A ũa velha quisera trobar
quando’em Toledo fiquei desta vez,
e veo-me Orraca López rogar
e disso-m’assi; - Por Deus que vos fez
nom trobedes a nulha velh’aqui
ca cuidarám que trobades a mim.
Esta cantiga de Afonso Anes do
Cotom continua o tema de outra que a precede nos manuscritos (“Orraca López vi
doente um dia”): a velhice de Orraca López. De acordo com vários estudiosos, a
cantiga está incompleta, o que não impede a compreensão da sua sátira.
O sujeito poético, no primeiro
verso, exprime o desejo de cantar uma “velha” em Toledo. Por um lado, estamos
perante uma sátira relacionada com a cantiga de amor, dado que, de acordo com
os seus cânones, o trovador cantava uma dama jovem, bela, perfeita e inacessível,
ou seja, cantava a beleza e a juventude, não a velhice e a feiura. Por outro
lado, o «eu» poético trata a mulher de forma depreciativa, usando o nome
«velha» sem mais (poderia, por exemplo, usar a palavra como adjetivo – “mulher
velha” –, o que suavizaria a abordagem), para enfatizar a ideia da velhice,
desvalorizando e depreciando a mulher. Além disso, a expressão “ũa velha” (o
recurso ao indefinido indicia que poderia ser qualquer uma) retira a
individualidade da figura feminina, reduzindo-a a um traço – a idade – que ignora
a sua identidade como mulher ou pessoa. A intenção do trovador é unicamente
destacar a velhice de uma qualquer mulher e as suas implicações sociais e
culturais, bem como o modo como a sociedade medieval observava as mulheres mais
velhas.
Toledo, então, era
uma cidade e província de Castela-La Mancha, na margem direita do rio Tejo,
capital da Hispânia visigótica e uma das principais cidades medievais da
Península Ibérica. Foi aí que o trovador chegou “desta vez”, o que sugere a sua
itinerância, andando de terra em terra a compor as suas cantigas. Nesta
ocasião, o ponto de paragem foi Toledo, onde tinha a intenção de cantar uma
mulher velha. Encontrou, então, Orraca López (ou Urraca Lopes, provavelmente
uma soldadeira), o objeto da sátira, que se dirige ao «eu» para que lhe rogar
que não trove a nenhuma velha da cidade. Esse rogo é antecedido da invocação de
Deus (“Por Deus que vos fez”), que sugere a ansiedade da mulher relativamente
ao que teme que o trovador faça.
O último verso
conhecido da cantiga explicita o motivo que está na base do pedido de Orraca
López: se o sujeito lírico escrever uma cantiga dedicada a uma velha, todos
pensarão que o texto é sobre ela, ou seja, ela representa a mulher velha, a
velhice. Deste modo, a figura em questão encontra-se numa situação de
vulnerabilidade, tendo em conta o modo como a sociedade de então olhava e
tratava as mulheres de idade avançada, desvalorizando-as, escarnecendo-as e até
marginalizando-as. A mulher jovem e bela deseja ser cantada, ver os seus
atributos físicos e a sua juventude ser reconhecidos pelos outros, mas a mulher
velha e, consequentemente, feia não. Deste modo, além de visar a temática da
cantiga de amor, esta composição aborda igualmente a questão da autoimagem e da
perceção que a sociedade tem de cada pessoa. Quem gostaria de ser conhecido e
comentado publicamente por traços socialmente considerados negativos? Quem gostaria
de ser ridicularizado publicamente?
A concetualização
da mulher nesta cantiga satírica, como em muitas outras, assenta na
substantivação de velha como a mulher em si, ou seja, o termo «velha»
caracteriza não uma qualidade da figura feminina descrita, mas a existência de
um ser caricato com rosto, personalidade e características próprias. E isso é
feito através do uso substantivado do adjetivo «velha».
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