, o jovem Pio só aos dezanove anos pôde pela primeira vez testemunhar um eclipse solar, e logo um eclipse total! Foi isso a 29 de maio de 1919, dia em que na generalidade do território moçambicano, mas com especial incidência ou privilégio de primeira plateia para as populações da Foz do Rovuma, todos os olhos, muito brancos e arregalados, se voltaram desprevenidos e temerosos para o Astro-Rei. Reza a história – e muito rezou o padre local, o pároco Maciel Vinhas, para que as populações se acalmassem e a vida voltasse à normalidade! – que foi naquelas terras um desatino de primeira grandeza. Uma coisa assim nunca vista, com gentes de todas as idades disparando para debaixo de tudo quanto fosse sítio ou toca, gritando ais e ajudas, socorros e clemências aos mais dignos e mesmo aos mais indignos deuses que se conheciam ou conheceram por tais bandas. Para que se tenha uma ideia do pandemónio que três minutos de Sol encoberto criaram, diga-se tão-só que nunca como naquele santo dia o Padre Maciel vira a sua igreja tão cheia de ovelhas – claro está que para ele era um regalo! De plantão, nas semanas seguintes, ficaram igualmente, e como se compreende, todos os curas, curandeiros, adivinhos e sibilas da terra. Kalunga, Deus do Mar, foi um dos mais requisitados, e entre feitiços, idolatrizações, amuletos e talismãs, havia para todos os gostos. Ao invés, contentes da vida e alheios a toda esta parafernália de medos e crendices, na sua fazenda, em posto de observação eleito, Lupino e Pio deslumbravam-se com o fenómeno.
Foi esse dia o espoletar de uma paixão arrebatadora em Asclépio. Embrenhou-se nos manuais, cresceu a pedir ao Tio Lupino que mandasse vir da Metrópole e do estrangeiro literatura sobre o assunto, e quando chegou à idade universitária, já em Coimbra, perdeu-se em bibliotecas estudando tudo o que alguma vez fora estudado e posto em papel sobre Eclipses. A coisa foi a tal ponto que Asclépio só aguentou os grossos volumes e legislações de Direito em que o pai insistira que cursasse. As ciências eram o seu futuro. E foram, tendo Asclépio vindo a formar-se em Ciências Astronómicas com vinte valores, especializando-se e discutindo teses versando os eclipses solares. Terminado o curso, o então já Doutor Asclépio percorreu o mundo numa verdadeira caçada aos eclipses, desse modo aprofundando os seus conhecimentos. Um dia, em entrevista a um programa de rádio, chegou a confidenciar ter perdido a conta ao número de eclipses testemunhados – o entrevistador, um radiofonista de nome Igrejas qualquer coisa, espantou-se numa voz de tom afetado e ondulante, perguntando depois pela “querida mãezinha do Doutor Asclépio”.
Em Moçambique, onde regressava regularmente, passou a ser conhecido como “o caçador de eclipses”. Era um homem querido pelas populações, um homem da terra cuja bonomia e ciência cativavam o mais relutante espírito, e que por isso mesmo, no ano de 1968, por via da aproximação do segundo eclipse solar no território, convidado a fazer um esclarecimento geral sobre eclipses, congregou em palestra um vasto auditório de negros e brancos. Um facto de monta, tanto mais que nessa altura o povo moçambicano, a exemplo das demais colónias portuguesas, encontrava-se em guerra contra a Metrópole num processo de conquista e independência então ao rubro. “Nada temam”, disse a Dr.ª Letícia Catarata secundando as palavras e a boa disposição do Professor Asclépio Euclides. As pessoas saíram confiantes, gargalhando os medos e os temores. Três dias depois se veria, afinal, o que era aquilo de um eclipse total, ou quase, e que efeitos na realidade teria.
No dia do eclipse, a calma, na medida do possível, reinava em Lourenço Marques. Na praça central da cidade, com as esplanadas cheias e todas as janelas abertas em sentinela para o céu, Asclépio encontrava-se rodeado de pessoas que, sabe-se lá por que razão, talvez pelo currículo do professor, junto dele mais seguras se sentiam. Aguardavam expectantes, e quando o Sol começou a vestir-se de negro uma onda de suspiros ressoou no silêncio instalado. E foram três minutos de bocas abertas e olhos apontados às alturas numa tal concentração que ninguém reparou que ali mesmo, pés bem assentes no chão, um outro fenómeno decorria. Foi um grito estridente da Dr.ª Catarata, seguido de desmaio, que deu o alerta: “Professooooooooor!!!” Meteu medo! Então, clareando de novo o dia, puderam todos aperceber-se do sucedido, fenómeno esse, sim, digno do maior espanto e respeito. Ali, no meio da praça, o próprio Professor Asclépio começando por ver-se assolado, dos pés para a cabeça, por uma densa sombra negra, acabou, primeiro por ficar negro como um tição, e logo depois, num estalar de dedos, por desaparecer como se por magia. Esfumando-se, nem mais nem menos. Um “Ahhhhhhhhhh” de espanto ainda maior que o antecedente varreu a praça. Claro está, foi de novo um corrupio a lembrar o de 1919 e, como setenta e duas horas antes vaticinara no seu discurso o Doutor Asclépio, mesmo se brincando, o Padre Santinho não teve mãos a medir.
Com o tempo o povo e as autoridades aceitaram o sucedido. Explicações, houve quem as tentasse, mas sem sucesso. A Dr.ª Catarata, coitada, acabou os seus dias num hospital psiquiátrico e os políticos logo, logo aproveitaram para encomendar mais uma estatuazita. Sempre daria para mais uma tesourada e alguns aplausos que devidamente contabilizados poderiam ajudar nas eleições. A coisa fez-se, sob assinatura de um escultor da terra que de forma curiosa e interessante trabalhou a sua homenagem ao extinto ou eclipsado Professor Asclépio. No sítio exato onde se esvanecera surgiu, passados alguns meses, uma estátua negra, de formas arredondadas, que tinha a particularidade de à luz do Sol escurecer e à noite, como se por magia, emanar uma estranha luz. A conselho do velho Tio Lupino, que já passara os cem anos, podia ler-se, em epitáfio, lembrando famosa sentença de Hermes: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem”.
 
Pedro Teixeira Neves, “Asclépio, o ‘Caçador de Eclipses’”, in Mealibra


Ligações:
    👉 Questionário.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Benfica vence a Supertaça de futebol feminino


 

Análise de "O Almoço do Trolha", de Júlio Pomar


             Este quadro é da autoria de Júlio Pomar e foi pintado em 1947, sendo considerado um dos marcos fundamentais da pintura neorrealista em Portugal.

            O espaço onde decorre a cena representada é quase completamente ocupado pelas figuras humanas, que parecem não caber nos limites da tela, uma sensação que é acentuada pelas barras que se veem em fundo, muito próximas, e pela envergadura do homem.

            As figuras humanas são, no fundo, seres confinados ao espaço que sobra, uma família pobre constituída por marido, esposa e filho. O homem é um trabalhador da construção civil, o que torna mais absurda a sua situação naquele espaço onde não cabe, ele que constrói o espaço para os outros. É forte, tem mãos grandes e fortes de trabalhador, mas o que ganha não é suficiente para levar uma vida que traga alegria e felicidade à família. O seu rosto é anguloso, quase duro, e digno. A seu lado, a mulher, que lhe trouxe o almoço ao local de trabalha, olha-o com ternura e tristeza em simultâneo. Está sentada num tijolo e tem um filho ao colo. A criança, muito pequena, parece triste. Seja qual for a sua situação económica e social, parece haver grande união e intimidade entre os três.

            A pintura, por outro lado, é áspera, como áspera é a vida dos trabalhadores e daquela família. As coras frias predominam, exceto no caso da figura feminina. Ela enverga um xaile vermelho vivo, o que significa que traz vida ao marido. Este vermelho, combinado com o verde da saia, confere harmonia e evoca a bandeira de Portugal. Por seu turno, o homem está vestido com tons claros, quase brancos, e, apesar da aspereza da pintura, parece irradiar uma certa luz que, conjugada com a sua força, faz dele uma espécie de herói em potência.

            Esta conceção do trabalhador como herói é uma das características centrais do Neorrealismo, que sustentava que a arte deveria estar ao lado da luta dos trabalhadores proletários pela sua libertação.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Análise do quadro "Intervenção Romântica"

            O quadro Intervenção Romântica é da autoria do pintor surrealista português António Pedro (1909 – 1966) e foi pintado em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial.

            Na pintura, vemos uma paisagem surreal, desolada, quase lunar, mas contendo algo de orgânico, concretamente uma mão e um corpo de mulher sem cabeça, em vez de árvores, paisagem essa que é palco de várias cenas.

            Em primeiro plano, à direita, quatro soldados matam-se uns aos outros pelas costas, configurando uma situação que funciona como denúncia do absurdo da guerra. Ao fundo, outro par de soldados funciona como demonstração da generalização da guerra. Ainda em primeiro plano, mas à esquerda, uma mulher vestida de branco – a cor que simboliza a paz – parece voar e mergulhar nas raízes da árvore-mulher. Atrás, num plano mais elevado, uma outra figura feminina, nua sobre um cavalo, transporta uma bandeira branca, a bandeira da paz. A olhar para ela, um homem que voa com a cabeça nas mãos – é um autorretrato do pintor.

            Face ao exposto, podemos concluir que existe um contraste entre os elementos masculinos, violentos, escuros, e os femininos, claros, simbolicamente associados à paz. O pintor, elemento masculino, direcionado para os soldados, inverte a sua posição, violentamente, opta por outro rumo, olhando para a mulher-paz.

            Ao centro, no plano superior, um pássaro gigante segura uma chave enorme nas patas, provavelmente a chave do conhecimento, que decifra o enigma do futuro da Humanidade num mundo assolado pela guerra.

            No que diz respeito às cores e à luz, as tonalidades dominantes são os castanhos dourados da paisagem. O céu, arroxeado, com tonalidades plúmbeas e amareladas, está carregado, denso. Ao longo de um clarão de luz – o clarão das bombas? Tudo isto, conjugado com o contraste claro-escuro, confere um intenso dramatismo à pintura.

            Por último, o título da pintura – Intervenção Romântica – remete para o único par que nela existe, isto é, o pintor que olha para a mulher da bandeira branca. Esse olhar desvia o artista do universo masculino e guerreiro e aproxima-o do universo feminino e pacífico. 

Análise do quadro "O nascimento de Vénus"


             “O Nascimento de Vénus” é uma obra de Sandro Botticelli, um dos mais conhecidos quadros do Renascimento italiano.

            A pintura revela uma das características do Renascimento e do Classicismo: o gosto pelos temas da mitologia clássica, visto que o tema é mitológico: o nascimento de Vénus, a deusa romana do amor e da beleza.

            No centro do quadro, está representada a deusa, nua, nascendo, como consta do mito, do oceano. De pele muito clara, lembrando o mármore puro das estátuas gregas e romanas antigas, os cabelos longos e dourados (ao gosto de Petrarca), manifesta uma postura suave, doce, bondosa, pudica e triste, com um olhar que irradia luz, mas que, em simultâneo, é distante, de deusa inacessível. Toda a figura está inundada de luz. É a encarnação do ideal de beleza renascentista.

            Do lado direito, encontramos uma ninfa, representação da primavera, que recebe a deusa, oferecendo-lhe um manto. O seu vestido ondulante imprime um suave movimento ao quadro e o seu gesto, em diagonal, é simétrico ao lado esquerdo da pintura, onde um par amoroso (o vento Zéfiro e a sua esposa Clóris) voa e impele a deusa para a costa. À volta, rosas – as flores de Vénus que, tal como o dourado das laranjeiras à direita – e os tons suaves de todo o ambiente, contribuem para dar a impressão de que toda a natureza está a ser tocada pela beleza e suavidade de Vénus.

A escola do século XIX em imagens – V


Albert Anker, Exame escolar (1862)

     Revisitando Albert Anker, deparamo-nos com o testemunho de uma realidade praticamente extinta na escola atual: o tradicional exame da 4.ª classe. Perante um punhado de examinadores – professores, inspetores, diretores escolares – os petizes de ambos os sexos devem demonstrar a sua aptidão académica.

    Numa escola suíça, vemos a tradicional sala com carteiras de bancos corridos, onde os alunos se acotovelam, à excepção do que está a ser examinado e do pequeno grupo dos que aguardam a sua vez – estes ficam de pé, à frente dos restantes, face ao examinador.

    Entre nós, o “exame da 4.ª classe” manteve-se até 1974, tendo sido abolido após a Revolução de Abril, tendo sido brevemente ressuscitado durante o ministério de Nuno Crato, embora em moldes diferentes, tanto do modelo do Estado Novo, como daquele que vemos nesta imagem. A verdade é que os tempos mudam, e tanto os objetivos e finalidades do ensino básico como a evolução das teorias e práticas pedagógicas acabaram por desaconselhar este tipo de avaliações formais, banidas na generalidade dos países.

Fonte: escolapt

Características da obra de Mário de Carvalho no conto «Corpos incompletos»

  • O gosto pelo fantástico: a atribuição de vida a estátuas e bustos de Lisboa.

  • As situações de quase absurdo: estátuas e bustos assumem capacidades, comportamentos, sentimentos e estados próprios dos seres humanos.

  • Fina ironia: «Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico.».

  • O domínio da língua portuguesa: adjetivação expressiva («subtil rugido», «a pronúncia sábia e feroz», «esbaforido», «olhares rancorosos», «muito domésticos»); diminutivos («saltinhos», «alegretes», «ceguinha»); recursos estilísticos diversos (ironia, etc.).
  • A inventiva vocabular: «maçadoria», «sopesou», «fitando», «revoada de clipocloques», «desacompanhados», «convergência objetiva», «parangonas».

Correção do questionário do conto "Corpos incompletos"


 1. O recurso estilístico é a personificação.

1.1. As expressões são as seguintes: «a estátua lia perfeitamente», «estado de deslumbramento», «ler e indignar-se», «deliberou manifestar-se».

2. Após o processo de restauro e limpeza, a estátua do marechal Saldanha verificou que a sua existência tinha melhorado, conseguir até ver, a grande distância, pormenores impossíveis a qualquer ser humano. Foi ao ler um conto de Pere Calders, que estava a ser lido dentro de um autocarro por um jovem, que decidiu manifestar-se por não concordar com o conteúdo da obra: afinal, as estátuas tinham vontade própria e alma, não eram apenas habitadas por personagens que saíam delas à noite.

3.1. O pressuposto apresentado é o conhecimento de que as estátuas de Lisboa comunicam com facilidade entre si.

3.2. O recurso estilístico é a ironia, a qual procura transportar os leitores para a ficção que está a desenhar-se. O universo fantástico deixa de estar apenas no domínio da narrativa e do narrador para ser partilhado pelos leitores.

4.1. O conector «Mas» veicula uma ideia de contraste, de oposição.

4.2. Apesar de todas as estátuas estarem desejosas de assumir movimento, aguardavam a reação do rei fundador, daquele a quem mais autoridade reconheciam.

4.3. Embora constitua um símbolo de força e coragem, a estátua de D. Afonso Henriques ponderou durante longo tempo («umas horas») a atitude a assumir, simplesmente por estar a considerar o peso do escudo, da espada e da malha de ferro. O narrador parece estar a querer caracterizá-lo, comicamente, como preguiçoso e comodista.

5.1. Quem deu o alarme foi o guarda Malaquias de Sousa, que rapidamente informou o sargento. Todos eles correram à janela para verem o que se passava, ficando, naturalmente, cheios de medo, considerando o sargento que a situação exigia decisões dos seus superiores. No largo, a multidão de estátuas mostrava-se ameaçadora, com espadas, pistolas, canhões... Até os leões estavam irrequietos. No fundo da manifestação, porém, encontravam-se as estátuas de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco a conversar na presença da Nudez Forte da Verdade.

5.2.1. O recurso expressivo é a hipálage, que faz transitar o sentimento da personagem (nervosismo) para um objeto que ela carrega - a espada. Parece intensificar-se, desta forma, a possibilidade de violência se vivia.

6.1. O que provocou este «frémito» foi a concentração de bustos que quiseram também manifestar-se e avançavam pela Alameda de D. Afonso Henriques. A consequência imediata que o narrador identifica é a reação de um homem que comia um bife no restaurante Portugália, que liberta um «Ena pá!», apercebendo-se da agitação. No entanto, o ruído era tão intenso que houve quem ligasse para a polícia a protestar.

7. O diminutivo «saltinhos» destaca a pequenez dos pulos possíveis aos bustos, enquanto no adjetivo «alegretes» o sufixo com valor diminutivo transporta uma ideia de ironia face à atitude dos bustos.

8. As frases conferem ao texto mais um elemento de comicidade. O uso do presente na primeira frase («Alguns agentes ainda estão hoje...») remete exatamente para o insólito da situação e para a falta de respostas legislativas e regulamentares.

9. Apesar da gravidade da situação e dos acontecimentos, o ministro responsável acabou por assumir uma atitude de indiferença («deixem lá, isso passa»), como se não ouvisse aquilo que estavam a dizer-lhe. E respondeu apenas por estar farto de telefonemas, não pela gravidade da situação.

10. Cansadas de estarem no largo a olhar, sem sequer ter havido qualquer acontecimento, as estátuas, quando se aperceberam da chegada dos bustos, decidiram retirar-se, Os bustos, depois de umas assobiadelas, regressaram também aos seus pedestais.

11. A relação entre estátuas e bustos não era boa. Em primeiro lugar, as estátuas decidiram manifestar-se e não convocaram os bustos, acabando por ser estes a decidirem-se também  pela concentração, considerando que não seriam inferiores, apesar de não terem um corpo completo. Quando os bustos chegaram ao lugar da concentração, são as estátuas que decidem, numa atitude de superioridade, afastar-se com dignidade, não querendo misturas, como se a presença dos bustos fosse indigna. Repare-se que os bustos referidos são de poetas...

11.1. As estátuas e os bustos colocaram-se em posição contrária à que tinham anteriormente.

12. A imprensa, no dia seguinte, apesar de ter já títulos sobre a insegurança e o vandalismo, desconhecendo as verdadeiras razões dos acontecimentos, depressa os substituiu por algo que atrairia mais as atenções: «um jogador de bola agrediu a própria mão, ceguinha». Logo que possível, o poder político procurou legislar para que este tipo de manifestações não mais fosse possível, determinando que se prendessem com cabos de aço todas as estátuas e bustos, como se a solução para os problemas fosse «acorrentá-los». Os comentadores, formadores de opinião, criticaram a medida principalmente do ponto de vista financeiro: seria uma medida dispendiosa. Evitaria, porém, outros desassossegos, outras manifestações.

13. Não é possível precisar o momento exato do início das ações da estátua do marechal Saldanha, que ocorreu durante o dia, mas quando a manifestação começou efetivamente, após «umas horas» de ponderação da estátua de D. Afonso Henriques, «A noite já ia adiantada.». O decurso do cortejo e da concentração verificou-se durante a noite, sendo que «A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume». O dia seguinte trouxe novos acontecimentos; «nessa noite» outras notícias desviaram as atenções da manifestação das estátuas e dos bustos que, «um mês depois», tentaram repetir as suas ações.

14. No que diz respeito à ciência ou focalização, o narrador é predominantemente omnisciente («cá de longe, a estátua lia perfeitamente"; «D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico.», apesar de, nalguns momentos, parecer apenas dedicar-se à focalização externa (como é o caso do momento em que assume o desconhecimento acerca do modo de comunicação das estátuas).

15. Os corpos dos protagonistas do conto são «corpos incompletos». O adjetivo «incompletos» pode remeter para o facto de as estátuas, como se refere no texto, serem apenas reproduções exteriores, «em corpo inteiro», do corpo humano, «(...) como se as estátuas fossem o invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma», e os bustos serem, até no plano material/físico, corpos inacabados, «mutilados», embora compensassem essa deficiência com «mais concentração de espírito». Por outro lado, enquanto reprodução dos seres humanos e animais, no decorrer da ação do conto as estátuas procuram completar a inteireza daqueles, adotando capacidades e atitudes que lhes são próprias.


Ligações:
    👉 Texto do conto.
    👉 Questionário.

Questionário sobre o conto "Corpos incompletos"

 1. O conto está construído com base num recurso estilístico. Identifique-o.

    1.1. Transcreva dos dois primeiros parágrafos expressões que justifiquem a resposta anterior.

2. Apresente as circunstâncias que originaram os acontecimentos narrados e justifica a atitude da estátua do marechal Saldanha.

3. No terceiro parágrafo, o narrador apresenta um pressuposto partilhado pelos leitores.

    3.1. Identifique-o.

    3.2. Identifique o recurso estilístico presente e a sua importância no texto.

4. «Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo.»

    4.1. Explique o valor do conector que inicia a frase.

    4.2. Justifique a atitude das estátuas.

    4.3. Caracterize a estátua de D. Afonso Henriques, tendo em conta os argumentos que pesaram na sua decisão.

5. Em cortejo, as estátuas dirigiram-se à Assembleia da República.

    5.1. Descreva a reação dos guardas e o ambiente que se verificava entre as estátuas.

    5.2. Atente na expressão «A espada de Saldanha muito nervosa».

        5.2.1. Identifique o recurso estilístico presente e refira a sua expressividade.

6. «... um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia.»

    6.1. Indique o acontecimento que provocou este fenómeno e refira as suas consequências.

7. Refira o valor expressivo do uso dos diminutivos na frase «os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes.»

8. Explique a intencionalidade das duas últimas frases do quinto parágrafo.

9. Comente a atitude do poder político perante a situação.

10. Apresente por palavras suas a forma como terminou a manifestação.

11. Descreva, a partir de elementos textuais, a relação entre estátuas e bustos.

    11.1. Mencione a «convergência» que se verificou entre eles.

12. Comente as repercussões finais da manifestação de estátuas e bustos ao nível do papel da imprensa, da diretiva comunitária e da posição dos formadores de opinião.

13. Refira o tempo em que decorre a ação, transcrevendo as marcas que assinalam a sua progressão.

14. Classifique o narrador do texto quanto à ciência e justifique a sua resposta.

15. Explique o título do conto.


Ligações:
    👉 Texto do conto.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Conto "Corpos incompletos", de Mário de Carvalho


     Restaurada de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na praça do mesmo nome, começou logo a sentir melhorias de vista. Distinguia pormenores muito afastados e considerou que tinha valido a pena aquela maçadoria de tapumes, andaimes, lixívias, abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de automóveis recolhia uma moeda ao pé do centro comercial e, cá de longe, a estátua lia perfeitamente: "República Portuguesa, Cem Escudos".
    Nesse estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem que dentro de um autocarro lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders, sobre personagens que habitavam as próprias estátuas e à noite saíam para arejar. O engarrafamento foi tão demorado que deu para a réplica do marechal ler o texto completo, ler e indignar-se. Era como se as estátuas fossem invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma. E deliberou manifestar-se.
    Como toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam facilmente umas com as outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de pássaros, em rumorejo de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas, mantém entre elas uma conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa Catarina, não tardou, e resmungava: "lá está o Saldanha com as dele" e o leão do Marquês emitiu um subtil rugido. O cavalo de D. José piscou mais uma víbora e o monarca, frívolo como era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: "Sus, sus!" Era o que todas as estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia adiantada.
    "Meu chefe, meu chefe!". O jovem soldado da GNR, Malaquias de Sousa, entrava esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da Assembleia da República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver. Todo aquele largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em pose ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar. A Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do Marquês de Pombal. "Passe aí o telemóvel", ordenou o sargento em voz trémula. Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
    Ainda Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava com Camilo Castelo Branco, na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi suficientemente sensível para que um sujeito que comia um bife na Portugália exclamasse: "Ena, pá!" O busto de Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro e desafiava-o para um desfile. E de busto em busto se transmitiu que não era justo que as estátuas em corpo inteiro se manifestassem e que os bustos se ficassem. Afinal, se nos bustos havia um corpo incompleto, a verdade é que exibiam "mais concentração do espírito". A frase foi do busto de um poeta, mas não me parece que tenha sido Junqueiro ou Verde. E, alinhados na Alameda de D. Afonso Henriques, os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes. Aquilo ressoava alto, e houve moradores que telefonaram para a polícia a protestar. Alguns agentes ainda estão hoje a consultar legislação e regulamentos camarários. Mas é duvidoso que encontrem qualquer disposição legal que proíba um busto ou uma estátua de circular pela cidade por seu próprio pé, base ou coto.
    A notícia chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro competente, farto de chamadas, ia dizendo: "deixem lá, isso passa!". E tinha razão. As estátuas cansaram-se de estar para ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver bulha de leões porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se logo, muito domésticos.
    Quando os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à Assembleia da República, numa revoada de clipocloques, as estátuas decidiram retirar-se, com dignidade. Não queriam aquela companhia, nada de misturas. Os bustos, desacompanhados, deram umas voltas, provocaram os leões com assobiadelas e voltaram para os seus pedestais. A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume. Não se tratou de combinação prévia. Foi uma convergência objetiva.
    Houve em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria comunicação social chegou a ter informação e preparou-se para noticiar: "Insegurança: vandalismo generalizado desloca monumentos". No entanto, nessa noite, um jogador de bola agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as parangonas.
    Quando, um mês depois, estátuas e bustos se preparavam nova manifestação foram surpreendidos por uma diretiva comunitária proposta por Portugal e aceite por unanimidade. Todos os bustos de estátuas da Europa passaram a ser obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
    A alguns formadores de opinião a medida pareceu pateta e, sobre isso, dispendiosa. Mas talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos que se pouparam.

In Mealibra

Ligações:

Correção do questionário sobre o conto "As mãos dos pretos"

 1. Por que é que as palmas das mãos e dos pés das pessoas negras são mais claras do que o resto do corpo?

1.1. O Professor considera que a brancura das mãos dos pretos deriva da sua falta de sol.
        O Senhor Antunes da Coca-Cola afirma que a cozedura exterior do corpo dos negros determinou a brancura das suas mãos.
        O Senhor Frias crê o frio da água destinou à brancura apenas as palmas das mãos e os pés dos pretos.
        Um livro sustentava que, vivendo encurvados, os negros mantiveram as palmas das mãos brancas.
        Dona Estefânia afirma as mãos dos negros desbotaram à custa de muitas lavagens.
        A Mãe diz que as mãos dos pretos são iguais às de todos os homens.

2.1. As personagens do texto são o Professor, um homem pragmático; o Padre, um indivíduo frio e indelicado que justifica a realidade por meio da fé; a Dona Dores, uma mulher preconceituosa e racista, que justifica a realidade recorrendo à sua fá religiosa; o Senhor Antunes, uma pessoa de fé, fantasiosa e bem-disposta; o Senhor Frias, um homem crente e imaginativo; a D. Estefânia, uma personagem prática, que explica a realidade a partir da sua realidade; a Mãe, uma mulher carinhosa, bem-disposta, refletida, de crença religiosa e que defende a igualdade de direitos entre as pessoas de «raças» diferentes; o Narrador, um jovem curioso e insatisfeito.

2.1.1. O processo usado é a caracterização indireta, visto que os traços característicos de cada personagem não são apresentados diretamente pelo narrador ou por qualquer personagem, mas inferidos a partir da sua atuação (comportamento e atitudes) e das suas palavras no decorrer da ação.

2.2. A personagem principal é o jovem que narra a ação, isto é, o narrador.

2.3. O narrador trata as as personagens adultas a quem se dirige ou refere pelas fórmulas «Senhor» e «Dona», que representam um tratamento respeitoso característico de relações em que existe, por exemplo, uma hierarquia etária, como é o caso, ou mesmo social e cultural, exemplificada pelas referências ao «Senhor Professor» e ao «Senhor Padre».

3.1. As palavras e expressões são as seguintes: «não sei», «Lembrei-me», «nós não prestávamos», «os pretos eram melhores do que nós».

3.2. No que diz respeito à presença, o narrador é participante e autodiegético, dado que é uma personagem do texto. Quanto à focalização, aquele adota a perspetiva interna da própria personagem que ele encarna.

3.3. As palavras e expressões que demonstram que o narrador tende a exagerar a sua presençã são as seguintes: «Eu», «me», «nós», etc.

4. À semelhança do que sucede, por exemplo, com o conto tradicional popular, este texto não possui grandes marcas temporais, para sustentar a intemporalidade do tema que aborda, concretamente o racismo e a necessidade da sua discussão.

5.1. O espaço físico é a África.

5.2. No que respeita ao espaço social, predomina no conto a classe média colonizadora.

6.1. As palavras e expressões coloquiais do discurso do Senhor Antunes da Coca-Cola são, por exemplo, «resolveram fazer», «Sabes como?», «Pegaram», «enfiaram-no», «Fumo, fumo, fumo», «escurinhos como carvões», «Pois então».

6.2. O registo coloquial confere verosimilhança ao texto.

7.1. De acordo com a mãe do narrador, os pretos existem por decisão de Deus, para haver equilíbrio na humanidade.

7.2. O uso de reticências nessa fala remete para a omissão da consciência de que a criação de Deus pode ter sido um erro, gerador de racismo.

7.3. A referência insistente a Deus constitui uma marca da fé e crença religiosas características das pessoas de «raça» branca, que colonizaram África, e que se tornou bandeira dos Descobrimentos e da colonização.

8.1. Jogar à bola é uma atividade lúdica, de entretenimento, o que significa que as atividades deste género aliviam o sofrimento.

8.2. O choro da mãe significa provavelmente que a memória do sofrimento, por conhecer a escravatura e o racismo, ou por ter sido vítima dos mesmos, é aceite.

9. A moral do conto aponta para a ideia de que as pessoas não valem pelo que parecem ser, mas pelo que são efetivamente e, sobretudo, pelas suas ações e atitudes.

10. A expressão enfática «é que» sublinha o acaso do surgimento da longa reflexão sobre a cor das mãos dos pretos.

11. O diminutivo constitui uma expressão coloquial de intenção pleonástica, no sentido de vincar uma determinada ideia.


Ligações:
    👉 Texto.
    👉 Questionário.

Questionário sobre o conto "As mãos dos pretos"


 1. Toda a ação do conto gira em torno de uma questão. Formule-a.

    1.1. Sintetize cada uma das explicações apresentadas como resposta a essa questão numa só expressão ou frase.

2. Detenha-se nas personagens.

    2.1. Identifique-as e trace um breve retrato de cada uma delas.

        2.1.1. Refira o processo de caracterização de que se serviu para responder à pergunta anterior.

    2.2. Ainda que o núcleo de personagens seja reduzido, como é característica de uma narrativa curta como conto, distinga a personagem principal.

    2.3. Justifique a deferência no tratamento de algumas personagens por parte do narrador.

3. O conto é rico em palavras e expressões que provam a presença do narrador na ação.

    3.1. Faça o levantamento desse vocabulário presente no primeiro parágrafo.

    3.2. Classifique o narrador do conto quanto à presença e à focalização.

    3.3. Transcreva palavras e/ou expressões textuais que demonstrem que o narrador tende, por vezes, a exagerar a sua presença.

4. Explique a (quase) total ausência de marcas temporais.

5. No que diz respeito ao espaço, o conto possibilita uma associação a um espaço físico lato, mas concreto.

    5.1. Identifique-o.

    5.2. Indique o espaço social, atendendo à tipologia das personagens.

6. A linguagem do conto tende, por vezes, para a coloquialidade, quer no que toca ao discurso do narrador, quer no discurso direto.

    6.1. Proceda ao levantamento de palavras e expressões coloquiais do discurso da personagem Senhor Antunes da Coca-Cola.

    6.2.Explique em que medida o registo coloquial enriquece a narrativa.

7. A última personagem que explica a brancura das mãos dos pretos é a mãe.

    7.1. Apresente a razão pela qual, na sua perspetiva, existem pretos.

    7.2. Comente a expressividade da pontuação da segunda frase do discurso da mãe.

    7.3. Explique a referência insistente a Deus.

8. Releia o último parágrafo do conto.

    8.1. Explique a necessidade que o narrador tem de anular a informação da sua fuga com a referência a que foi jogar à bola.

    8.2. Apresente uma interpretação para o choro da mãe.

9. Indique a moral do conto.

10. Na primeira frase do texto surge uma expressão enfática. Identifique-a e comente a sua expressividade.

11. Explique o emprego do diminutivo na expressão «Coisa certa e certinha».


Ligações:
    👉 Texto do conto.

A escola do século XIX em imagens – IV


Jan Steen, Escola rural (c.1665)

 

    De volta ao século XVII para ilustrar uma presença comum em muitas escolas ao longo dos tempos, até mesmo nos progressistas Países Baixos: o castigo corporal, neste caso aplicado com recurso à palmatória, um instrumento de punição, alguns dirão mesmo de tortura, que muitos portugueses hoje idosos ainda tiveram o desprazer de conhecer nos seus tempos de escola. Aqui quem, sob o olhar atento dos colegas, dá a mão à palmatória, é um desafortunado rapaz que terá, ao que podemos supor, rasgado e atirado ao chão a folha onde fazia os exercícios.

    É muito antiga, e até certo ponto faz sentido, a associação do estudo ao esforço: para aprender é preciso vontade, determinação, persistência, espírito de sacrifício. Mais difícil de aceitar, e nos dias de hoje ideia definitivamente posta de parte, é que esse esforço deva assumir a forma de punição física. O velho ditado espanhol, la letra con sangue entra, não é definitivamente, para tomar à letra…

    Voltando ao quadro, repare-se na simplicidade do mobiliário, numa sala de aula ainda pouco estruturada enquanto tal. Mesas e bancos – apenas o professor se sentará numa cadeira – compõem o mobiliário e contrastam com as lousas e os objetos de uso doméstico e quotidiano pendurados nas paredes. Escreve-se em folhas e cadernos com penas que se molhavam em tinteiros. O lápis não era ainda de uso comum e a caneta com aparo só surgirá no século XIX. No topo da imagem, passando quase despercebida num primeiro olhar, uma prateleira fixa à parede aloja os livros e papéis necessários ao ofício do mestre-escola.

Fonte: escolapt

Conto "As mãos dos pretos"


     Já não sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
    Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar sejam quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim mais claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazem e que não deva ficar senão limpa.
    O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
    "Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!".
    Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
    Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse  muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
    Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
    Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
    A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quiser saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela fosse foi mais ou menos isto:
    "Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes por que é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos".
    Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
    Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

in Nós Matámos o Cão Tinhoso

Ligações:

terça-feira, 23 de agosto de 2022

I Don't Want To Talk About It, Rod Stewart e Amy Belle


        Há a música e depois isto.

        2004, no Royal Albert Hall.

        Amy Bell: 💞!
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