Asclépio Euclides, especialista em eclipses, lunares e
solares, embora graduado com distinção nestes últimos, tentava acalmar a sua
audiência quanto aos efeitos nefastos do fenómeno solar que se previa para os
dias seguintes, um eclipse solar a oitenta por cento! “Poderão, de qualquer
modo, e se assim o entenderem – isto é, se o medo for muito… –, ir rezar umas ave-marias
e uns pai-nossos para a igreja. O Padre Santinho por certo vos acolherá dizendo
que ‘a luz de Deus, essa, jamais se apagará aos fiéis!’”. E sorriu, tirando os
óculos ao mesmo tempo que passava a palavra à sua colega de bancada, a Dr.ª Letícia
Catarata. Que usou da dita nestes termos: “O Doutor Euclides brinca. Nada
receiem. Uma certeza, porém! Não deverão jamais olhar diretamente para p Sol.
Os eclipses são fenómenos perfeitamente naturais e não só nunca fizeram mal a
ninguém como nunca farão.” Certo, muito certo, mas a Dr.ª Catarata enganava-se.
Tão rotundamente como a note que daí a três dias, em pleno meio-dia, engoliria
a quase totalidade da luz solar. Estava-se em 1968, o país tratava-se de razões
com o segundo grande eclipse solar do século e o professor Asclépio Euclides,
malgrado toda a sua experiência na matéria, que inclusive lhe valera o cognome
de “caçador de eclipses”, teria ainda muito com que se espantar.
Pio, como desde petiz era conhecido entre familiares e
amigos, começou a interessar-se por acontecimentos raros, fenómenos científicos
e afins, teria aí os seus cinco, seis anos. Com os pais e as suas sete irmãs,
vivia nesses tempos do princípio do século em Moçambique, próximo da exuberante
Foz do Rovuma. O Doutor Lupino, tio de Asclépio, morava também, havia
meia-dúzia de anos, com a prestigiada família Euclides Semedo e fora ele o “culpado”
da verdadeira paixão do sobrinho pelas “coisas da ciência”, como às apetências
da criança sempre se referia, em conversas com amigos, o pai do pequeno Pio,
Thomás Euclides Semedo, desse modo como que dizendo esperar que fossem aquilo
apenas “manias da idade”. Que não eram, como se verá.
O tio Lupino servira em Lourenço Marques durante largos anos,
mas depois de uma aparatosa operação de salvamento em que se tinha envolvido, a
um corneteiro da rainha que caíra às revoltas águas de um rio, Lupino, batendo
com a cabeça num tronco de +arvore, passara a sofrer de uma progressiva “falta
de memória”, como vaticinaram diplomaticamente os dois médicos chamados a
opinar sobre o caso. Acontecera isso em 1902 e logo delicadamente foi Lupino
convencido, ou, melhor, convidado a antecipar a reforma da sua valorosa
carreira militar. Não lhe fizeram a coisa sem mais nem menos, pois sempre se
tratava de um Comandante. Para que não fizesse muitas ondas, lavraram-lhe então
um louvor em que se elencavam todos os seus feitos em cumprimentos de missão,
documento esse que a própria Rainha se encarregou de assinar. Nos seguintes
termos constava e o mesmo Lupino, aos olhos de quantos visitavam a fazenda
Semedo, fazia questão de dar a conhecer:
“Louvor ao Comandante Euclides Semedo,
Em virtude de: 1.º No decorrer da expedição aos Grandes Lagos,
em 1879, ter salvo a golpe de espada, e com risco da própria vida, um seu
subordinado que se vira atacado por um feroz leão; 2.º Aquando da expedição a
Inhambane, em 1893, ter providenciado e comandado de forma pronta e célere o
combate às chamas que haviam deflagrado no acampamento do corpo expedicionário;
3.º Ter participado, em 1895, com brio e valentia insuperáveis, nas campanhas
de pacificação de Moçambique comandadas pelo excelentíssimo Capitão Mouzinho de
Albuquerque; 4.º Ter, em 1902, e enquanto Comandante da Coluna do Barué, em
operações por Manica, ajudado ao salvamento do corneteiro da Rainha n.º 6/199
da segunda companhia que por accidente cahiu ao rio Inhamucarara; ter ainda
participado nas seguintes ações: Combate de Xoarira, Ataque e tomada da Denga
de Ranguand, Escaramuça ao norte do monte Nhangara, Recontro de Bexinga, todos
estes atos em 1902.
Por, em todas estas ocasiões, ter dado bastas provas da sua
louvável filantropia, recomenda o Excelentíssimo General Seraphim Ferreira
Júnior que individualmente se louve o Comandante Lupino Euclides Semedo.
Lourenço Marques, 25 d’agosto de 1902
o General Seraphim F. Júnior
a Rainha
(assinaturas irreconhecíveis)”
Solteirão dos quatro costados, o Comandante Lupino decidiu-se,
pois, em virtude do acidente acima descrito, a ir morar com o irmão, à data
Governador-Geral de Colónia, posto cimeiro na hierarquia da administração
colonial em Moçambique. E era um pequeno génio o homem que desde então passou a
fazer companhia ao jovem Asclépio – filho nunca tido embora sempre desejado –,
povoando-lhe a infância de descobertas e sensações que jamais esqueceria. Enquanto
as sete manas se entretinham com a mãe e duas precetoras a aprender as graças e
predicados de boas fadas do lar, e, nos intervalos da culinária e dos lavabos,
a dedilhar intermináveis escalas no velho piano de cauda, Asclépio, ou Pio,
embrenhava-se com Lupino pelas matas circundantes à casa da fazenda em
autênticas expedições científicas ao melhor estilo de um Serpa Pinto, que não muito
antes se embrenhara com sucesso pelos intestinos africanos, aventurando-se por
terras e horizontes onde até então só bicharada existia – pelo menos na
imaginação e conhecimento dos ocidentais, cujos mapas da época, de resto, isso
mesmo comprovavam apresentando ferozes e coloridos animais no interior do
Continente Negro; foi assim até finais do século XIX. Mas juntos, dizia-se,
como se duas crianças, que um era, o outro já nem por isso, sobrinho e tio
demoravam-se horas após horas, tardes após tardes, dias após dias, meses e anos
por fim, inventariando fauna e flora que lhes aparecessem pela frente. E não
era tão pouca quanto isso! No velho barracão por detrás das cavalariças,
entretinham-se depois de cada investida prospetiva, até que os chamassem para o
jantar, a catalogar os espécimes apanhados, constituindo aquilo que na família
já se dizia ser um “Museu de História Natural”. Na verdade, não seria muito
mais do que um interesse gabinete de curiosidades. Mas foram anos passados
naquela vida, investidos em verdadeiros cientistas, biólogos, botânicos,
geógrafos, geólogos e até astrónomos, num crescendo de aprendizagem “in loco”
que teve um dos seus pontos altos no ano de 1919, quando se deu o primeiro
eclipse total do Sol em terras de Moçambique.
Foi esse dia o espoletar de uma paixão arrebatadora em
Asclépio. Embrenhou-se nos manuais, cresceu a pedir ao Tio Lupino que mandasse
vir da Metrópole e do estrangeiro literatura sobre o assunto, e quando chegou à
idade universitária, já em Coimbra, perdeu-se em bibliotecas estudando tudo o
que alguma vez fora estudado e posto em papel sobre Eclipses. A coisa foi a tal
ponto que Asclépio só aguentou os grossos volumes e legislações de Direito em
que o pai insistira que cursasse. As ciências eram o seu futuro. E foram, tendo
Asclépio vindo a formar-se em Ciências Astronómicas com vinte valores,
especializando-se e discutindo teses versando os eclipses solares. Terminado o
curso, o então já Doutor Asclépio percorreu o mundo numa verdadeira caçada aos
eclipses, desse modo aprofundando os seus conhecimentos. Um dia, em entrevista
a um programa de rádio, chegou a confidenciar ter perdido a conta ao número de
eclipses testemunhados – o entrevistador, um radiofonista de nome Igrejas qualquer
coisa, espantou-se numa voz de tom afetado e ondulante, perguntando depois pela
“querida mãezinha do Doutor Asclépio”.
Em Moçambique, onde regressava regularmente, passou a ser
conhecido como “o caçador de eclipses”. Era um homem querido pelas populações,
um homem da terra cuja bonomia e ciência cativavam o mais relutante espírito, e
que por isso mesmo, no ano de 1968, por via da aproximação do segundo eclipse
solar no território, convidado a fazer um esclarecimento geral sobre eclipses,
congregou em palestra um vasto auditório de negros e brancos. Um facto de
monta, tanto mais que nessa altura o povo moçambicano, a exemplo das demais colónias
portuguesas, encontrava-se em guerra contra a Metrópole num processo de
conquista e independência então ao rubro. “Nada temam”, disse a Dr.ª Letícia
Catarata secundando as palavras e a boa disposição do Professor Asclépio
Euclides. As pessoas saíram confiantes, gargalhando os medos e os temores. Três
dias depois se veria, afinal, o que era aquilo de um eclipse total, ou quase, e
que efeitos na realidade teria.
No dia do eclipse, a calma, na medida do possível, reinava em
Lourenço Marques. Na praça central da cidade, com as esplanadas cheias e todas
as janelas abertas em sentinela para o céu, Asclépio encontrava-se rodeado de
pessoas que, sabe-se lá por que razão, talvez pelo currículo do professor,
junto dele mais seguras se sentiam. Aguardavam expectantes, e quando o Sol
começou a vestir-se de negro uma onda de suspiros ressoou no silêncio
instalado. E foram três minutos de bocas abertas e olhos apontados às alturas numa
tal concentração que ninguém reparou que ali mesmo, pés bem assentes no chão,
um outro fenómeno decorria. Foi um grito estridente da Dr.ª Catarata, seguido
de desmaio, que deu o alerta: “Professooooooooor!!!” Meteu medo! Então,
clareando de novo o dia, puderam todos aperceber-se do sucedido, fenómeno esse,
sim, digno do maior espanto e respeito. Ali, no meio da praça, o próprio
Professor Asclépio começando por ver-se assolado, dos pés para a cabeça, por
uma densa sombra negra, acabou, primeiro por ficar negro como um tição, e logo
depois, num estalar de dedos, por desaparecer como se por magia. Esfumando-se,
nem mais nem menos. Um “Ahhhhhhhhhh” de espanto ainda maior que o antecedente
varreu a praça. Claro está, foi de novo um corrupio a lembrar o de 1919 e, como
setenta e duas horas antes vaticinara no seu discurso o Doutor Asclépio, mesmo
se brincando, o Padre Santinho não teve mãos a medir.
Com o tempo o povo e as autoridades aceitaram o sucedido.
Explicações, houve quem as tentasse, mas sem sucesso. A Dr.ª Catarata, coitada,
acabou os seus dias num hospital psiquiátrico e os políticos logo, logo
aproveitaram para encomendar mais uma estatuazita. Sempre daria para mais uma
tesourada e alguns aplausos que devidamente contabilizados poderiam ajudar nas
eleições. A coisa fez-se, sob assinatura de um escultor da terra que de forma
curiosa e interessante trabalhou a sua homenagem ao extinto ou eclipsado
Professor Asclépio. No sítio exato onde se esvanecera surgiu, passados alguns
meses, uma estátua negra, de formas arredondadas, que tinha a particularidade
de à luz do Sol escurecer e à noite, como se por magia, emanar uma estranha
luz. A conselho do velho Tio Lupino, que já passara os cem anos, podia ler-se,
em epitáfio, lembrando famosa sentença de Hermes: “Grande milagre, ó Asclépio,
é o homem”.
Pedro Teixeira Neves, “Asclépio, o ‘Caçador de
Eclipses’”, in Mealibra
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