Português: Análise da cantiga "A ũa velha quisera trobar", de Afonso Anes do Cotom

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A ũa velha quisera trobar", de Afonso Anes do Cotom

 
A ũa velha quisera trobar
quando’em Toledo fiquei desta vez,
e veo-me Orraca López rogar
e disso-m’assi; - Por Deus que vos fez
nom trobedes a nulha velh’aqui
ca cuidarám que trobades a mim.
 
    Esta cantiga de Afonso Anes do Cotom continua o tema de outra que a precede nos manuscritos (“Orraca López vi doente um dia”): a velhice de Orraca López. De acordo com vários estudiosos, a cantiga está incompleta, o que não impede a compreensão da sua sátira.
    O sujeito poético, no primeiro verso, exprime o desejo de cantar uma “velha” em Toledo. Por um lado, estamos perante uma sátira relacionada com a cantiga de amor, dado que, de acordo com os seus cânones, o trovador cantava uma dama jovem, bela, perfeita e inacessível, ou seja, cantava a beleza e a juventude, não a velhice e a feiura. Por outro lado, o «eu» poético trata a mulher de forma depreciativa, usando o nome «velha» sem mais (poderia, por exemplo, usar a palavra como adjetivo – “mulher velha” –, o que suavizaria a abordagem), para enfatizar a ideia da velhice, desvalorizando e depreciando a mulher. Além disso, a expressão “ũa velha” (o recurso ao indefinido indicia que poderia ser qualquer uma) retira a individualidade da figura feminina, reduzindo-a a um traço – a idade – que ignora a sua identidade como mulher ou pessoa. A intenção do trovador é unicamente destacar a velhice de uma qualquer mulher e as suas implicações sociais e culturais, bem como o modo como a sociedade medieval observava as mulheres mais velhas.
    Toledo, então, era uma cidade e província de Castela-La Mancha, na margem direita do rio Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das principais cidades medievais da Península Ibérica. Foi aí que o trovador chegou “desta vez”, o que sugere a sua itinerância, andando de terra em terra a compor as suas cantigas. Nesta ocasião, o ponto de paragem foi Toledo, onde tinha a intenção de cantar uma mulher velha. Encontrou, então, Orraca López (ou Urraca Lopes, provavelmente uma soldadeira), o objeto da sátira, que se dirige ao «eu» para que lhe rogar que não trove a nenhuma velha da cidade. Esse rogo é antecedido da invocação de Deus (“Por Deus que vos fez”), que sugere a ansiedade da mulher relativamente ao que teme que o trovador faça.
    O último verso conhecido da cantiga explicita o motivo que está na base do pedido de Orraca López: se o sujeito lírico escrever uma cantiga dedicada a uma velha, todos pensarão que o texto é sobre ela, ou seja, ela representa a mulher velha, a velhice. Deste modo, a figura em questão encontra-se numa situação de vulnerabilidade, tendo em conta o modo como a sociedade de então olhava e tratava as mulheres de idade avançada, desvalorizando-as, escarnecendo-as e até marginalizando-as. A mulher jovem e bela deseja ser cantada, ver os seus atributos físicos e a sua juventude ser reconhecidos pelos outros, mas a mulher velha e, consequentemente, feia não. Deste modo, além de visar a temática da cantiga de amor, esta composição aborda igualmente a questão da autoimagem e da perceção que a sociedade tem de cada pessoa. Quem gostaria de ser conhecido e comentado publicamente por traços socialmente considerados negativos? Quem gostaria de ser ridicularizado publicamente?
    A concetualização da mulher nesta cantiga satírica, como em muitas outras, assenta na substantivação de velha como a mulher em si, ou seja, o termo «velha» caracteriza não uma qualidade da figura feminina descrita, mas a existência de um ser caricato com rosto, personalidade e características próprias. E isso é feito através do uso substantivado do adjetivo «velha».

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...