Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Estêvão da Guarda, é
constituída por duas sétimas de rima interpolada e emparelhada (ABBABBA)
e tem como figura visada a mulher de Álvaro Rodrigues por ter sido abandonada
pelo marido e, por isso, se recusa a “chegar-se a ele”, que é o equivalente a
dizer que a sátira visa efetivamente o segundo e não a esposa. Deste modo, pode
concluir-se que o tema da composição é o lamento da mulher pela ausência do
marido, o que nos recorda o queixume da donzela da cantiga de amigo
relativamente ao seu amado exatamente pelo mesmo motivo.
Efetivamente,
a mulher de Álvaro Rodrigues queixou-se (“tomou tal queixume” – o advérbio de
intensidade e grau intensifica o queixume, sugerindo que é especialmente forte,
fora do comum) por o marido ter partido para longe (“sel foi daquém”) e a ter
abandonado. Como consequência, desde que ele regressou, ela “nunca s’a el
chegou”, isto é, nunca mais se aproximou dele, nunca mais teve qualquer gesto
de afeto, nunca mais permitiu o contacto físico entre ambos, o que seria mais
do que comum no seio de um casal, para mais tendo em conta que estiveram separados
durante algum tempo. Esta recusa constitui, portanto, o castigo reservado pela
mulher para o marido por este a ter abandonado. Independentemente das
circunstâncias, nem a bem nem a mal, ela não se aproxima dele. É uma outra
forma de abandono que a esposa pratica, em resposta ao abandono de que foi
vítima, e pretende continuar: “nem quer chegar”.
Convém
esclarecer que não existem dados que permitam identificar este Álvaro Rodrigues.
De acordo com a cronologia, poderia tratar-se de Álvaro Rodrigues Redondo,
referido pelo Nobiliário do Conde D. Pedro enquanto criado de D. Álvaro
Gonçalves Pereira, prior dos Hospitalários e do Crato. Esta figura era filha de
uma dona do Crato e neto (ou mesmo filho), por via bastarda, do trovador
Rodrigo Anes Redondo. Antes de assumir a chefia da Ordem, Álvaro Rodrigues
Pereira esteve em Rodes, tendo participado na guerra contra os Turcos,
juntamente com os homens de armas e cavaleiros que levara de Portugal, de
acordo com os textos de Fernão Lopes. De acordo com estes dados, se se
confirmasse que este Álvaro Rodrigues seria efetivamente a figura da cantiga,
estariam enquadradas as alusões à sua partida para “Além-Mar” que surgem
nalgumas cantigas a ele dirigidas. O Conde D. Pedro refere-se-lhe numa cantiga
como sendo monteiro-mor.
Os três
versos iniciais da primeira estrofe esclarecem que a mulher só retomará o
contacto, o relacionamento, se ele lhe assegurar (“jurando-lhe ante que, a bõa
fé”) não voltará a deixá-la como deixou. Deste modo, é possível concluir que a
esposa não sente confiança no marido, que só voltará a aproximar-se se estiver
certa das intenções dele, o que parece indiciar, por um lado, que valoriza a
estabilidade, a sinceridade e a honestidade e, por outro, que Álvaro Rodrigues
não observou essas características até então, nomeadamente aquando da sua
partida.
A
repetição do verbo «leixar» («deixar») é muito significativa, antecedida do
advérbio de negação «não» e seguida do termo comparativo «como». Começando pelo
advérbio, este enfatiza a ideia da recusa absoluta, passe o pleonasmo, e da
firmeza da mulher ao declarar que não tolerará nova situação de abandono nos
termos em que se processou a anterior. Por outro lado, a reiteração de formas
do verbo «leixar» estabelece um contraste entre o passado (em que foi abandonada
e, por isso, sofreu a dor da solidão) e o presente, apontando também para o
futuro, em que recusa a repetição da situação e exige um compromisso ao marido
de que tal não se repetirá. O comparativo «como» enfatiza o modo como Álvaro
Rodrigues a deixou, provavelmente insensível, insincero, desrespeitoso,
circunstância que não tolerará que se repita: ela não permitirá que ele a
abandone novamente da mesma forma que o fez anteriormente.
Esta
cantiga parece evidenciar uma nova atitude por parte da mulher da época, visto
que a personagem da composição evidencia uma firmeza e uma liberdade que eram
pouco comuns na época, na qual o género feminino estava quase sempre sujeito à
vontade dos maridos. Além disso, a sua atitude demonstra um caráter forte,
determinado, colocando-a numa posição de poder relativamente ao marido, o que
configura uma inversão de papéis. Por outro lado, o texto mostra que aprendeu
com o passado e que não permitirá que a situação se repita, a de um abandono
abrupto e insensível.
Na
segunda estrofe, o sujeito poético designa Álvaro Rodrigues como «cativo», nome
que, por um lado, sugere o facto de ele ser prisioneiro / estar subjugado à
vontade e determinação da mulher (que recusa a sua aproximação e só a tolerará
se o marido preencher uma condição) e, por outro, o qualifica como pessoa
infeliz, desgraçada, não só pela recusa da mulher, mas também por não a
conseguir demover da sua resolução (“nõn’a pode desta seita partir”), nem
recorrendo a meios violentos: ameaças (“nem per meaças”) ou agressões físicas (“nem
pela ferir”). Quer isto dizer que o visado pode recorrer à ameaça ou à intimidação,
mas nada disso derrubará a sua determinação e força.
O verso
«nem per meaças nem pela ferir» reflete a sociedade da época medieval e os
relacionamentos entre homens e mulheres. Assim, o comportamento de Álvaro
Rodrigues, efetivo ou aludido, de ameaçar ou agredir fisicamente a esposa
reflete o poder e a autoridade que o homem detinha sobre a mulher numa
sociedade patriarcal. Curiosamente, a personagem feminina foge ao estereotipo
epocal, não cedendo às ameaças do esposo, antes lhe resistindo firmemente.
Trata-se de uma subversão da relação de poder característica daquele tempo,
usada pelo trovadorismo para criticar os padrões sociais, que levavam os homens
a crer que poderia ser possível conquistar o afeto feminino através de ameaças,
da força física, da violência e da coerção.
Ironicamente,
a resistência e a obstinação da recusa da mulher poderão ser facilmente
vencidas (“se a quer desta sanha tirar”): o marido tem de jurar “bõa fé” (isto
é, tem de se comprometer) que nunca mais a abandonará (“a jurar / que a nom
leixe em neum tempo já.”). Significa isto que a esposa exige sinceridade,
lealdade e compromisso total da parte de Álvaro Rodrigues.
Este
aspeto aponta para uma reflexão sobre o valor da “bõa fé”, da lealdade, da
sinceridade, do compromisso como bases para um relacionamento, para um
matrimónio. Por outro lado, a exigência de que o homem jure lealdade à esposa
constitui uma inversão do papel tradicional dos géneros: nesta cantiga, é ela
quem estipula condições ao marido, invertendo o padrão social. A figura
feminina exige um compromisso verdadeiro, recusando-se a ceder à intimidação ou
à violência, o que evidencia a sua força e capacidade de resistência em defesa
dos seus interesses e convicções.
A
cantiga, intencionalmente ou não, critica o abandono temporário ou definitivo
das mulheres pelos maridos, uma temática que percorre grande parte do
trovadorismo, e que é exposta, neste caso, através da resolução / queixa da
mulher de Álvaro Rodrigues. A resposta da esposa é inusitada, já que enfatiza
uma postura de resistência feminina numa sociedade patriarcal: ela impõe uma
condição firme para retomar o relacionamento – ela só se voltará a “chegar ao
marido” caso este prometa de que não voltará a ser abandonada, demandando
lealdade e estabilidade, valores que o marido não terá demonstrado
anteriormente. Neste contexto, Álvaro Rodrigues mostra-se totalmente impotente
para vencer a determinação da consorte: “nem per meaças nem pela ferir, / ela
por en neua rem non dá”. A única solução que lhe resta é jurar “a bõa fé” de
que não a voltará a abandonar. Em suma, a cantiga critica não apenas o marido,
mas a estrutura social que normalizava o abandono das mulheres, sós,
desprotegidas e dependentes.