Português: Análise da cantiga "A molher d’ Alvar Rodriguiz tomou", de Estêvão da Guarda

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A molher d’ Alvar Rodriguiz tomou", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Estêvão da Guarda, é constituída por duas sétimas de rima interpolada e emparelhada (ABBABBA) e tem como figura visada a mulher de Álvaro Rodrigues por ter sido abandonada pelo marido e, por isso, se recusa a “chegar-se a ele”, que é o equivalente a dizer que a sátira visa efetivamente o segundo e não a esposa. Deste modo, pode concluir-se que o tema da composição é o lamento da mulher pela ausência do marido, o que nos recorda o queixume da donzela da cantiga de amigo relativamente ao seu amado exatamente pelo mesmo motivo.
    Efetivamente, a mulher de Álvaro Rodrigues queixou-se (“tomou tal queixume” – o advérbio de intensidade e grau intensifica o queixume, sugerindo que é especialmente forte, fora do comum) por o marido ter partido para longe (“sel foi daquém”) e a ter abandonado. Como consequência, desde que ele regressou, ela “nunca s’a el chegou”, isto é, nunca mais se aproximou dele, nunca mais teve qualquer gesto de afeto, nunca mais permitiu o contacto físico entre ambos, o que seria mais do que comum no seio de um casal, para mais tendo em conta que estiveram separados durante algum tempo. Esta recusa constitui, portanto, o castigo reservado pela mulher para o marido por este a ter abandonado. Independentemente das circunstâncias, nem a bem nem a mal, ela não se aproxima dele. É uma outra forma de abandono que a esposa pratica, em resposta ao abandono de que foi vítima, e pretende continuar: “nem quer chegar”.
    Convém esclarecer que não existem dados que permitam identificar este Álvaro Rodrigues. De acordo com a cronologia, poderia tratar-se de Álvaro Rodrigues Redondo, referido pelo Nobiliário do Conde D. Pedro enquanto criado de D. Álvaro Gonçalves Pereira, prior dos Hospitalários e do Crato. Esta figura era filha de uma dona do Crato e neto (ou mesmo filho), por via bastarda, do trovador Rodrigo Anes Redondo. Antes de assumir a chefia da Ordem, Álvaro Rodrigues Pereira esteve em Rodes, tendo participado na guerra contra os Turcos, juntamente com os homens de armas e cavaleiros que levara de Portugal, de acordo com os textos de Fernão Lopes. De acordo com estes dados, se se confirmasse que este Álvaro Rodrigues seria efetivamente a figura da cantiga, estariam enquadradas as alusões à sua partida para “Além-Mar” que surgem nalgumas cantigas a ele dirigidas. O Conde D. Pedro refere-se-lhe numa cantiga como sendo monteiro-mor.
    Os três versos iniciais da primeira estrofe esclarecem que a mulher só retomará o contacto, o relacionamento, se ele lhe assegurar (“jurando-lhe ante que, a bõa fé”) não voltará a deixá-la como deixou. Deste modo, é possível concluir que a esposa não sente confiança no marido, que só voltará a aproximar-se se estiver certa das intenções dele, o que parece indiciar, por um lado, que valoriza a estabilidade, a sinceridade e a honestidade e, por outro, que Álvaro Rodrigues não observou essas características até então, nomeadamente aquando da sua partida.
    A repetição do verbo «leixar» («deixar») é muito significativa, antecedida do advérbio de negação «não» e seguida do termo comparativo «como». Começando pelo advérbio, este enfatiza a ideia da recusa absoluta, passe o pleonasmo, e da firmeza da mulher ao declarar que não tolerará nova situação de abandono nos termos em que se processou a anterior. Por outro lado, a reiteração de formas do verbo «leixar» estabelece um contraste entre o passado (em que foi abandonada e, por isso, sofreu a dor da solidão) e o presente, apontando também para o futuro, em que recusa a repetição da situação e exige um compromisso ao marido de que tal não se repetirá. O comparativo «como» enfatiza o modo como Álvaro Rodrigues a deixou, provavelmente insensível, insincero, desrespeitoso, circunstância que não tolerará que se repita: ela não permitirá que ele a abandone novamente da mesma forma que o fez anteriormente.
    Esta cantiga parece evidenciar uma nova atitude por parte da mulher da época, visto que a personagem da composição evidencia uma firmeza e uma liberdade que eram pouco comuns na época, na qual o género feminino estava quase sempre sujeito à vontade dos maridos. Além disso, a sua atitude demonstra um caráter forte, determinado, colocando-a numa posição de poder relativamente ao marido, o que configura uma inversão de papéis. Por outro lado, o texto mostra que aprendeu com o passado e que não permitirá que a situação se repita, a de um abandono abrupto e insensível.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético designa Álvaro Rodrigues como «cativo», nome que, por um lado, sugere o facto de ele ser prisioneiro / estar subjugado à vontade e determinação da mulher (que recusa a sua aproximação e só a tolerará se o marido preencher uma condição) e, por outro, o qualifica como pessoa infeliz, desgraçada, não só pela recusa da mulher, mas também por não a conseguir demover da sua resolução (“nõn’a pode desta seita partir”), nem recorrendo a meios violentos: ameaças (“nem per meaças”) ou agressões físicas (“nem pela ferir”). Quer isto dizer que o visado pode recorrer à ameaça ou à intimidação, mas nada disso derrubará a sua determinação e força.
    O verso «nem per meaças nem pela ferir» reflete a sociedade da época medieval e os relacionamentos entre homens e mulheres. Assim, o comportamento de Álvaro Rodrigues, efetivo ou aludido, de ameaçar ou agredir fisicamente a esposa reflete o poder e a autoridade que o homem detinha sobre a mulher numa sociedade patriarcal. Curiosamente, a personagem feminina foge ao estereotipo epocal, não cedendo às ameaças do esposo, antes lhe resistindo firmemente. Trata-se de uma subversão da relação de poder característica daquele tempo, usada pelo trovadorismo para criticar os padrões sociais, que levavam os homens a crer que poderia ser possível conquistar o afeto feminino através de ameaças, da força física, da violência e da coerção.
    Ironicamente, a resistência e a obstinação da recusa da mulher poderão ser facilmente vencidas (“se a quer desta sanha tirar”): o marido tem de jurar “bõa fé” (isto é, tem de se comprometer) que nunca mais a abandonará (“a jurar / que a nom leixe em neum tempo já.”). Significa isto que a esposa exige sinceridade, lealdade e compromisso total da parte de Álvaro Rodrigues.
    Este aspeto aponta para uma reflexão sobre o valor da “bõa fé”, da lealdade, da sinceridade, do compromisso como bases para um relacionamento, para um matrimónio. Por outro lado, a exigência de que o homem jure lealdade à esposa constitui uma inversão do papel tradicional dos géneros: nesta cantiga, é ela quem estipula condições ao marido, invertendo o padrão social. A figura feminina exige um compromisso verdadeiro, recusando-se a ceder à intimidação ou à violência, o que evidencia a sua força e capacidade de resistência em defesa dos seus interesses e convicções.
    A cantiga, intencionalmente ou não, critica o abandono temporário ou definitivo das mulheres pelos maridos, uma temática que percorre grande parte do trovadorismo, e que é exposta, neste caso, através da resolução / queixa da mulher de Álvaro Rodrigues. A resposta da esposa é inusitada, já que enfatiza uma postura de resistência feminina numa sociedade patriarcal: ela impõe uma condição firme para retomar o relacionamento – ela só se voltará a “chegar ao marido” caso este prometa de que não voltará a ser abandonada, demandando lealdade e estabilidade, valores que o marido não terá demonstrado anteriormente. Neste contexto, Álvaro Rodrigues mostra-se totalmente impotente para vencer a determinação da consorte: “nem per meaças nem pela ferir, / ela por en neua rem non dá”. A única solução que lhe resta é jurar “a bõa fé” de que não a voltará a abandonar. Em suma, a cantiga critica não apenas o marido, mas a estrutura social que normalizava o abandono das mulheres, sós, desprotegidas e dependentes.

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