segunda-feira, 19 de agosto de 2019
A tradição oral do narrador de A Sibila
A obra
inicia-se com o diálogo entre Germa e Bernardo Sanches e termina com o mesmo
diálogo. Tal situação parece filiar o romance numa tradição de narrativas
orais, o que, aliás, é favorecido pelo narrador de 1º nível cuja opção foi
contar e resumir em vez de mostrar e de construir cenas. A sua voz é
omnipotente e omnipresente, estabelecendo a unidade entre personagens e
episódios díspares.
Narração com base na memória
O romance abre
com o diálogo entre Germa e o seu primo Bernardo Sanches sobre a casa onde se
encontram e a sua transmissão de geração em geração. Mas depressa Germa já
quase não o escuta porque "(...) subitamente o ambiente ficara repleto
doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, onde pairava um
cheiro de priogana e de maçã, se enchia de uma expressão humana e calorosa,
como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde vivem, e o
seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação." (p. 9)
É esta evocação que vai dar lugar à
narração. Entre o início da evocação e fim do universo evocado passam-se cem
anos. Toda a narrativa é formalmente apresentada como uma longa analepse na
memória de Germa.A opção do narrador de A Sibila
O estatuto do
narrador condiciona sempre a sua narração. Se a opção for por mostrar os
acontecimentos, os locais em que se dão e as personagens que os realizam,
teremos uma narrativa que privilegia as cenas; o leitor como que vê o que se
passa como num palco ou num filme. Se a opção for por contar, a sua voz, será
omnipotente e omnipresente, esperando que o leitor aceite a boa fé dessa voz,
que diz o que lhe apetece e quando lhe apetece. Só resta ao leitor aceitar ou
recusar, porque não vê.
Ora em A Sibila, o narrador
assemelha-se a um contador de histórias, privilegiando em absoluto o contar.
Daqui resulta o facto de se assistir a uma acumulação de episódios, digressões
sucessivas e a inexistência de uma intriga à maneira tradicional.O narrador de A Sibila
. Germa:
narradora participante homodiegética.
A Sibila
é uma longa retrospetiva da vida de uma família feita por uma personagem
secundária, Germa, que, sentada na velha rocking-chair de sua tia Quina,
já falecida, a evoca com nostalgia, apesar da incompreensão e dos atritos que,
muitas vezes, ensombraram as suas relações. A obra é um longo devaneio de Germa
que começa e termina no mesmo espaço (a sala da casa da Vessada), com um
diálogo entre ela e Bernardo Sanches.
. Narrador (não
participante) omnisciente: Germa é frequentemente substituída por um narrador
omnisciente, isto é, que sabe mais do que as personagens e se desloca
facilmente no tempo e no espaço.
Este narrador
dirige-se ao leitor (narratário) num estilo familiar, por vezes irónico, até
humorístico, estabelecendo a ligação entre episódios e personagens díspares.
Parece não se preocupar com o futuro da narrativa ou sua progressão dramática,
derivando, frequentemente, para digressões que só aparentemente são desencadeadas
pelos interesses ou intenções momentâneas da narração. De facto, há uma relação
implícita entre os diversos episódios. Existe uma preocupação de ultrapassar o
momentâneo e captar o eterno, o homem no seu combate de sempre, dilacerado por
contradições, minado pelo vício, mas sempre apregoando virtudes.
Em suma, o
narrador omnisciente manifesta-se também como omnipotente, conduzindo a
narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica, recorrendo à
analepse e à prolepse, e fazendo com que a obra não tenha uma intriga, mas uma
sobreposição de inúmeras histórias curtas. A minúcia com que os gestos ou
comportamentos das personagens são descritos serve o objetivo profundo da
narração: induzir o eterno e o todo através da acumulação do efémero e do
fragmentário.
Tempo-duração em A Sibila
Agustina segue
a noção do tempo como duração: sentimento da continuidade da vida, sentimento
da continuidade na mudança, sentimento de eternidade.
Segundo
Bergson, o tempo-duração é uma forma de sucessão qualitativa dos nossos
fenómenos da consciência; o nosso eu deixa de fazer a separação entre o
estado do presente e os estados anteriores.
Fora de nós, o
movimento não é contínuo, mas só uma sucessão de posições: pontos-instantes.
Por isso, a continuidade do tempo ou a duração é feita pela síntese da memória.
O processo de
criação processa-se pela memória, observando-se um jogo entre o imperfeito, o
mais-que-perfeito, o perfeito e o presente, a ausência de verbos, a
substantivação do infinitivo e o uso repetido do adjetivo.
Tempo e intemporalidade em A Sibila
Um aspeto que
confere ao romance um carácter universal é a linha da intemporalidade.
Assim, o(a) narrador(a)
faz sistematicamente um percurso de vai-e-vem: presente-passado-presente.
A propriedade
passa de geração em geração: "A casa da Vessada, com os seus campos, as
suas presas e o seu montado, e que tinham sido pertença de mais de dez gerações
dum mesmo ramo, caberia ao mais nefasto inimigo da sua propriedade, se fosse
ele o competente herdeiro e o continuador." (p. 224)
As pessoas e os
objetos permanecem na memória e podem ser constantemente recordados como se lê
neste romance.
O balanço
contínuo da rocking-chair parece indicar um movimento intemporal: na
mesma cadeira, sentaram-se outras pessoas, na mesma cadeira, sentar-se-ão ainda
outras. É a vida humana na sua dimensão eterna.
Estes dados são
indicadores do que escapa às contingências temporais para se projetar no
horizonte ilimitado da intemporalidade.
Tempo e transcendência em A Sibila
Há, pelo menos,
dois aspetos importantes na obra: as orações de Quina e a referência frequente
à morte. Quanto às orações, Quina ultrapassa a dimensão humana e entra na
esfera da dimensão sobre-humana ou na linha dum tempo diferente, que lhe causa
medo e sensações estranhas e novas. São momentos fugazes que não a deixam voar,
não lhe permitem agarrar a chama de Prometeu, porque as coisas terrenas
pesam-lhe como chumbo. Atingiria plenamente a transcendência se o seu
misticismo se purificasse dos interesses imediatos. De qualquer forma, o
romance constrói a ponte entre a imanência e a transcendência.
Após a sua
morte, permanece a herança, mas mais do que material ou temporal, o legado de
Quina a Germa é espiritual. Aquilo que mais inquieta a herdeira não são os bens
materiais que a tia acumulou à custa de muito sacrifício e habilidades ou
esperteza e lhe deixou em testamento, para que a casa permanecesse na família,
no sangue. Intelectual burguesa, civilizada nascida na cidade e cuja educação e
personalidade foram muito influenciadas por Quina e pelo ambiente rural da
Vessada, reflete sobre o passado, numa altura em que o discurso snob de
Bernardo a aborrece, e interroga-se sobre p futuro. O importante está para além
do tempo, não é controlado pelos homens, "é todo o destino". Estamos
no domínio da transcendência, de tudo aquilo que ultrapassa os limites e
poderes do homem e que, todavia, influencia todo o seu comportamento, as suas
"aspirações".
Quanto à
questão da morte, devemos procurar as razões que levam o(a) narrador(a) a
apresentá-la como algo de natural, que não provoca traumas nem angústias. Uma
das respostas possíveis encontra-se no facto de que tudo ou quase tudo se passa
numa aldeia, no campo, onde as pessoas convivem com essa dimensão mais
naturalmente: os animais nascem e morrem; é o seu ciclo biológico. As árvores
da mesma maneira. Os seres humanos também. Mas com estes a morte é acompanhada
de fenómenos que a ligam ao transcendente, pois é interpretada como a saída do
efémero, do temporal, do imanente, e a entrada na outra dimensão, numa dimensão
que os transcende. Atente-se na naturalidade da morte de Quina (e já muito
antes da sua mãe): num primeiro momento, ela teve um êxtase em que se viu
festivamente integrada no cosmos; num segundo e último momento, depois duma
longa evocação de todos os seres que lhe foram queridos ou com quem mais de
perto se relacionou, ela, deitada na sua solidão, escuta os passos da
"irmã" morte que a vem chamar para outra dimensão. (Cf. pp. 199-200;
207-212; 233-234)
Tempo-crónica
A maior parte
dos acontecimentos é narrada em analepses. O tempo preferido é, portanto, o
passado. A memória desempenha, neste campo, um papel fundamental porque associa
os acontecimentos: o(a) narrador(a), apoiado(a) nela, deixa-se arrastar ao
sabor das linhas das diversas associações, interrompendo uns acontecimentos
para episodicamente narrar outros, recuperando os primeiros num momento
posterior. Assim, podemos concluir que o tempo é a dimensão temporal de cada
acontecimento que se passa, tendo como centro a vida de Quina. É, pois, um
tempo-crónica.
Tempo psicológico de A Sibila
Sendo
personagens modeladas, Quina e Germa manifestam momentos de interioridade e
dramatismo, sobretudo Quina, que desorbita várias vezes e se movimenta num
mundo misterioso e num tempo transcendente que lhe provocam sensações estranhas
de medo e de vibrações desconhecidas. O tempo psicológico está também marcado
na agonia de Quina, na perspetiva da própria Quina, de Germa e de Custódio: as
três personagens acham intermináveis esses momentos cruciais.
sábado, 17 de agosto de 2019
Tempo do discurso de A Sibila
Toda a história
é uma analepse, pois, em 1953, quando Germa evoca a sua tia, já toda a família
desapareceu, a Vessada está abandonada e tudo o que a rodeia sugere
degenerescência e ruína. A evocação de Quina – seu nascimento e infância, sua
adolescência, maturidade, velhice e morte – é constantemente cortada por
digressões analépticas, antecipações, comentários e juízos de valor do narrador
ou da personagem narradora (Germa), de tal modo que acaba por constituir uma
história de três gerações que se complexifica e aprofunda à medida que se
desenvolve, sugerindo, no final, a sua pretensão de "esclarecer o homem e
trazer-lhe a solução de si próprio".
Da existência
de dois narradores e do facto de o narrador de 1.º nível retomar a voz de
Germa, narradora de 2.º nível, para intervir, comentar, aprofundar e conduzir a
narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica com o recurso à
analepse e à prolepse, etc., resulta um discurso fragmentado, descontínuo,
digressivo.
Eis alguns
exemplos de analepses, prolepses, elipses e sumários:
- grande analepse: nascimento
de Quina (p. 9, 3 períodos);
- analepse dentro dessa
analepse: primeiro encontro entre os pais de Quina (pp. 9-11);
- prolepse dentro da segunda analepse:
11 anos depois, dá-se o casamento quase inexplicavelmente secreto dos pais de
Quina, que continuam a viver separados (pp. 11-12);
- episódio seguinte, dentro da segunda
analepse: Maria foge para casa do marido (pp. 12-13);
- outro episódio dentro da
mesma analepse: o pai de Quina liga-se a uma amante, Isidra (p. 13);
- analepse do episódio
anterior: história da mãe e da infância de Isidra (pp. 13-14);
- analepse do mesmo episódio,
mas posterior à anterior analepse: descrição das circunstâncias em que Isidra
conheceu o pai de Quina (pp. 15-17);
- regresso à vida conjugal
entre os pais de Quina (pp. );
- nova analepse: o incêndio na
casa dos pais de Quina (pp. 18-19);
- grande prolepse: a mãe de Quina
enviuvou há 40 anos, está velha, tonta e confunde um seu filho com o falecido
marido;
- elipses: "Onze anos
depois, casavam." (p. 11);
- sumários: "(...) As
mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no ciúme umas das outras para o
privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse as esperanças para sempre.
Os seus amores com Maria passaram despercebidos, tanto ele temia o escândalo
das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas ameaças." (p. 11).
Também
encontramos vários exemplos de silepses, entre as páginas 103 e 108: fala-se da
vaidade que Quina tem nos seus dons miraculosos; passa-se à agonia de um
velhote; passa-se depois a falar de Domingas, uma amortalhadeira que anda
sempre a falar das qualidades que o marido tem, e dos maridos que teve, e que
aliás mais tarde se sabe ser ela quem os envenenou; e a seguir, a pretexto do
velório, fala-se do pároco da terra e das complicadas relações sociais que ele
mantém com Quina e com a mãe de Quina. Em suma: são quatro sequências narrativas
simplesmente justapostas num espaço de seis páginas apenas.
Tempo de A Sibila
Esta obra
obedece a determinados condicionalismos: evocação na memória de Germa,
inspiração na tradição oral dos contadores de histórias e quase ausência de
intriga. Por isso, o tratamento do tempo tem de ser estudado à luz desses
condicionalismos. Assim, os narradores não tratam de forma linear os cem anos
do tempo da história.
A história de
Quina é uma grande analepse na memória de Germa; dentro desta analepse, há
muitas analepses e prolepses. O discurso segue um movimento de vai-e-vem, é
frequentemente elíptico, fragmentando o tempo. As sucessivas digressões do
narrador desprezam a cronologia normal, os acontecimentos são apresentados de
forma acumulativa e caótica, o que favorece o discurso iterativo, necessário
para recuperar antecedentes de Quina e para ilustrar a vida das personagens e
preencher longas pausas; o discurso repetitivo é também frequente, há
necessidade de retomar muitos acontecimentos deixados em suspensão.
Da fragmentação
do tempo, das sucessivas repetições, cria-se a imagem de uma realidade sempre
em fuga: quando um acontecimento é retomado, quando um objeto é novamente
analisado, há algo de novo, de sempre novo. O leitor é convidado a ir à
descoberta das semelhanças e das diferenças. Procura-se o que está oculto,
procura incessante e nunca acabada.
sexta-feira, 16 de agosto de 2019
Espaço psicológico de A Sibila
O espaço
psicológico, revelação do interior das personagens, é geralmente observável a
partir de monólogos interiores, sonhos, visões, meditações, devaneios ou
reflexões.
Sendo Quina e
Germa personagens modeladas, são, evidentemente, dotadas de grande densidade
psicológica, de uma vida interior rica e capazes de recorrer à introspeção.
No caso de
Quina, a revelação do espaço psicológico ocorre nos momentos de transe ou
desorbitação (pp. 66-67, 170) e nos derradeiros instantes de vida (p. 234).
A vida interior
de Quina manifesta-se, sobretudo, na sua reação contra o materialismo
interesseiro do pai, na evocação emotiva que faz da tia e das suas histórias
contadas à lareira (pp. 143-144), no desdém por Bernardo (pp. 7-9).
O espaço social de A Sibila
Sendo A Sibila
um romance de personagem, todas as personagens secundárias e todos os
acontecimentos gravitam em torno da protagonista e contribuem para a sua
caracterização.
Aos dois
espaços físicos antagónicos, correspondem dois espaços sociais também
antagónicos: as pessoas do campo e as pessoas da cidade. A sociedade rural é
portadora das mais legítimas e autênticas tradições portuguesas e a sua
autenticidade contrasta com o artificialismo e a superficialidade da sociedade
urbana, onde se refugiam os que atraiçoaram a ruralidade e esqueceram a terra.
Quina insere-se no primeiro espaço (o campo) e repudia o artificialismo da vida
urbana, privilegiando os ideais da vida rural. Este ponto de vista da
protagonista está de acordo com o do narrador omnisciente (autora), isto é,
quanto à visão dicotómica da sociedade portuguesa, na medida em que ela é imposta
pelo abandono do campo, pelo desprezo do povo rural e dos seus valores
tradicionais. Esta visão dicotómica da realidade social denuncia ainda a
injustiça do abandono e esquecimento da terra e seus valores, imprescindíveis
em qualquer sociedade.
O ostracismo a
que a terra é votada pela burguesia urbana, pela própria aristocracia rural e,
consequentemente, pelo poder político central, leva a que estejamos perante uma
sociedade bastante restrita e recriada através da caracterização de vários
estratos: as mulheres (matriarcas, reprimidas, casamenteiras); os maridos
repressores; os conquistadores; os aristocratas e os burgueses rurais; os
agiotas; os marginais; os emigrantes (falhados e bem sucedidos); os padres de
aldeia; os que renegam as origens; ... .
Há ainda outra
dicotomia: o homem e a mulher. O homem é visto, numa perspetiva crítica, como
um ser egoísta, repressor da mulher, boémio e destruidor de fortunas. A mulher
aparece-nos como um objeto do homem, desprezada e oprimida. Grande parte das
reações e comportamento de Quina constituem uma compensação psicológica em
relação ao machismo dominador do homem.
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