Português: Análise da Cena I do Ato I de Frei Luís de Sousa

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Análise da Cena I do Ato I de Frei Luís de Sousa

Monólogo lírico-dramático de D. Madalena

Assunto: monólogo de D. Madalena, em que esta estabelece um paralelo/uma comparação entre a sua vida (desditosa) e a relação amorosa infeliz e trágica de Inês de Castro e D. Pedro.


Estrutura do monólogo

. 1.ª parte (do início da fala até “… pode-se morrer.”): D. Madalena abandona a leitura d’Os Lusíadas e mostra-se enleada na ideia de felicidade que bebeu no texto.

. 2.ª parte (de “Mas eu…” até ao final do monólogo): D. Madalena reflete sobre a sua situação e revela o seu estado de espírito, marcado pela angústia, pelo medo e “contínuos terrores”. O que marca a divisão entre os dois momentos da cena é a conjunção coordenativa adversativa «mas», que possui o valor de oposição, contraste.


Estado de espírito de D. Madalena:
. melancólica (“um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele”; “repetindo maquinalmente e devagar”), solitária (“só”), infeliz;
. sonhadora: anseia experimentar a felicidade, nem que seja por pouco tempo;
. sofredora e infeliz ao constatar a ausência de felicidade na sua vida, devido ao medo e aos constantes terrores que a atormentam;
. insegura, preocupada e angustiada, sente-se destinada à morte;
. frágil, sensível e sentimental, bem ao gosto romântico;
. emocionalmente instável
. o seu nome evoca a figura bíblica da “pecadora” (prostituta) que depois foi Santa Maria Madalena. As duas figuras – a imaginada e a real – ficam ligadas, sobrepostas, e o caminho ascensional da personagem bíblica, do pecado à redenção, através da penitência, traça a linha a percorrer por D. Madalena: pecado → remorso → penitência → ascese → redenção.
            Além destes traços psicológicos, trata-se de uma mulher culta e letrada (está a ler, neste caso Os Lusíadas), pertencente à aristocracia.


Causa do estado de espírito

            Os sentimentos e emoções evidenciados por D. Madalena ficam a dever-se (mesmo que só o confirmemos num momento posterior da peça) ao receio de que o seu primeiro marido ainda esteja vivo e regresso, cobrindo-se e à família de vergonha. A leitura do episódio de Inês de Castro insinua-lhe o drama de um segundo casamento, realizado sob a ameaça velada de que D. João não tivesse morrido.


Relação entre D. Madalena e Inês de Castro

. Madalena e Inês são duas personagens para quem a felicidade não foi total, visto esta ter, em ambos os casos, sofrido a intervenção do destino. A alegria e a felicidade de Inês de Castro foram breves, pois terminaram com a sua morte. A interrupção da leitura feita por D. Madalena, precisamente nos dois versos que sugerem a efemeridade desse sentimento, remete para uma relação de semelhança entre os dois casos:
- D. Madalena estabelece o confronto entre a situação de Inês, feliz “naquele ingano de alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”, felicidade essa que, em seu entender, não se mede pela duração, mas pela intensidade: “Viveu-se, pode-se morrer”, e a sua situação em busca da felicidade própria, pelos contínuos terrores, ou seja, pelos remorsos da consciência moral, recalcada e abafada, mas sempre viva, atuante e martirizante;
- as imagens das duas figuras femininas de pecadores por amor-paixão, embora diferentes, sobrepõem-se e ajustam-se admiravelmente;
- Inês de Castro é a heroína trágica no amor, na beleza, na desventura e na morte;
- D. Madalena é igualmente trágica no amor, na beleza, na desventura, no desfecho infeliz e trágico que a destrói: ambas são perseguidas pelo destino, inexorável e cruel, que as irmanou na paixão impossível; ambas são infelizes no meio da ventura, sendo que há uma diferença assinalável: Inês ainda teve um “ingano de alma”, isto é, um momento fugaz de felicidade, ao passo que Madalena, mais consciente talvez, nem esse breve “ingano” pôde ter.
. Porém, a reflexão posterior de D. Madalena permite deduzir um certo contraste: esta deseja a felicidade, ainda que seja de curta duração, após o que morreria feliz; constata que a sua vida tem sido assolada pela desgraça, o que é visível no recurso à conjunção coordenativa adversativa “mas” e à interjeição “Oh”.
. Esta analogia entre a vida de Inês e de Madalena constitui um presságio trágico, se tivermos em conta que os amores daquela e de D. Pedro terminaram tragicamente com a morte dela.


Traços românticos de D. Madalena:
. a sobreposição dos sentimentos à razão;
. o completo domínio da personagem pelas suas emoções;
. o sentimento de culpa e de medo que a impedem de viver plenamente a sua felicidade;
. o conflito interior que a sua fala deixa transparecer;
. a angústia, o medo e os terrores que marcam o seu quotidiano;
. a grande paixão por Manuel de Sousa;
. a sensibilidade a cultura que demonstra;
. o uso de uma linguagem adequada ao real, ao estado de espírito das personagens: o discurso de D. Madalena está repleto de hesitações, repetições, frases curtas, suspensas, elípticas, exclamações e reticências, o que reflete com precisão os estados de melancolia e introspeção da personagem, os quais são igualmente elementos românticos;
. a leitura como refúgio.


Recursos expressivos

. Pontuação (reticências, exclamações, interrogações): revela o estado emocional de D. Madalena, refletindo as suas hesitações e angústias.
. A enumeração, a gradação crescente, realçada pela anteposição dos adjetivos “contínuos” e “imensa”, as interrupções, as pausas e as repetições (“… o estado em que eu vivo… este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade…”) contribuem para o adensar do estado de espírito da personagem, marcado pela melancolia, angústia, medo, etc.
. A construção anafórica [“que o não saiba ele ao menos, que não suspeite (…)”; “que amor, que felicidade… que desgraça (…)”], a repetição do determinante demonstrativo “este”/”estes” (“este medo, estes contínuos terrores”) traduzem igualmente o estado de espírito da personagem.
. A antítese “que felicidade… que desgraça…” marca o contraste entre o estado de felicidade que seria de esperar que vivesse e os contínuos terrores que a assolam.
. Na cena, predominam os nomes abstratos, que traduzem os sentimentos que marcam a personagem.
. A cena contém um caráter circular, dada a semelhança que existe entre o seu início, onde encontramos Madalena em meditação, o que remete para uma total prostração da personagem, e o seu final, em que volta a descair em profunda meditação. Estes dois momentos foram interrompidos pela reflexão, pela lamentação sobre a sua própria existência.


Elementos trágicos da cena

. Hybris: está presente indiretamente, já que o sofrimento (pathos) de D. Madalena advém da ousadia de ter casado segunda vez sem ter encontrado o corpo do primeiro marido.

. Pathos: é o causador do seu estado de melancolia e de medo, o qual faz adivinhar a presença de um destino firme e inflexível, ao qual a personagem não se poderá furtar, constituindo assim indícios de uma situação que se irá verificar no futuro.

. Presságio: a leitura do episódio de Inês de Castro.

. Agon de D. Madalena (de consciência): o monólogo-meditação mostra a profundidade da luta que lhe vai na consciência, carregada de culpa, e aponta para a dupla personalidade de Madalena:
- personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
- personalidade real ou oculta, infeliz ou “desgraçada”, ligada a D. João de Portugal, pela memória do passado, pelo remorso do presente.
Esta consciência atormentada de D. Madalena, em que o remorso a não deixa repousar um só momento, remete para o seu conflito com o primeiro esposo.

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