Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais
uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador
alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos
franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a
forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor”
logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
O
trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”),
para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio,
/ estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos
franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a
condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O
trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje
por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o
membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não
poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer
sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
Ironicamente,
o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha
a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa
possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro
caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das
damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer
conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu»
poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de
uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios,
cada um contendo dois.
O
presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços
especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes
(“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados
em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro
aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
Em
primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o
que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito
isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente
reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais?
Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde
logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece
fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a
qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados
num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de
«fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente
feminino, tratado entre mulheres.
Em
segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos
franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o
facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da
função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro
caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma
ironia.
Em
terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19
(“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência
ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na
cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os
melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela
mulher e porque esta merece.
Em
quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos”
possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos
eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente
proporcionariam prazer a quem os usasse.
A
cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica
medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase
de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os
referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de
acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós),
não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
Por
outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes
talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for,
esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia
trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas
dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta
composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do
regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter
acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher
casasa também o pudesse?
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