Português: Conto «Asclépio, o "Caçador de Eclipses"», de Pedro Teixeira Neves

sábado, 27 de agosto de 2022

Conto «Asclépio, o "Caçador de Eclipses"», de Pedro Teixeira Neves

        Asclépio Euclides, especialista em eclipses, lunares e solares, embora graduado com distinção nestes últimos, tentava acalmar a sua audiência quanto aos efeitos nefastos do fenómeno solar que se previa para os dias seguintes, um eclipse solar a oitenta por cento! “Poderão, de qualquer modo, e se assim o entenderem – isto é, se o medo for muito… –, ir rezar umas ave-marias e uns pai-nossos para a igreja. O Padre Santinho por certo vos acolherá dizendo que ‘a luz de Deus, essa, jamais se apagará aos fiéis!’”. E sorriu, tirando os óculos ao mesmo tempo que passava a palavra à sua colega de bancada, a Dr.ª Letícia Catarata. Que usou da dita nestes termos: “O Doutor Euclides brinca. Nada receiem. Uma certeza, porém! Não deverão jamais olhar diretamente para p Sol. Os eclipses são fenómenos perfeitamente naturais e não só nunca fizeram mal a ninguém como nunca farão.” Certo, muito certo, mas a Dr.ª Catarata enganava-se. Tão rotundamente como a note que daí a três dias, em pleno meio-dia, engoliria a quase totalidade da luz solar. Estava-se em 1968, o país tratava-se de razões com o segundo grande eclipse solar do século e o professor Asclépio Euclides, malgrado toda a sua experiência na matéria, que inclusive lhe valera o cognome de “caçador de eclipses”, teria ainda muito com que se espantar.
Pio, como desde petiz era conhecido entre familiares e amigos, começou a interessar-se por acontecimentos raros, fenómenos científicos e afins, teria aí os seus cinco, seis anos. Com os pais e as suas sete irmãs, vivia nesses tempos do princípio do século em Moçambique, próximo da exuberante Foz do Rovuma. O Doutor Lupino, tio de Asclépio, morava também, havia meia-dúzia de anos, com a prestigiada família Euclides Semedo e fora ele o “culpado” da verdadeira paixão do sobrinho pelas “coisas da ciência”, como às apetências da criança sempre se referia, em conversas com amigos, o pai do pequeno Pio, Thomás Euclides Semedo, desse modo como que dizendo esperar que fossem aquilo apenas “manias da idade”. Que não eram, como se verá.
O tio Lupino servira em Lourenço Marques durante largos anos, mas depois de uma aparatosa operação de salvamento em que se tinha envolvido, a um corneteiro da rainha que caíra às revoltas águas de um rio, Lupino, batendo com a cabeça num tronco de +arvore, passara a sofrer de uma progressiva “falta de memória”, como vaticinaram diplomaticamente os dois médicos chamados a opinar sobre o caso. Acontecera isso em 1902 e logo delicadamente foi Lupino convencido, ou, melhor, convidado a antecipar a reforma da sua valorosa carreira militar. Não lhe fizeram a coisa sem mais nem menos, pois sempre se tratava de um Comandante. Para que não fizesse muitas ondas, lavraram-lhe então um louvor em que se elencavam todos os seus feitos em cumprimentos de missão, documento esse que a própria Rainha se encarregou de assinar. Nos seguintes termos constava e o mesmo Lupino, aos olhos de quantos visitavam a fazenda Semedo, fazia questão de dar a conhecer:
 

“Louvor ao Comandante Euclides Semedo,

 
Em virtude de: 1.º No decorrer da expedição aos Grandes Lagos, em 1879, ter salvo a golpe de espada, e com risco da própria vida, um seu subordinado que se vira atacado por um feroz leão; 2.º Aquando da expedição a Inhambane, em 1893, ter providenciado e comandado de forma pronta e célere o combate às chamas que haviam deflagrado no acampamento do corpo expedicionário; 3.º Ter participado, em 1895, com brio e valentia insuperáveis, nas campanhas de pacificação de Moçambique comandadas pelo excelentíssimo Capitão Mouzinho de Albuquerque; 4.º Ter, em 1902, e enquanto Comandante da Coluna do Barué, em operações por Manica, ajudado ao salvamento do corneteiro da Rainha n.º 6/199 da segunda companhia que por accidente cahiu ao rio Inhamucarara; ter ainda participado nas seguintes ações: Combate de Xoarira, Ataque e tomada da Denga de Ranguand, Escaramuça ao norte do monte Nhangara, Recontro de Bexinga, todos estes atos em 1902.
Por, em todas estas ocasiões, ter dado bastas provas da sua louvável filantropia, recomenda o Excelentíssimo General Seraphim Ferreira Júnior que individualmente se louve o Comandante Lupino Euclides Semedo.
 
Lourenço Marques, 25 d’agosto de 1902
 
o General Seraphim F. Júnior
a Rainha
(assinaturas irreconhecíveis)”
 
Solteirão dos quatro costados, o Comandante Lupino decidiu-se, pois, em virtude do acidente acima descrito, a ir morar com o irmão, à data Governador-Geral de Colónia, posto cimeiro na hierarquia da administração colonial em Moçambique. E era um pequeno génio o homem que desde então passou a fazer companhia ao jovem Asclépio – filho nunca tido embora sempre desejado –, povoando-lhe a infância de descobertas e sensações que jamais esqueceria. Enquanto as sete manas se entretinham com a mãe e duas precetoras a aprender as graças e predicados de boas fadas do lar, e, nos intervalos da culinária e dos lavabos, a dedilhar intermináveis escalas no velho piano de cauda, Asclépio, ou Pio, embrenhava-se com Lupino pelas matas circundantes à casa da fazenda em autênticas expedições científicas ao melhor estilo de um Serpa Pinto, que não muito antes se embrenhara com sucesso pelos intestinos africanos, aventurando-se por terras e horizontes onde até então só bicharada existia – pelo menos na imaginação e conhecimento dos ocidentais, cujos mapas da época, de resto, isso mesmo comprovavam apresentando ferozes e coloridos animais no interior do Continente Negro; foi assim até finais do século XIX. Mas juntos, dizia-se, como se duas crianças, que um era, o outro já nem por isso, sobrinho e tio demoravam-se horas após horas, tardes após tardes, dias após dias, meses e anos por fim, inventariando fauna e flora que lhes aparecessem pela frente. E não era tão pouca quanto isso! No velho barracão por detrás das cavalariças, entretinham-se depois de cada investida prospetiva, até que os chamassem para o jantar, a catalogar os espécimes apanhados, constituindo aquilo que na família já se dizia ser um “Museu de História Natural”. Na verdade, não seria muito mais do que um interesse gabinete de curiosidades. Mas foram anos passados naquela vida, investidos em verdadeiros cientistas, biólogos, botânicos, geógrafos, geólogos e até astrónomos, num crescendo de aprendizagem “in loco” que teve um dos seus pontos altos no ano de 1919, quando se deu o primeiro eclipse total do Sol em terras de Moçambique.
 O fenómeno dos eclipses foi, na realidade, de tudo quanto lhe aguçou a curiosidade do tio Lupino, o que mais entusiasmou o pequeno Asclépio. E quantas noites não demorou ele a adormecer esforçando-se por compreender, como vira nas páginas de um magnífico livro ilustrado inglês, tamanho mistério da natureza. E assistir a um desses milagres d ao vivo!? Não seria fantástico!? – Mas quando, Tio Lupino, quando?, perguntava-lhe amiúde todo ansiedade. Na verdade, de por via da raridade de tais acontecimentos, o jovem Pio só aos dezanove anos pôde pela primeira vez testemunhar um eclipse solar, e logo um eclipse total! Foi isso a 29 de maio de 1919, dia em que na generalidade do território moçambicano, mas com especial incidência ou privilégio de primeira plateia para as populações da Foz do Rovuma, todos os olhos, muito brancos e arregalados, se voltaram desprevenidos e temerosos para o Astro-Rei. Reza a história – e muito rezou o padre local, o pároco Maciel Vinhas, para que as populações se acalmassem e a vida voltasse à normalidade! – que foi naquelas terras um desatino de primeira grandeza. Uma coisa assim nunca vista, com gentes de todas as idades disparando para debaixo de tudo quanto fosse sítio ou toca, gritando ais e ajudas, socorros e clemências aos mais dignos e mesmo aos mais indignos deuses que se conheciam ou conheceram por tais bandas. Para que se tenha uma ideia do pandemónio que três minutos de Sol encoberto criaram, diga-se tão-só que nunca como naquele santo dia o Padre Maciel vira a sua igreja tão cheia de ovelhas – claro está que para ele era um regalo! De plantão, nas semanas seguintes, ficaram igualmente, e como se compreende, todos os curas, curandeiros, adivinhos e sibilas da terra. Kalunga, Deus do Mar, foi um dos mais requisitados, e entre feitiços, idolatrizações, amuletos e talismãs, havia para todos os gostos. Ao invés, contentes da vida e alheios a toda esta parafernália de medos e crendices, na sua fazenda, em posto de observação eleito, Lupino e Pio deslumbravam-se com o fenómeno.
Foi esse dia o espoletar de uma paixão arrebatadora em Asclépio. Embrenhou-se nos manuais, cresceu a pedir ao Tio Lupino que mandasse vir da Metrópole e do estrangeiro literatura sobre o assunto, e quando chegou à idade universitária, já em Coimbra, perdeu-se em bibliotecas estudando tudo o que alguma vez fora estudado e posto em papel sobre Eclipses. A coisa foi a tal ponto que Asclépio só aguentou os grossos volumes e legislações de Direito em que o pai insistira que cursasse. As ciências eram o seu futuro. E foram, tendo Asclépio vindo a formar-se em Ciências Astronómicas com vinte valores, especializando-se e discutindo teses versando os eclipses solares. Terminado o curso, o então já Doutor Asclépio percorreu o mundo numa verdadeira caçada aos eclipses, desse modo aprofundando os seus conhecimentos. Um dia, em entrevista a um programa de rádio, chegou a confidenciar ter perdido a conta ao número de eclipses testemunhados – o entrevistador, um radiofonista de nome Igrejas qualquer coisa, espantou-se numa voz de tom afetado e ondulante, perguntando depois pela “querida mãezinha do Doutor Asclépio”.
Em Moçambique, onde regressava regularmente, passou a ser conhecido como “o caçador de eclipses”. Era um homem querido pelas populações, um homem da terra cuja bonomia e ciência cativavam o mais relutante espírito, e que por isso mesmo, no ano de 1968, por via da aproximação do segundo eclipse solar no território, convidado a fazer um esclarecimento geral sobre eclipses, congregou em palestra um vasto auditório de negros e brancos. Um facto de monta, tanto mais que nessa altura o povo moçambicano, a exemplo das demais colónias portuguesas, encontrava-se em guerra contra a Metrópole num processo de conquista e independência então ao rubro. “Nada temam”, disse a Dr.ª Letícia Catarata secundando as palavras e a boa disposição do Professor Asclépio Euclides. As pessoas saíram confiantes, gargalhando os medos e os temores. Três dias depois se veria, afinal, o que era aquilo de um eclipse total, ou quase, e que efeitos na realidade teria.
No dia do eclipse, a calma, na medida do possível, reinava em Lourenço Marques. Na praça central da cidade, com as esplanadas cheias e todas as janelas abertas em sentinela para o céu, Asclépio encontrava-se rodeado de pessoas que, sabe-se lá por que razão, talvez pelo currículo do professor, junto dele mais seguras se sentiam. Aguardavam expectantes, e quando o Sol começou a vestir-se de negro uma onda de suspiros ressoou no silêncio instalado. E foram três minutos de bocas abertas e olhos apontados às alturas numa tal concentração que ninguém reparou que ali mesmo, pés bem assentes no chão, um outro fenómeno decorria. Foi um grito estridente da Dr.ª Catarata, seguido de desmaio, que deu o alerta: “Professooooooooor!!!” Meteu medo! Então, clareando de novo o dia, puderam todos aperceber-se do sucedido, fenómeno esse, sim, digno do maior espanto e respeito. Ali, no meio da praça, o próprio Professor Asclépio começando por ver-se assolado, dos pés para a cabeça, por uma densa sombra negra, acabou, primeiro por ficar negro como um tição, e logo depois, num estalar de dedos, por desaparecer como se por magia. Esfumando-se, nem mais nem menos. Um “Ahhhhhhhhhh” de espanto ainda maior que o antecedente varreu a praça. Claro está, foi de novo um corrupio a lembrar o de 1919 e, como setenta e duas horas antes vaticinara no seu discurso o Doutor Asclépio, mesmo se brincando, o Padre Santinho não teve mãos a medir.
Com o tempo o povo e as autoridades aceitaram o sucedido. Explicações, houve quem as tentasse, mas sem sucesso. A Dr.ª Catarata, coitada, acabou os seus dias num hospital psiquiátrico e os políticos logo, logo aproveitaram para encomendar mais uma estatuazita. Sempre daria para mais uma tesourada e alguns aplausos que devidamente contabilizados poderiam ajudar nas eleições. A coisa fez-se, sob assinatura de um escultor da terra que de forma curiosa e interessante trabalhou a sua homenagem ao extinto ou eclipsado Professor Asclépio. No sítio exato onde se esvanecera surgiu, passados alguns meses, uma estátua negra, de formas arredondadas, que tinha a particularidade de à luz do Sol escurecer e à noite, como se por magia, emanar uma estranha luz. A conselho do velho Tio Lupino, que já passara os cem anos, podia ler-se, em epitáfio, lembrando famosa sentença de Hermes: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem”.
 
Pedro Teixeira Neves, “Asclépio, o ‘Caçador de Eclipses’”, in Mealibra


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