Português: Análise da cantiga "A um frade dizem escaralhado", de Fernando Esquio

domingo, 24 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A um frade dizem escaralhado", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, não possui refrão), em coblas singulares (ou seja, com estrofes com o mesmo esquema rimático), da autoria de Fernando Esquio, trovador provavelmente ativo entre o final do século XIII e início do XIV, compreende uma sátira, em termos bastante crus, a um frade que se dizia impotente, mas engravidava todas as mulheres que lhe passavam por perto, tendo três delas dado à luz no mesmo dia. Assim sendo, desde já, podemos concluir que a afirmação da impotência por parte do frade serve para esconder as suas aventuras sexuais.
    A cantiga aborda questão da libertinagem na sexualidade, a partir da referência à virilidade sexual de um frade, que se fazia passar por aleijado ou impotente: “A um frade dizem escaralhado, / e faz pecado quem lho vai dizer”. Ou seja, quem espalha esse rumor sobre o frade comete um pecado, isto é, comete um erro. A razão é simples: “ca, pois el sabe arreitar de foder, quer dizer, possui potência, virilidade, para praticar o sexo, o que o deixa feliz (de acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, “gai” – alegre – é um termo provençal que, tradicionalmente, era lido por vários estudiosos como “que gaj’é” – que é um gajo –, todavia o termo “gajo” só começou a ser atestada em português em meados do século XIX, pelo que a sua utilização nesta cantiga não parece verosímil; eventualmente, podemos também associar o vocábulo ao sentido de “promíscuo”). O calão “de piss’arreitado” reforça a promiscuidade do religioso e o desrespeito pelas normas da religião que professava, nomeadamente a do celibato. Por aqui passa a crítica do trovador à quebra desse voto por parte do clero.
    Resumidamente, o trovador fala de um frade que dizem ser impotente (“escaralhado” significa “desprovido de membro viril”), boato que o próprio religioso teria confirmado. Na verdade, não só seria dotado de pénis, como este funcionava muito bem – como se depreender da expressão “saba arreitar de foder”, que indicia a sua potência sexual – e tem ótima disposição para o sexo, de modo que, como se verá, engravidou várias mulheres, por isso, ao invés de “escaralhado”, é um homem “bem encaralhado”.
    O escárnio e a sátira acentuam-se com a referência ao facto de o frade engravidar todas as mulheres com quem se deita (hipérbole), gerando diversos filhos e filhas, o que prova que é “bem encaralhado”, ou seja, que é bem potente sexualmente, ao contrário da fama de impotente que possui. De facto, o religioso não peca de forma isolada, antes continuada e profícua. O uso recorrente do calão expõe-no como um símbolo de corrupção e desrespeito pelos preceitos religiosos. Em simultâneo, se conectarmos a mensagem da cantiga à atualidade, poderemos considerar que a crítica se vira para a própria instituição Igreja, por forçar os seus membros a adotar comportamentos anti-natureza, como o celibato, isto é, a inibição do sexo.
    A ironia acentua-se na segunda estrofe: o sujeito poético afirma, ironicamente, que nunca usaria o termo “escaralhado” para designar o frade e fá-lo como se fosse uma espécie de concessão: “Escaralhado nunca eu diria”. Exemplificativo do seu vigor sexual é o facto de trazer o membro viril: “mais que traje ante caralho ou veite” (termo provençal que significa «verga», «pau», ou seja, em sentido figurado, pénis. Mais esclarecedora é a afirmação segundo a qual tem várias mulheres de leite, quer dizer, a amamentar filhos seus. Estes versos (“ao que tantas molheres de leite / tem”) tem duas leituras possíveis: a primeira sugere que o frade mantém relações sexuais com mulheres lactantes; a outra que o religioso se torna para as mulheres um deleite sexual, pelo seu “caralho arreitado”. A sátira atinge o zénite com a hipérbole “ca lhe parirom três em um dia”, isto é, três mulheres deram à luz, engravidadas por ele, no mesmo dia. Além disso, como se não bastassem já os factos apresentados para desmentir a sua pretensa impotência sexual, ficamos a saber que o frade possui muitas outras mulheres grávidas: “e outras muitas prenhadas que tem”. Em suma, o religioso tem mulheres engravidadas por si a amamentar; três deram à luz na mesma data; muitas outras estão grávidas. O que se pode concluir de todas estas provas? O frade seria muito “encaralhado” por isto. A ironia é clara: o indivíduo é o oposto de “escaralhado”, de impotente; pelo contrário, é particularmente dedicado ao sexo e fértil, como o comprovam as inúmeras mulheres com quem manteve relações sexuais e que engravidou
    O trovador, ao longo do poema, enfatiza sistematicamente a quantidade exagerada de mulheres com as quais se relacionam sexualmente. Na terceira estrofe, são apresentados outros exemplos: o da famosa soldadeira Marinha e de uma pastorinha prenhe, além de “muitas molheres que fode”. Deste modo, o «eu» lírico afirma, logo no primeiro verso, que tal homem “Escaralhado nom pode ser”. A conclusão, óbvia, surge nos dois versos finais da cantiga: um frade assim, por tudo isto, tem que ser muito viril (“e atal frade bem cuid’ eu que pode / encaralhado per esto seer”. Observe-se que o termo «arreitado» ainda é usado na Baía. No Brasil, nas formas “arretado” e “retado”, com o sentido de alguém muito masculino e também de pessoa ágil e firme. Os dois sentidos acabam por se ligar, dado que a ideia de firmeza sempre se associou à sexualidade.
    Em suma, o trovador enfatiza as habilidades do frade, referenciando-as cinco vezes (vv. 3, 4, 5-6, 7 e 9). O frade teria tantas parceiras sexuais que, em determinada ocasião, teriam nascido, no mesmo dia, três crianças de três mulheres engravidadas pelo frade. O trovador chega, inclusive, a citar o nome de uma das mulheres com quem o religioso se relacionava: chamava-se Marinha e seria mãe de vários filhos dele. O «eu» poético fala de uma «pastorinha», termo que significava uma mulher jovem, indiciando que o frade tinha engravidado também uma jovem de pouca idade, além de diversas outras mulheres.
    Estilisticamente, além do uso da ironia (“A um frade dizem encaralhado, / e faz pecado em que lho vai dizer”; “e atal frade cuid’eu que mui bem / encaralhado per esto seria”) e do calão cru, há que destacar o jogo com as palavras «escaralhado», que designa alguém impotente, e «encaralhado», que apontam para alguém constrangido, que se encontra em situação difícil ou de embaraço. Assim sendo, o primeiro vocábulo associa a figura do frade a uma pessoa que possui uma reputação indesejável, a de ser incapaz de manter relações sexuais, o que, em termos práticos, até se poderia considerar benéfico, pois, deste modo, mesmo que contra a sua (eventual) vontade, ele respeitaria o voto de castidade. Por sua vez, a segunda palavra remete para uma reputação conotada com a virilidade, a masculinidade, mas também à devassidão e à luxúria.
    A anáfora, presente no uso repetido da conjunção coordenativa copulativa «e», serve o propósito de intensificar o caráter devasso e a virilidade do frade, visto que serve a enumeração dos factos que o atestam [o caráter]: “e pois emprenha estas com que jaz / e faze filhos e filhas assaz”; “ca lhe parirom três em um dia, / e outras muitas prenhadas que tem; / e atal frade…”. O diminutivo «pastorinha», equivalente a «mocinha» / «jovenzinha», carrega em si as ideias de pureza e simplicidade, bem como de juventude, logo de inocência, em tese, da figura feminina (em tese, porque, na prática, mantém relações sexuais com o frade), que contrastam com a do frade, devasso e experiente, pelo que não lhe seria difícil seduzir uma jovem. A aliteração em «f» (“e faze filhos e filhas assaz”) enfatiza a consequência da devassidão do frade e da sua atividade sexual repetitiva e sem contenção: o gerar de uma quantidade grande de filhos. A hipérbole (“tantas molheres de leite tem, / ca lhe parirom três em um dia”) dá nota do número elevado de mulheres com quem o frade manteve relações sexuais e, consequentemente, engravidou, indiciando o comportamento devasso e descontrolado, completamente alheio ao dever de castidade. O religioso é, de facto, um homem extremamente fértil e com uma vida sexual bem ativa, em suma, um femeeiro contumaz.
    Nesta cantiga, a impotência é apresentada como estratégia de conquista do frade, que age de modo a sugerir que sofre de impotência (de estar escaralhado – versos 1, 8 e 15), em que muitos acreditavam. Deste modo, não se trata efetivamente de impotência do religioso, mas, pelo contrário, de uma forma de encobrir, aos olhos das demais pessoas, a sua intensa atividade sexual e desrespeito pelo voto de castidade.
    De forma genérica, o trovador denuncia que um frade, que todos creem impotente, na verdade não o era, bem pelo contrário. O adjetivo qualificativo «escaralhado» significa, ao pé da letra, “aquele que não tem o seu membro viril”. O sentido de não o ter desse modo procura sugerir a ideia de que não servia para tal fim, ou seja, era impotente. No entanto, o trovador atesta que “el sabe arreitar de foder” (v. 3), o que significa que o pénis funciona em pleno, como o atesta o facto de engravidar as mulheres com quem se relaciona (v. 5). Os versos finais de cada estrofe apresentam outro qualificativo – «encaralhado» (vv. 7, 14 e 21) –, que significa o oposto de «escaralhado», isto é, quer dizer “portador de membro viril”.
    O uso desses vocábulos confirma a existência de um mecanismo característico da cantiga de amor: o dobre. Este recurso consiste num processo através do qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na primeira estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas seguintes deverá repetir-se uma palavra na mesma posição). O primeiro dobre, focado nos versos iniciais das estrofes, refere-se à palavra «escaralhado», ou seja, impotente. O segundo dobre é o qualificativo «encaralhado», presente nos derradeiros versos das estrofes, e indicia que o frade, afinal, não é impotente, pelo contrário, é um expert em matéria de sexo.
    Esta cantiga, em suma, denuncia a prática recorrente na época: a manutenção de concubinas por parte de membros do clero, o que contraria as recomendações saídas do IV Concílio de Latrão, que teve lugar em 1215. A questão é que o trovador insinua que o frade pratica sexo de forma ostensiva, inclusive com mulheres que amamentam (porque geraram filhos seus).
    De acordo com Hugo Gonçalves [in Prática Sexual e Humor nas Construções Identitárias da Nobreza Portuguesa na Corte Dionisina (1279-1325), Goiás, 2014), “A manutenção de relações sexuais por parte de clérigos era uma preocupação não só da igreja. De uma maneira ou de outra, o poder secular se envolveu nestas questões, visando restringir esse tipo de envolvimento. Ao clérigo que se casasse com mulheres virgens, era-lhe reservada a justiça secular: fosse através de um processo, fosse pela cítola. Em uma lei datada de 1305, Dom Dinis reivindica para o poder secular o direito de julgar os clérigos que se envolvessem com mulheres virgens. Essa atitude visava proteger as mulheres – especialmente as pertencentes a qualquer círculo da nobreza, que seriam as ideais para o casamento – de se envolverem com algum clérigo que não pudesse dispor de bens para seu favorecimento. Portanto, a petição do monarca é de que o clérigo que violentasse alguma mulher leiga fosse excomungado como se tivesse agredido a outro clérigo, e por isso passasse para as mãos da justiça régia […].
    Outra forma de fazer justiça consistia nas sátiras, pois era uma maneira de se denunciar práticas vigentes e condenáveis aos olhos daquela sociedade. Através do humor, do riso e da pilhéria, se criavam situações, hipotéticas ou não, que certamente traziam certa desconfiança para os adeptos das práticas deletadas. Seus delatores, bem como a maioria da audiência, certamente se deleitavam em imaginar os envolvidos, ou ainda certamente acusavam uns e outros de serem os atores da cena, comentando o clima humorístico envolto nas encenações destas cantigas.
    Portanto, retorna-se à questão da cultura do insulto, pois essas delações pressupunham que houvesse certo afastamento deste clérigo das “muitas molheres que fode” (v. 19), já q eu não o poderia. É impossível reconstruir o ambiente de encenação dessas cantigas, mas ao que tudo indica elas sugerem uma pessoa, sem dizer nenhum nome, as quais eram motivo de divertidas especulações momentâneas, em busca da correspondência real da personagem da sátira. Assim é possível afirmar que essas práticas entre os clérigos eram comuns.
    A construção identitária da nobreza também se dava nestas ocasiões, afinal, escarnecer dos clérigos que não podiam manter tais práticas, enquanto os mesmos nobres a mantinham era uma maneira de se afirmar através do humor. Em última instância, existe uma sugestão de que o referido clérigo mantinha relações com uma soldadeira, que era uma categoria de mulheres que acompanhavam os jograis – músicos que viviam desta atividade, recebendo pelas apresentações que faziam, e às vezes produziam algumas cantigas – e bailavam nas apresentações dessas composições poéticas. Estas mulheres tinham diferentes tratamentos nesta sociedade, muitas vezes sendo confundidas com prostitutas.
    Os estatutos de uma e de outra são diferentes, e as soldadeiras nem sempre eram prostitutas. Por outro lado, como a cantiga propõe em relação à Marinha, essas mulheres deveriam manter relacionamentos sazonais nas cidades que mais frequentavam. Daí pode advir a explicação do facto de o frade ter feito “tantos filhos em Marinha” (v. 16), por ela ser uma soldadeira com quem tivera várias oportunidades de se encontrar.
    […]
    Fernando Esquio, por sua vez, tratou a impotência como uma possível estratégia necessária para um frade disposto a peripécias sexuais, já que mão podia manter relações deste tipo, e que acreditava que fazer com que as mulheres pensassem que era impotente o ajudaria a continuar indefinidamente com suas companheiras.”

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