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sábado, 30 de novembro de 2024

Análise do 7.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens


    Apesar na sua crença na vida para além da morte e da sua continuação noutro plano, enquanto mãe, não deixa de recear pelo destino do principezinho, o que mostra que está consciente dos perigos que agora corre, após a morte do pai: “[…] também ela tremia pelo seu principezinho!”. Atente-se na expressividade do determinante possessivo «seu», que reflete a devoção, o cuidado e o afeto maternal que a aia sente pelo príncipe, que trata como se fosse seu filho. Além disso, mostrou-se, ao longo do tempo, ansiosa e extremamente preocupada com o destino do herdeiro do trono, reconhecendo a sua fragilidade e o longo caminho que terá de percorrer até ao estado de adultez: “[…] pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada […]”. Muito tempo passaria ainda até que ele pudesse ocupar o seu legítimo lugar no reino e exercer o poder.

    Deste modo, a aia não esconde a sua preocupação com o destino do principezinho, sobretudo por causa da ameaça constante do tio bastardo, que deseja usurpar o trono e, para tal, terá de se desfazer do sobrinho. Este receio, esta preocupação revelam o seu forte sentido de dever, responsabilidade e lealdade.

    Apesar de todo o afeto que nutre pelo príncipe, a aia possui um amor superior pelo próprio filho. Ao contrário do herdeiro do trono, que está relacionado com o poder e rodeado de inimigos e de perigos, o pequeno escravo, por causa dessa sua condição, está livre dessas questões, daí que a mãe sinta que está mais protegido do que o príncipe: “Esse, na sua indigência, nada tinha a recear na vida.”

    Este parágrafo torna claro que, não obstante demonstrar uma ternura por ambas as crianças, o faz de formas diferentes. Assim, os beijos q     ue dá ao príncipe são “ligeiros”, enquanto os entregues ao escravozinho são “pesados e devoradores”, metáfora que significa que são mais intensos, viscerais, profundos e possessivos. Outra metáfora – “Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despidos das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço…” – apresenta-o como desprovido, desde o seu nascimento, de qualquer riqueza ou estatuto social, pois até a sua nudez é coberta apenas por um “pedaço de linho branco”. Contrariamente ao príncipe, que está destinado a assumir grandes possibilidades, a deter enorme poder e a viver rodeado de riqueza, o pequeno escravo nada tem a perder em termos materiais, porque nada possui.

    Ora, essa ausência de bens materiais e de estatuto social, proporcionam-lhe uma certa liberdade e proteção física e emocional: as preocupações e os problemas associados ao poder e à riqueza, que pesarão, no futuro, sobre o príncipe, não o atingirão: “[…] nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo.”

    Por outro lado, a afirmação segundo a qual “A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe” quer dizer que, embora o príncipe seja o herdeiro de um trono e, em termos materiais, a sua vida possa ser considerada mais importante, logicamente, para a aia, a vida do seu filho possui mais valor. Que a razão justifica esta postura? O escravozinho tem à sua frente uma existência com menos cuidados e preocupações que, na sua mente, “enegrecem a alma” dos que possuem e exercem o poder. Assim sendo, uma vida simples e humilde são superiores, na ótica da aia, a uma existência marcada pelo exercício do poder e das responsabilidades que caberão ao príncipe.

    Outra personagem visada neste excerto é o tio bastardo, que é descrito como uma pessoa «cruel», sombria e ameaçadora. Fisicamente, tem a pele escura (comparação hiperbólica “de face mais escura que a noite”) e, psicologicamente, possui uma maldade interior superior, mais profunda do que a sua expressão exterior (comparação hiperbólica “coração mais escuro que a face”), é extremamente ambicioso e deseja fortemente o trono (“faminto do trono”), que procura usurpar sem quaisquer escrúpulos. Além disso, retoma-se neste parágrafo a metáfora do lobo, de atalaia, à espera da presa (“… espreitando de cimas do seu rochedo entre os alfanges da sua horda!”), ou seja, sugere-se que está à espreita, a observar e a esperar o momento oportuno para atacar, tal como faz um animal predador. Assim sendo, confirma-se que o tio representa uma ameaça constante para o príncipe e o reino.


Elementos simbólicos

 
    A peça de linho branco que envolve o corpo do príncipe é simbólica. Por um lado, o branco está associado, tradicionalmente, à pureza e à simplicidade, parecendo enfatizar a ideia de que uma vida despojada de ambições e preocupações é extremamente valiosa. Por outro lado, poderemos estar perante uma crítica ao fardo que constitui uma existência caracterizada pela riqueza e pelo exercício do poder.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A molher d’ Alvar Rodriguiz tomou", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Estêvão da Guarda, é constituída por duas sétimas de rima interpolada e emparelhada (ABBABBA) e tem como figura visada a mulher de Álvaro Rodrigues por ter sido abandonada pelo marido e, por isso, se recusa a “chegar-se a ele”, que é o equivalente a dizer que a sátira visa efetivamente o segundo e não a esposa. Deste modo, pode concluir-se que o tema da composição é o lamento da mulher pela ausência do marido, o que nos recorda o queixume da donzela da cantiga de amigo relativamente ao seu amado exatamente pelo mesmo motivo.
    Efetivamente, a mulher de Álvaro Rodrigues queixou-se (“tomou tal queixume” – o advérbio de intensidade e grau intensifica o queixume, sugerindo que é especialmente forte, fora do comum) por o marido ter partido para longe (“sel foi daquém”) e a ter abandonado. Como consequência, desde que ele regressou, ela “nunca s’a el chegou”, isto é, nunca mais se aproximou dele, nunca mais teve qualquer gesto de afeto, nunca mais permitiu o contacto físico entre ambos, o que seria mais do que comum no seio de um casal, para mais tendo em conta que estiveram separados durante algum tempo. Esta recusa constitui, portanto, o castigo reservado pela mulher para o marido por este a ter abandonado. Independentemente das circunstâncias, nem a bem nem a mal, ela não se aproxima dele. É uma outra forma de abandono que a esposa pratica, em resposta ao abandono de que foi vítima, e pretende continuar: “nem quer chegar”.
    Convém esclarecer que não existem dados que permitam identificar este Álvaro Rodrigues. De acordo com a cronologia, poderia tratar-se de Álvaro Rodrigues Redondo, referido pelo Nobiliário do Conde D. Pedro enquanto criado de D. Álvaro Gonçalves Pereira, prior dos Hospitalários e do Crato. Esta figura era filha de uma dona do Crato e neto (ou mesmo filho), por via bastarda, do trovador Rodrigo Anes Redondo. Antes de assumir a chefia da Ordem, Álvaro Rodrigues Pereira esteve em Rodes, tendo participado na guerra contra os Turcos, juntamente com os homens de armas e cavaleiros que levara de Portugal, de acordo com os textos de Fernão Lopes. De acordo com estes dados, se se confirmasse que este Álvaro Rodrigues seria efetivamente a figura da cantiga, estariam enquadradas as alusões à sua partida para “Além-Mar” que surgem nalgumas cantigas a ele dirigidas. O Conde D. Pedro refere-se-lhe numa cantiga como sendo monteiro-mor.
    Os três versos iniciais da primeira estrofe esclarecem que a mulher só retomará o contacto, o relacionamento, se ele lhe assegurar (“jurando-lhe ante que, a bõa fé”) não voltará a deixá-la como deixou. Deste modo, é possível concluir que a esposa não sente confiança no marido, que só voltará a aproximar-se se estiver certa das intenções dele, o que parece indiciar, por um lado, que valoriza a estabilidade, a sinceridade e a honestidade e, por outro, que Álvaro Rodrigues não observou essas características até então, nomeadamente aquando da sua partida.
    A repetição do verbo «leixar» («deixar») é muito significativa, antecedida do advérbio de negação «não» e seguida do termo comparativo «como». Começando pelo advérbio, este enfatiza a ideia da recusa absoluta, passe o pleonasmo, e da firmeza da mulher ao declarar que não tolerará nova situação de abandono nos termos em que se processou a anterior. Por outro lado, a reiteração de formas do verbo «leixar» estabelece um contraste entre o passado (em que foi abandonada e, por isso, sofreu a dor da solidão) e o presente, apontando também para o futuro, em que recusa a repetição da situação e exige um compromisso ao marido de que tal não se repetirá. O comparativo «como» enfatiza o modo como Álvaro Rodrigues a deixou, provavelmente insensível, insincero, desrespeitoso, circunstância que não tolerará que se repita: ela não permitirá que ele a abandone novamente da mesma forma que o fez anteriormente.
    Esta cantiga parece evidenciar uma nova atitude por parte da mulher da época, visto que a personagem da composição evidencia uma firmeza e uma liberdade que eram pouco comuns na época, na qual o género feminino estava quase sempre sujeito à vontade dos maridos. Além disso, a sua atitude demonstra um caráter forte, determinado, colocando-a numa posição de poder relativamente ao marido, o que configura uma inversão de papéis. Por outro lado, o texto mostra que aprendeu com o passado e que não permitirá que a situação se repita, a de um abandono abrupto e insensível.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético designa Álvaro Rodrigues como «cativo», nome que, por um lado, sugere o facto de ele ser prisioneiro / estar subjugado à vontade e determinação da mulher (que recusa a sua aproximação e só a tolerará se o marido preencher uma condição) e, por outro, o qualifica como pessoa infeliz, desgraçada, não só pela recusa da mulher, mas também por não a conseguir demover da sua resolução (“nõn’a pode desta seita partir”), nem recorrendo a meios violentos: ameaças (“nem per meaças”) ou agressões físicas (“nem pela ferir”). Quer isto dizer que o visado pode recorrer à ameaça ou à intimidação, mas nada disso derrubará a sua determinação e força.
    O verso «nem per meaças nem pela ferir» reflete a sociedade da época medieval e os relacionamentos entre homens e mulheres. Assim, o comportamento de Álvaro Rodrigues, efetivo ou aludido, de ameaçar ou agredir fisicamente a esposa reflete o poder e a autoridade que o homem detinha sobre a mulher numa sociedade patriarcal. Curiosamente, a personagem feminina foge ao estereotipo epocal, não cedendo às ameaças do esposo, antes lhe resistindo firmemente. Trata-se de uma subversão da relação de poder característica daquele tempo, usada pelo trovadorismo para criticar os padrões sociais, que levavam os homens a crer que poderia ser possível conquistar o afeto feminino através de ameaças, da força física, da violência e da coerção.
    Ironicamente, a resistência e a obstinação da recusa da mulher poderão ser facilmente vencidas (“se a quer desta sanha tirar”): o marido tem de jurar “bõa fé” (isto é, tem de se comprometer) que nunca mais a abandonará (“a jurar / que a nom leixe em neum tempo já.”). Significa isto que a esposa exige sinceridade, lealdade e compromisso total da parte de Álvaro Rodrigues.
    Este aspeto aponta para uma reflexão sobre o valor da “bõa fé”, da lealdade, da sinceridade, do compromisso como bases para um relacionamento, para um matrimónio. Por outro lado, a exigência de que o homem jure lealdade à esposa constitui uma inversão do papel tradicional dos géneros: nesta cantiga, é ela quem estipula condições ao marido, invertendo o padrão social. A figura feminina exige um compromisso verdadeiro, recusando-se a ceder à intimidação ou à violência, o que evidencia a sua força e capacidade de resistência em defesa dos seus interesses e convicções.
    A cantiga, intencionalmente ou não, critica o abandono temporário ou definitivo das mulheres pelos maridos, uma temática que percorre grande parte do trovadorismo, e que é exposta, neste caso, através da resolução / queixa da mulher de Álvaro Rodrigues. A resposta da esposa é inusitada, já que enfatiza uma postura de resistência feminina numa sociedade patriarcal: ela impõe uma condição firme para retomar o relacionamento – ela só se voltará a “chegar ao marido” caso este prometa de que não voltará a ser abandonada, demandando lealdade e estabilidade, valores que o marido não terá demonstrado anteriormente. Neste contexto, Álvaro Rodrigues mostra-se totalmente impotente para vencer a determinação da consorte: “nem per meaças nem pela ferir, / ela por en neua rem non dá”. A única solução que lhe resta é jurar “a bõa fé” de que não a voltará a abandonar. Em suma, a cantiga critica não apenas o marido, mas a estrutura social que normalizava o abandono das mulheres, sós, desprotegidas e dependentes.

Análise da cantiga "A mim dam preç’, e nom é desguisado", de Afonso Anes do Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Afonso Anes do Cotom, chegou até nós incompleta: uma única estrofe (sétima) com rima interpolada e emparelhada. Nela, compara-se o aspeto físico de três maljeitosos: o próprio trovador, João Fernandes e Pero da Ponte, o qual levaria a palma aos outros dois.
    O sujeito poético começa por referir que tem a fama ou reputação – que não é despropositada, ou seja, é certeira – de ser maljeitoso. Para que não haja dúvidas, volta a confirmar que concorda com essa apreciação: “e nom erram i”.
    O verso três refere-se a um tal Joam Fernandes, figura de difícil identificação, desde logo por se desconhecer o seu apelido. Se considerarmos que a cantiga datará de cerca de 1241 e terá sido produzida em Castela, poder-se-ia tratar de Juan Fernández Valdés, senhor de Beleña, que faleceu na batalha de Martos, em Jaen, em 1275. Um outro candidato seria João Fernandes de Lima, marido da Ribeirinha, a famosa barregã de D. Sancho I, após a morte do monarca, e que antes tinha sido casado, em primeiras núpcias, com Berenguela Afonso de Baião, tia do trovador D. Afonso Lopes Baião. Desempenhou cargos importantes nos reinos de Leão e Portugal, tendo falecido por alturas de 1245.
    Joam Fernandes pertence também ao grupo dos maljeitosos. Ele é conhecido pela alcunha de “o mouro” por causa do seu aspeto físico, como é confirmado pela rubrica de uma cantiga de Martim Soares (“Joam Fernándiz, um mour’est aqui”).
    Outro dos homens que faz parte do grupo é o trovador Pero da Ponte, que supera os dois anteriormente citados. De facto, se alguém o visse em «cós», isto é, sem manto, em corpo bem feito, parecer-lhe-ia “moi peor talhado”, ou seja, o mais maljeitoso.
    Em suma, esta cantiga constitui uma sátira dirigida a três figuras específicas (o próprio Afonso do Cotom, João Fernandes e Pero da Ponte) e à sua aparência. Ironicamente, o sujeito poético inclui-se no grupo dos maljeitosos, o que pode configurar uma forma de autoironia, através da qual ri de si mesmo, enquanto satiriza os demais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A Dom Foam quer’eu gram mal"

    Esta cantiga, da autoria de João Garcia de Guilhade, é de escárnio e maldizer, de mestria e finda, em cobras uníssonas, com dobre (vv. 1 e 7 de cada estrofe: “mal” – est. 1; “já maenfestou” – est. 2; “falar” – est. 3). Nela, o trovador, em simultâneo, elogia uma dona e critica o seu marido, explicitando claramente o que seriam os bastidores do amor cortês.
    O poema abre com a alusão a “Dom Foam” (= D. Fulano), uma fórmula usual nas cantigas trovadorescas para omitir uma identidade concreta, a quem o «eu» poético deseja “gram mal”, ao contrário do que sucede com a sua esposa, por quem expressa a sua admiração e deseja “gram bem”. Esta antítese (“mal” / “bem”) estabelece a linha condutora da composição poética: o elogio da esposa e a crítica ao marido. Esses sentimentos já o acompanham há muito tempo (“gram sazom há que m’est’avém”) e não mudarão (“e nunca i já farei al”), ou seja, o trovador não fará outra coisa, nunca se desviará deste propósito, nunca mudará de atitude relativamente à figura masculina (sempre o criticará e desprezará) e à feminina (sempre a exaltará).
    A partir do verso 5, o trovador explicita o momento em que começou a experimentar esses sentimentos pelas duas personagens, isto é, desde que viu a mulher (“ca, des quand’eu sa molher vi”), deduzindo-se que tal sucede por ela ser muito bela. E é essa beleza que o seduz e causa o encanto, bem como a aversão pelo marido. A partir desse dia, serviu-a sempre que pôde, não obstante ser casada, e, em simultâneo, procurou o mal para Dom Foam, por a amar ou por o considerar indigno dela.
    Enfaticamente, o sujeito poético declara querer manifestar os seus sentimentos, algo que pesará muito a alguém – certamente Dom Foam –, porém isso mão o impede de o fazer. Ele está consciente que a sua postura poderá ter consequências sérias: mesmo que “morra” por o fazer, quer dizer mal do mau, ou seja, criticar o marido (o “mão”) e bem “da que mui bõa for”, isto é, elogiará a sua esposa, que caracteriza como “mui bõa”, expressão que reforça a exaltação das virtudes da mulher, como sucede na cantiga de amor. O verso seguinte, na esteira deste tipo de cantar, através de uma hipérbole, apresenta-a como uma mulher perfeita, única, a melhor: “qual nom há no mundo melhor” (ou seja, é a melhor de todas, quer física, quer sobretudo psicológica e moralmente). O verso final da cobla reforça a ideia do inicial, isto é, de manifestar publicamente o seu elogio da mulher e a crítica do esposo: “quero-[o] já maenfestar”.
    A terceira cobla explicita a razão da hipérbole do verso 13, descrevendo as qualidades da mulher: nenhuma outra a supera na aparência física (“De parecer”) e na forma de falar, de comunicar, de se expressar (isto é, sabe estar, conviver), e nas boas maneiras (“e de bõas manhas haver”). Esta figura feminina é o protótipo da mulher perfeita, sem igual, superior a todas as outras, como se conclui do uso de nova hipérbole: “ela, non’a pode vencer / dona no mund”. Tendo em conta que se trata de uma mulher casada e juntando isto à caracterização que, sumariamente, dela é feita, não restam dúvidas de que esta composição poética traça o retrato da mulher característico da cantiga de amor. Obedecendo às regras desse género poético, o trovador faz uso da mesura e da cortesia e não a identifica, nem ao marido, dado ser casada. A expressão “a meu cuidar” enfatiza a ideia que se trata da sua opinião.
    Os três versos finais desta estrofe apresentam outro traço típico da mulher do cantar de amor: ela é de origem divina (“ca ela fez Nostro Senhor”, o que justifica a sua perfeição física e moral e a coloca num plano superior ao do trovador, o que a torna inacessível, desde logo pelo seu caráter divino. Em contraste, o marido da “senhor” é uma criação do “Demo”, uma criação do Mal. Para que não restem dúvidas sobre a sua origem, o «eu» poético afirma que as suas palavras e ações são guiadas pelo Diabo. Esta nova antítese (Deus / Diabo) liga-se à anterior e explicita o motivo por que ela é digna de elogios e ele de crítica.
    A finda, constituída por três versos, clarifica que, por ambos serem da maneira descrita nos versos anteriores, caberá a Deus, que tudo pode e vale, julga-los tal como o trovador os encara. Porque “ataes” (marido e esposa) são assim (ele foi criado pelo Diabo e representa o Mal, logo é objeto de crítica; ela, por Deus e representa o Bem, daí ser digna de elogio) e como o trovador sente por eles o que enunciou, caberá a Deus o julgamento de ambos, dado ser quem tem valor e poder para tal. Assim, será a divindade a declarar o veredito final sobre as virtudes da esposa e as falhas do marido, ou seja, estamos na presença de um julgamento moral superior. E quem poderá contestar Deus?

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A ũa velha quisera trobar", de Afonso Anes do Cotom

 
A ũa velha quisera trobar
quando’em Toledo fiquei desta vez,
e veo-me Orraca López rogar
e disso-m’assi; - Por Deus que vos fez
nom trobedes a nulha velh’aqui
ca cuidarám que trobades a mim.
 
    Esta cantiga de Afonso Anes do Cotom continua o tema de outra que a precede nos manuscritos (“Orraca López vi doente um dia”): a velhice de Orraca López. De acordo com vários estudiosos, a cantiga está incompleta, o que não impede a compreensão da sua sátira.
    O sujeito poético, no primeiro verso, exprime o desejo de cantar uma “velha” em Toledo. Por um lado, estamos perante uma sátira relacionada com a cantiga de amor, dado que, de acordo com os seus cânones, o trovador cantava uma dama jovem, bela, perfeita e inacessível, ou seja, cantava a beleza e a juventude, não a velhice e a feiura. Por outro lado, o «eu» poético trata a mulher de forma depreciativa, usando o nome «velha» sem mais (poderia, por exemplo, usar a palavra como adjetivo – “mulher velha” –, o que suavizaria a abordagem), para enfatizar a ideia da velhice, desvalorizando e depreciando a mulher. Além disso, a expressão “ũa velha” (o recurso ao indefinido indicia que poderia ser qualquer uma) retira a individualidade da figura feminina, reduzindo-a a um traço – a idade – que ignora a sua identidade como mulher ou pessoa. A intenção do trovador é unicamente destacar a velhice de uma qualquer mulher e as suas implicações sociais e culturais, bem como o modo como a sociedade medieval observava as mulheres mais velhas.
    Toledo, então, era uma cidade e província de Castela-La Mancha, na margem direita do rio Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das principais cidades medievais da Península Ibérica. Foi aí que o trovador chegou “desta vez”, o que sugere a sua itinerância, andando de terra em terra a compor as suas cantigas. Nesta ocasião, o ponto de paragem foi Toledo, onde tinha a intenção de cantar uma mulher velha. Encontrou, então, Orraca López (ou Urraca Lopes, provavelmente uma soldadeira), o objeto da sátira, que se dirige ao «eu» para que lhe rogar que não trove a nenhuma velha da cidade. Esse rogo é antecedido da invocação de Deus (“Por Deus que vos fez”), que sugere a ansiedade da mulher relativamente ao que teme que o trovador faça.
    O último verso conhecido da cantiga explicita o motivo que está na base do pedido de Orraca López: se o sujeito lírico escrever uma cantiga dedicada a uma velha, todos pensarão que o texto é sobre ela, ou seja, ela representa a mulher velha, a velhice. Deste modo, a figura em questão encontra-se numa situação de vulnerabilidade, tendo em conta o modo como a sociedade de então olhava e tratava as mulheres de idade avançada, desvalorizando-as, escarnecendo-as e até marginalizando-as. A mulher jovem e bela deseja ser cantada, ver os seus atributos físicos e a sua juventude ser reconhecidos pelos outros, mas a mulher velha e, consequentemente, feia não. Deste modo, além de visar a temática da cantiga de amor, esta composição aborda igualmente a questão da autoimagem e da perceção que a sociedade tem de cada pessoa. Quem gostaria de ser conhecido e comentado publicamente por traços socialmente considerados negativos? Quem gostaria de ser ridicularizado publicamente?
    A concetualização da mulher nesta cantiga satírica, como em muitas outras, assenta na substantivação de velha como a mulher em si, ou seja, o termo «velha» caracteriza não uma qualidade da figura feminina descrita, mas a existência de um ser caricato com rosto, personalidade e características próprias. E isso é feito através do uso substantivado do adjetivo «velha».

domingo, 24 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A um frade dizem escaralhado", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, não possui refrão), em coblas singulares (ou seja, com estrofes com o mesmo esquema rimático), da autoria de Fernando Esquio, trovador provavelmente ativo entre o final do século XIII e início do XIV, compreende uma sátira, em termos bastante crus, a um frade que se dizia impotente, mas engravidava todas as mulheres que lhe passavam por perto, tendo três delas dado à luz no mesmo dia. Assim sendo, desde já, podemos concluir que a afirmação da impotência por parte do frade serve para esconder as suas aventuras sexuais.
    A cantiga aborda questão da libertinagem na sexualidade, a partir da referência à virilidade sexual de um frade, que se fazia passar por aleijado ou impotente: “A um frade dizem escaralhado, / e faz pecado quem lho vai dizer”. Ou seja, quem espalha esse rumor sobre o frade comete um pecado, isto é, comete um erro. A razão é simples: “ca, pois el sabe arreitar de foder, quer dizer, possui potência, virilidade, para praticar o sexo, o que o deixa feliz (de acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, “gai” – alegre – é um termo provençal que, tradicionalmente, era lido por vários estudiosos como “que gaj’é” – que é um gajo –, todavia o termo “gajo” só começou a ser atestada em português em meados do século XIX, pelo que a sua utilização nesta cantiga não parece verosímil; eventualmente, podemos também associar o vocábulo ao sentido de “promíscuo”). O calão “de piss’arreitado” reforça a promiscuidade do religioso e o desrespeito pelas normas da religião que professava, nomeadamente a do celibato. Por aqui passa a crítica do trovador à quebra desse voto por parte do clero.
    Resumidamente, o trovador fala de um frade que dizem ser impotente (“escaralhado” significa “desprovido de membro viril”), boato que o próprio religioso teria confirmado. Na verdade, não só seria dotado de pénis, como este funcionava muito bem – como se depreender da expressão “saba arreitar de foder”, que indicia a sua potência sexual – e tem ótima disposição para o sexo, de modo que, como se verá, engravidou várias mulheres, por isso, ao invés de “escaralhado”, é um homem “bem encaralhado”.
    O escárnio e a sátira acentuam-se com a referência ao facto de o frade engravidar todas as mulheres com quem se deita (hipérbole), gerando diversos filhos e filhas, o que prova que é “bem encaralhado”, ou seja, que é bem potente sexualmente, ao contrário da fama de impotente que possui. De facto, o religioso não peca de forma isolada, antes continuada e profícua. O uso recorrente do calão expõe-no como um símbolo de corrupção e desrespeito pelos preceitos religiosos. Em simultâneo, se conectarmos a mensagem da cantiga à atualidade, poderemos considerar que a crítica se vira para a própria instituição Igreja, por forçar os seus membros a adotar comportamentos anti-natureza, como o celibato, isto é, a inibição do sexo.
    A ironia acentua-se na segunda estrofe: o sujeito poético afirma, ironicamente, que nunca usaria o termo “escaralhado” para designar o frade e fá-lo como se fosse uma espécie de concessão: “Escaralhado nunca eu diria”. Exemplificativo do seu vigor sexual é o facto de trazer o membro viril: “mais que traje ante caralho ou veite” (termo provençal que significa «verga», «pau», ou seja, em sentido figurado, pénis. Mais esclarecedora é a afirmação segundo a qual tem várias mulheres de leite, quer dizer, a amamentar filhos seus. Estes versos (“ao que tantas molheres de leite / tem”) tem duas leituras possíveis: a primeira sugere que o frade mantém relações sexuais com mulheres lactantes; a outra que o religioso se torna para as mulheres um deleite sexual, pelo seu “caralho arreitado”. A sátira atinge o zénite com a hipérbole “ca lhe parirom três em um dia”, isto é, três mulheres deram à luz, engravidadas por ele, no mesmo dia. Além disso, como se não bastassem já os factos apresentados para desmentir a sua pretensa impotência sexual, ficamos a saber que o frade possui muitas outras mulheres grávidas: “e outras muitas prenhadas que tem”. Em suma, o religioso tem mulheres engravidadas por si a amamentar; três deram à luz na mesma data; muitas outras estão grávidas. O que se pode concluir de todas estas provas? O frade seria muito “encaralhado” por isto. A ironia é clara: o indivíduo é o oposto de “escaralhado”, de impotente; pelo contrário, é particularmente dedicado ao sexo e fértil, como o comprovam as inúmeras mulheres com quem manteve relações sexuais e que engravidou
    O trovador, ao longo do poema, enfatiza sistematicamente a quantidade exagerada de mulheres com as quais se relacionam sexualmente. Na terceira estrofe, são apresentados outros exemplos: o da famosa soldadeira Marinha e de uma pastorinha prenhe, além de “muitas molheres que fode”. Deste modo, o «eu» lírico afirma, logo no primeiro verso, que tal homem “Escaralhado nom pode ser”. A conclusão, óbvia, surge nos dois versos finais da cantiga: um frade assim, por tudo isto, tem que ser muito viril (“e atal frade bem cuid’ eu que pode / encaralhado per esto seer”. Observe-se que o termo «arreitado» ainda é usado na Baía. No Brasil, nas formas “arretado” e “retado”, com o sentido de alguém muito masculino e também de pessoa ágil e firme. Os dois sentidos acabam por se ligar, dado que a ideia de firmeza sempre se associou à sexualidade.
    Em suma, o trovador enfatiza as habilidades do frade, referenciando-as cinco vezes (vv. 3, 4, 5-6, 7 e 9). O frade teria tantas parceiras sexuais que, em determinada ocasião, teriam nascido, no mesmo dia, três crianças de três mulheres engravidadas pelo frade. O trovador chega, inclusive, a citar o nome de uma das mulheres com quem o religioso se relacionava: chamava-se Marinha e seria mãe de vários filhos dele. O «eu» poético fala de uma «pastorinha», termo que significava uma mulher jovem, indiciando que o frade tinha engravidado também uma jovem de pouca idade, além de diversas outras mulheres.
    Estilisticamente, além do uso da ironia (“A um frade dizem encaralhado, / e faz pecado em que lho vai dizer”; “e atal frade cuid’eu que mui bem / encaralhado per esto seria”) e do calão cru, há que destacar o jogo com as palavras «escaralhado», que designa alguém impotente, e «encaralhado», que apontam para alguém constrangido, que se encontra em situação difícil ou de embaraço. Assim sendo, o primeiro vocábulo associa a figura do frade a uma pessoa que possui uma reputação indesejável, a de ser incapaz de manter relações sexuais, o que, em termos práticos, até se poderia considerar benéfico, pois, deste modo, mesmo que contra a sua (eventual) vontade, ele respeitaria o voto de castidade. Por sua vez, a segunda palavra remete para uma reputação conotada com a virilidade, a masculinidade, mas também à devassidão e à luxúria.
    A anáfora, presente no uso repetido da conjunção coordenativa copulativa «e», serve o propósito de intensificar o caráter devasso e a virilidade do frade, visto que serve a enumeração dos factos que o atestam [o caráter]: “e pois emprenha estas com que jaz / e faze filhos e filhas assaz”; “ca lhe parirom três em um dia, / e outras muitas prenhadas que tem; / e atal frade…”. O diminutivo «pastorinha», equivalente a «mocinha» / «jovenzinha», carrega em si as ideias de pureza e simplicidade, bem como de juventude, logo de inocência, em tese, da figura feminina (em tese, porque, na prática, mantém relações sexuais com o frade), que contrastam com a do frade, devasso e experiente, pelo que não lhe seria difícil seduzir uma jovem. A aliteração em «f» (“e faze filhos e filhas assaz”) enfatiza a consequência da devassidão do frade e da sua atividade sexual repetitiva e sem contenção: o gerar de uma quantidade grande de filhos. A hipérbole (“tantas molheres de leite tem, / ca lhe parirom três em um dia”) dá nota do número elevado de mulheres com quem o frade manteve relações sexuais e, consequentemente, engravidou, indiciando o comportamento devasso e descontrolado, completamente alheio ao dever de castidade. O religioso é, de facto, um homem extremamente fértil e com uma vida sexual bem ativa, em suma, um femeeiro contumaz.
    Nesta cantiga, a impotência é apresentada como estratégia de conquista do frade, que age de modo a sugerir que sofre de impotência (de estar escaralhado – versos 1, 8 e 15), em que muitos acreditavam. Deste modo, não se trata efetivamente de impotência do religioso, mas, pelo contrário, de uma forma de encobrir, aos olhos das demais pessoas, a sua intensa atividade sexual e desrespeito pelo voto de castidade.
    De forma genérica, o trovador denuncia que um frade, que todos creem impotente, na verdade não o era, bem pelo contrário. O adjetivo qualificativo «escaralhado» significa, ao pé da letra, “aquele que não tem o seu membro viril”. O sentido de não o ter desse modo procura sugerir a ideia de que não servia para tal fim, ou seja, era impotente. No entanto, o trovador atesta que “el sabe arreitar de foder” (v. 3), o que significa que o pénis funciona em pleno, como o atesta o facto de engravidar as mulheres com quem se relaciona (v. 5). Os versos finais de cada estrofe apresentam outro qualificativo – «encaralhado» (vv. 7, 14 e 21) –, que significa o oposto de «escaralhado», isto é, quer dizer “portador de membro viril”.
    O uso desses vocábulos confirma a existência de um mecanismo característico da cantiga de amor: o dobre. Este recurso consiste num processo através do qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na primeira estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas seguintes deverá repetir-se uma palavra na mesma posição). O primeiro dobre, focado nos versos iniciais das estrofes, refere-se à palavra «escaralhado», ou seja, impotente. O segundo dobre é o qualificativo «encaralhado», presente nos derradeiros versos das estrofes, e indicia que o frade, afinal, não é impotente, pelo contrário, é um expert em matéria de sexo.
    Esta cantiga, em suma, denuncia a prática recorrente na época: a manutenção de concubinas por parte de membros do clero, o que contraria as recomendações saídas do IV Concílio de Latrão, que teve lugar em 1215. A questão é que o trovador insinua que o frade pratica sexo de forma ostensiva, inclusive com mulheres que amamentam (porque geraram filhos seus).
    De acordo com Hugo Gonçalves [in Prática Sexual e Humor nas Construções Identitárias da Nobreza Portuguesa na Corte Dionisina (1279-1325), Goiás, 2014), “A manutenção de relações sexuais por parte de clérigos era uma preocupação não só da igreja. De uma maneira ou de outra, o poder secular se envolveu nestas questões, visando restringir esse tipo de envolvimento. Ao clérigo que se casasse com mulheres virgens, era-lhe reservada a justiça secular: fosse através de um processo, fosse pela cítola. Em uma lei datada de 1305, Dom Dinis reivindica para o poder secular o direito de julgar os clérigos que se envolvessem com mulheres virgens. Essa atitude visava proteger as mulheres – especialmente as pertencentes a qualquer círculo da nobreza, que seriam as ideais para o casamento – de se envolverem com algum clérigo que não pudesse dispor de bens para seu favorecimento. Portanto, a petição do monarca é de que o clérigo que violentasse alguma mulher leiga fosse excomungado como se tivesse agredido a outro clérigo, e por isso passasse para as mãos da justiça régia […].
    Outra forma de fazer justiça consistia nas sátiras, pois era uma maneira de se denunciar práticas vigentes e condenáveis aos olhos daquela sociedade. Através do humor, do riso e da pilhéria, se criavam situações, hipotéticas ou não, que certamente traziam certa desconfiança para os adeptos das práticas deletadas. Seus delatores, bem como a maioria da audiência, certamente se deleitavam em imaginar os envolvidos, ou ainda certamente acusavam uns e outros de serem os atores da cena, comentando o clima humorístico envolto nas encenações destas cantigas.
    Portanto, retorna-se à questão da cultura do insulto, pois essas delações pressupunham que houvesse certo afastamento deste clérigo das “muitas molheres que fode” (v. 19), já q eu não o poderia. É impossível reconstruir o ambiente de encenação dessas cantigas, mas ao que tudo indica elas sugerem uma pessoa, sem dizer nenhum nome, as quais eram motivo de divertidas especulações momentâneas, em busca da correspondência real da personagem da sátira. Assim é possível afirmar que essas práticas entre os clérigos eram comuns.
    A construção identitária da nobreza também se dava nestas ocasiões, afinal, escarnecer dos clérigos que não podiam manter tais práticas, enquanto os mesmos nobres a mantinham era uma maneira de se afirmar através do humor. Em última instância, existe uma sugestão de que o referido clérigo mantinha relações com uma soldadeira, que era uma categoria de mulheres que acompanhavam os jograis – músicos que viviam desta atividade, recebendo pelas apresentações que faziam, e às vezes produziam algumas cantigas – e bailavam nas apresentações dessas composições poéticas. Estas mulheres tinham diferentes tratamentos nesta sociedade, muitas vezes sendo confundidas com prostitutas.
    Os estatutos de uma e de outra são diferentes, e as soldadeiras nem sempre eram prostitutas. Por outro lado, como a cantiga propõe em relação à Marinha, essas mulheres deveriam manter relacionamentos sazonais nas cidades que mais frequentavam. Daí pode advir a explicação do facto de o frade ter feito “tantos filhos em Marinha” (v. 16), por ela ser uma soldadeira com quem tivera várias oportunidades de se encontrar.
    […]
    Fernando Esquio, por sua vez, tratou a impotência como uma possível estratégia necessária para um frade disposto a peripécias sexuais, já que mão podia manter relações deste tipo, e que acreditava que fazer com que as mulheres pensassem que era impotente o ajudaria a continuar indefinidamente com suas companheiras.”

sábado, 23 de novembro de 2024

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Análise do capítulo X de O Cortiço

     Ao longo da obra, já assistimos a modificações operadas em várias personagens:
        - Jerónimo e Rita;
        - Pombinha.
    Agora vai-nos ser apresentada a causa da mudança de João Romão.
    Enquanto Miranda invejava João Romão pela sua capacidade de enriquecer pelo seu próprio trabalho; João Romão invejava Miranda por este ter sido nomeado barão. É a subida de Miranda que provoca em J. Romão a consciência da sua miséria e do desperdício do que ganhara. Toda a riqueza que tem de nada lhe serve, pois nunca fez nada educativamente e em termos sociais para subir de classe.
    Começa agora a manifestar-se a diferença entre J. Romão, que sente a necessidade da mudança, e Bertoleza, que mantém a mesma atitude para com a vida. Esta diferença vai acentuar-se ao longo do romance. Aponta-se a ideia da civilização, tópico típico do Realismo.
    O capítulo termina com uma noite de domingo e com festa no cortiço e em casa de Miranda.
    No cortiço, Firmo apercebe-se do que se passa entre Rita e Jerónimo e a discussão termina em luta, em que Jerónimo é ferido. Chega a polícia, mas é impedida de entrar, funcionando sempre a imagem do grupo, apesar de algumas referências individuais.
    Há toda uma variedade de acontecimentos descritos: o romance assume uma grande variedade de níveis temáticos. Os acontecimentos são sempre marcados pela intensidade, veemência e sentimento; são episódios que mostram vivências individuais, mas sobretudo vivências em grupo. Todos os elementos descritos com intensidade têm uma função e consequências.
    O capítulo termina com a referência a um fogo que começa a alastrar no cortiço.

Análise do capítulo IX de O Cortiço

     Temos aqui 3 episódios importantes:
        => Modificação de Jerónimo, agora uma pessoa totalmente diferente: tornara-se contemplativo, sedutor, apreciador dos prazeres, tudo resultante da influência da vida americana e da natureza do Brasil.
    Ao contrário, a mulher continuava íntegra e fiel à sua tradição de portuguesa; apenas mudara exteriormente. Estava até mais triste por causa da mudança operada em Jerónimo, que começa a repeli-la. As modificações tinham correspondência no apuramento dos sentidos, o que o afasta da mulher e o aproxima de Rita Baiana.

        => Novo escândalo, provocado mais uma vez por um episódio de cedência sexual: Florinda aparece grávida de Domingos, no que é apoiada pelas mulheres do cortiço. A mãe exige uma reparação, mas mais uma vez é João Romão quem tira proveito da situação, aproveitando-se do que acontecera. Isto mostra a situação da mulher: é sempre ela que perde.

        => Visita de Léonie, uma prostituta que vem visitar o cortiço e traz a afilhada Juju. O assombro que provoca vem do exagero com que se apresenta, mas também do sucesso que tivera na vida. Apesar de ser representante de um tipo de vida negativo, ela é muito querida e respeitada no cortiço. Apenas Rita não se deixa impressionar.
    Na sucessão dos acontecimentos, encontra Pombinha e marca com ela um jantar, que já por si é um indício do que irá acontecer.

Análise do capítulo VIII de O Cortiço

     Descreve a continuação do processo de mudança de Jerónimo, sobretudo pela aproximação aos novos costumes e a Rita e consequente afastamento em relação à mulher.
    Piedade mantém-se íntegra: não acompanha a mudança do marido, que se aproxima de Rita, principal representante das sensações que o ligam ao Brasil (ex.: café).
    A apresentação da aproximação de Jerónimo e Rita é cortada por um episódio entre Leocádia e Henrique. Episódios deste tipo abundam na obra e mostram a inexistência de valores ou existência de valores relativos. São atos relacionados com o assédio sexual, que mostram o sórdido, o patético e são várias as personagens que apresentam comportamentos deste tipo. Mostram um lado humano voltado para a animalidade. Estes episódios são importantes para se traçarem retratos individuais, que dão uma imagem do todo. Esta literatura de massas é importante em Aluísio de Azevedo: são poucas as personagens que têm os seus momentos individuais (exs.: Romão, Miranda); as outras aparecem inseridas num conjunto, apesar de se fazer um retrato individual. Isto está patente nas reações que se seguem a este episódio, que passam por fases diferentes: silêncio, expectativa, participação.
    Este episódio é importante pela conceção do homem, relatividade de valores e pela participação das massas.
    O final do capítulo é importante para a caracterização de Rita como uma pessoa boa e dada aos outros: é ela que ajuda Leocádia.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Para sempre, Mãe!

19.03.1930 - 21.10.2024

Análise do capítulo VII de O Cortiço

     Continua o domingo, dia especial, em que os sentidos e o prazer se juntam. É também o dia em que todos se juntam e fazem reuniões bastante festivas. Isto remete para uma característica do romance, que é a junção de vários sentidos. Os convivas distribuem-se pelas várias casas, mas juntam-se todos na altura do canto e da dança.
    Mas, no capítulo, há outros aspetos importantes:
        = Contraste do cortiço com a casa de Miranda, que reage ao barulho. As reações às observações de Miranda são violentas e ainda fazem mais barulho.

        = Retrato de Firmo, através de uma descrição miudinha e nervosa, que vai ser importante, quando se põem em contraste Firmo e Jerónimo. Era delgado, capadócio, pernóstico, bigodinho crespo, petulante. Era oficial de torneio, oficial perito e vadio. Era o companheiro de Rita.

        = Caracterização de Libório: velho semítico e desgraçado. Dele fica a imagem de repugnância e nojo.

        = Referência a Albino, por contraste com Libório: é muito suscetível quando é alvo de brincadeira.

    Temos, assim, neste capítulo, o acumular de vários retratos individuais, que permitem construir uma imagem do grupo, caracterizado sobretudo por uma certa degradação. Tanto a imagem de Firmo, como de Libório e Albino deixam passar uma ideia negativa.
    Com o cair da noite, vem a festa: festa em casa de Miranda e festa no cortiço. Esta começa a ter uma influência marcante em Jerónimo, antes mais fiel ao fado. Começa a estabelecer-se um contraste entre o som brasileiro e o fado, que acaba por ser colocado de parte. É uma influência que, apesar de subtil, é profunda e opera-se através dos sentidos, responsáveis pelas modificações, mesmo em termos de atitudes. Rita vai ser o agente da modificação que Jerónimo começa a sentir. É como se ficasse preso num encanto, sem hipóteses de dele fugir. Isto mostra a influência da raça, do meio e do momento sobre a personalidade. Mais do que um romance de intriga, estamos na presença de um romance de mudança de caráter. A esta modificação de caráter associa-se a paixão.

Análise do capítulo VI de O Cortiço

     O início deste capítulo marca um flagrante contraste com o fim do capítulo anterior. É um domingo, dia de calma, em que as pessoas descansam e se dedicam aos seus afazeres pessoais. De tudo isto, resulta uma harmonia que não se verifica nos dias de trabalho.
    Mas a intriga tem que avançar e nestes capítulos temos dois acontecimentos muito importantes: chegada de Jerónimo e, agora, a chegada de Rita Baiana.
    Rita é recebidas e querida por todo o cortiço. Temos ainda a sua caracterização física: sensual, irrequieta, independente, daí ser contra o casamento, visto como cativeiro. Da mistura do facto de ser baiana e mulata, resulta a sua sensualidade. Ela representa o Brasil, os elementos tipicamente brasileiros. É muito popular, jovial e respeitada. A todos tem uma palavra a dizer, o que mostra que os conhece bem. É atrevida, mas boa; sempre que uma personagem é expulsa do cortiço ou tem problemas, é ela que se mexe para os tentar resolver.
    Rita procura informar-se de tudo o que se passa na sua ausência e daí perguntar a Leocádia quem eram os "jururus do 35", apresentando esta Jerónimo e Piedade como "boa gente" e "coitados".
    Temos já os elementos importantes para o avançar da intriga:
            - chegada de Jerónimo
            - chegada de Rita Baiana
            - referência a Pombinha
    Antes tivemos a descrição das origens do cortiço, graças à ação de João Romão. Agora o cortiço começa a ganhar vida própria através dos elementos humanos que nele habitam. Criam-se as condições para que a alegria sentida nestes capítulos se altere.
    Se o elemento humano em Aluísio Azevedo é positivo, como é que o meio o vai alterar? Esta é a tese que se pretende provar.
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