Esta
cantiga, da autoria de João Garcia de Guilhade, é de escárnio e maldizer, de
mestria e finda, em cobras uníssonas, com dobre (vv. 1 e 7 de cada estrofe:
“mal” – est. 1; “já maenfestou” – est. 2; “falar” – est. 3). Nela, o trovador,
em simultâneo, elogia uma dona e critica o seu marido, explicitando claramente
o que seriam os bastidores do amor cortês.
O poema
abre com a alusão a “Dom Foam” (= D. Fulano), uma fórmula usual nas cantigas
trovadorescas para omitir uma identidade concreta, a quem o «eu» poético deseja
“gram mal”, ao contrário do que sucede com a sua esposa, por quem expressa a
sua admiração e deseja “gram bem”. Esta antítese (“mal” / “bem”) estabelece a
linha condutora da composição poética: o elogio da esposa e a crítica ao
marido. Esses sentimentos já o acompanham há muito tempo (“gram sazom há que m’est’avém”)
e não mudarão (“e nunca i já farei al”), ou seja, o trovador não fará outra
coisa, nunca se desviará deste propósito, nunca mudará de atitude relativamente
à figura masculina (sempre o criticará e desprezará) e à feminina (sempre a
exaltará).
A
partir do verso 5, o trovador explicita o momento em que começou a experimentar
esses sentimentos pelas duas personagens, isto é, desde que viu a mulher (“ca,
des quand’eu sa molher vi”), deduzindo-se que tal sucede por ela ser muito
bela. E é essa beleza que o seduz e causa o encanto, bem como a aversão pelo
marido. A partir desse dia, serviu-a sempre que pôde, não obstante ser casada,
e, em simultâneo, procurou o mal para Dom Foam, por a amar ou por o considerar
indigno dela.
Enfaticamente,
o sujeito poético declara querer manifestar os seus sentimentos, algo que
pesará muito a alguém – certamente Dom Foam –, porém isso mão o impede de o
fazer. Ele está consciente que a sua postura poderá ter consequências sérias:
mesmo que “morra” por o fazer, quer dizer mal do mau, ou seja, criticar o
marido (o “mão”) e bem “da que mui bõa for”, isto é, elogiará a sua esposa, que
caracteriza como “mui bõa”, expressão que reforça a exaltação das virtudes da
mulher, como sucede na cantiga de amor. O verso seguinte, na esteira deste tipo
de cantar, através de uma hipérbole, apresenta-a como uma mulher perfeita,
única, a melhor: “qual nom há no mundo melhor” (ou seja, é a melhor de todas,
quer física, quer sobretudo psicológica e moralmente). O verso final da cobla
reforça a ideia do inicial, isto é, de manifestar publicamente o seu elogio da
mulher e a crítica do esposo: “quero-[o] já maenfestar”.
A
terceira cobla explicita a razão da hipérbole do verso 13, descrevendo as
qualidades da mulher: nenhuma outra a supera na aparência física (“De parecer”)
e na forma de falar, de comunicar, de se expressar (isto é, sabe estar,
conviver), e nas boas maneiras (“e de bõas manhas haver”). Esta figura feminina
é o protótipo da mulher perfeita, sem igual, superior a todas as outras, como
se conclui do uso de nova hipérbole: “ela, non’a pode vencer / dona no mund”.
Tendo em conta que se trata de uma mulher casada e juntando isto à
caracterização que, sumariamente, dela é feita, não restam dúvidas de que esta
composição poética traça o retrato da mulher característico da cantiga de amor.
Obedecendo às regras desse género poético, o trovador faz uso da mesura e da cortesia
e não a identifica, nem ao marido, dado ser casada. A expressão “a meu cuidar”
enfatiza a ideia que se trata da sua opinião.
Os três
versos finais desta estrofe apresentam outro traço típico da mulher do cantar
de amor: ela é de origem divina (“ca ela fez Nostro Senhor”, o que justifica a
sua perfeição física e moral e a coloca num plano superior ao do trovador, o
que a torna inacessível, desde logo pelo seu caráter divino. Em contraste, o
marido da “senhor” é uma criação do “Demo”, uma criação do Mal. Para que não
restem dúvidas sobre a sua origem, o «eu» poético afirma que as suas palavras e
ações são guiadas pelo Diabo. Esta nova antítese (Deus / Diabo) liga-se à
anterior e explicita o motivo por que ela é digna de elogios e ele de crítica.
A finda,
constituída por três versos, clarifica que, por ambos serem da maneira descrita
nos versos anteriores, caberá a Deus, que tudo pode e vale, julga-los tal como
o trovador os encara. Porque “ataes” (marido e esposa) são assim (ele foi
criado pelo Diabo e representa o Mal, logo é objeto de crítica; ela, por Deus e
representa o Bem, daí ser digna de elogio) e como o trovador sente por eles o
que enunciou, caberá a Deus o julgamento de ambos, dado ser quem tem valor e
poder para tal. Assim, será a divindade a declarar o veredito final sobre as
virtudes da esposa e as falhas do marido, ou seja, estamos na presença de um
julgamento moral superior. E quem poderá contestar Deus?
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