Português: Análise da Cena VIII do Ato I de Frei Luís de Sousa

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Análise da Cena VIII do Ato I de Frei Luís de Sousa


Assunto: diálogo entre Madalena e Manuel de Sousa, durante o qual aquela o tenta demover da decisão de se mudarem para o palácio de D. João e este se mostra inabalável.


Caracterização das personagens

Manuel de Sousa:
- sempre respeitou D. João de Portugal;
- não teme o passado;
- sereno e decidido (observe-se a sua linguagem);
- forte;
- patriota: “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.” (pleonasmo);
- amor à pátria e à liberdade;
- desrespeito pelos argumentos da esposa, que considera “caprichos”, “agouros”, “vãs quimeras de crianças”, preferindo magoá-la a esquecer os seus princípios;
- inabalável e firme nas suas decisões;
- crente em Deus: “Não há senão o temor a Deus”;
- ironia das repetições dos pronomes num discurso duplo para o espectador: “E o presente, esse é meu, meu só, todo meu…”;
- é o modelo do herói clássico:
. age segundo a razão;
. orienta-se por valores aceites como universais:
- a honra cavalheiresca;
- o culto do dever;
- a lealdade;
- o patriotismo;
- a liberdade.

D. Madalena:
- obediente ao marido: “eu nunca me opus ao teu querer, nunca soube que coisa era ter outra vontade diferente da tua; estou pronta a obedecer-te sempre, cegamente, em tudo”;
- amargurada e angustiada;
- aterrorizada por constantes agouros e pelo passado: “… que vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre…”;
- gradação crescente e hipérbole dos seus temores – menciona todas as preocupações e profetiza mesmo a morte: “(…) a violência, o constrangimento de alma, o terror (…) viu ser infeliz, que vou morrer (…) sem que todas as calamidades do mundo venham sobre nós.”;
- convicta, até ao final, de que consegue demover o marido;
- é o modelo da heroína romântica:
. vive obcecada pelos fantasmas do passado;
. age pelo coração, pelo sentimento.

Concretiza-se nestas cenas a ideia de que, em Madalena, a contradição entre a felicidade aparente e a desgraça íntima revela uma consciência moral atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente de D. João, mordida pelo remorso proveniente da consciência de pecado. Motivações de ordem psicológica e moral profundamente enraizadas na psicologia desta personagem, movimentada dentro do quadro de uma sociedade cristã, onde o matrimónio é um vínculo indissociável que só a morte poderá quebrar, conduzem a reações e ao comportamento desta figura, cheia de ambiguidades, tão rica, tão modelada, “mulher e muito mulher”, forte no amor, na paixão por Manuel de Sousa, fraca perante os agouros, os presságios, os indícios de “uma grande desgraça” iminente, terna, lutando até ao fim pela felicidade, procurada mas nunca alcançada plenamente, rendida contra vontade perante o irremediável Destino que a destrói, liquidando todos os sonhos de felicidade neste Mundo, junto do homem que amou. As reticências são uma abertura pela qual os espectadores observam o seu íntimo conflito de consciência.

NOTAS:

1.ª) Existe um contraste nesta cena entre a linguagem serena, decidida, de Manuel de Sousa e a de D. Madalena, hesitante, titubeante, emotiva e excitada. Estão frente a frente dois mundos: o universal e o individual; estão frente a frente dois tempos: o presente e o passado; um terá de vencer. Ela tem um discurso sentimental, marcado por emoções violentas. De acordo com a época em que vive, é submissa ao marido, apelando ao seu coração para o dissuadir, mas ele tem um discurso racional, mostrando-se forte e seguro, impondo a sua decisão, baseado em argumentos sólidos.

2.ª) As duas personagens vivem, pois, um conflito dominado pelo tempo. Neste campo, a palavra caprichos tem um significado diferente para ambos. Para Manuel de Sousa, trata-se de uma teimosia incompreensível; para D. Madalena, trata-se de uma questão de vida ou de morte, um dilema fatal. Um minimiza a situação, o outro empola-a.

3.ª) Manuel de Sousa desvaloriza os argumentos da esposa. De facto, D. Madalena argumenta com base na emoção, condicionada pelo medo e pelo terror de que a figura de D. João interfira na felicidade da família. Os seus argumentos são óbvios: pressente que não vai ser feliz e pressente que irá encontrar, na outra casa, a sombra despeitosa de D. João. O marido considera que esta argumentação não é razoável, tratando-se de um mero capricho, causado pela “fraqueza de acreditar em agouros”. Pelo contrário, ele mostra ser racional e pragmático. No final, chama D. Madalena à razão e lembra-lhe a sua condição e as responsabilidades que tem, o que implica que tenha um comportamento digno e firme, visto que a situação assim o exige.

4.ª) Os argumentos de Manuel de Sousa para contraditar a esposa e afastar os seus receios são os seguintes:
- não há outro lugar para onde ir, de repente;
- não lhe custa viver onde viveu D. João com D. Madalena;
- ela não deve acreditar em agouros; a única crença que deve ter é em Deus;
- nada tem a temer porque nunca pecou;
- não deve recear a perseguição por parte da alma de D. João.

5.ª) A afirmação de Manuel de Sousa de que “não há espectros que nos possam aparecer senão os das más ações que fazemos” significa que apenas se devem temer os erros que se cometem conscientemente e mostra que desconhece a motivação profunda de D. Madalena para recusar mudar para o palácio de D. João.

6.ª) A alternância de tratamento de D. Madalena (senhora / tu) explica-se assim: no primeiro caso, realça-se a sua condição social – Manuel de Sousa pretende mostrar severidade para chamar a sua mulher à razão e aos seus deveres de membro da aristocracia; no segundo, a sua situação de esposa – ele manifesta ternura e compaixão pelo sofrimento da mulher (“Minha querida”).

7.ª) Na sua fala final, Manuel de Sousa reitera a sua intenção de dar uma lição aos tiranos e um exemplo ao povo, afirmando que se tratará de algo que os há de «alumiar». Este verbo pode ser interpretado de duas formas: por um lado, com o sentido de “dar luz”, revelando a decisão de incendiar o próprio palácio (cena XI); por outro, com o sentido conotativo de “esclarecer”, como um incentivo à oposição e à recusa da submissão e tirania.

8.ª) A frase “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal” significa que nem todos os portugueses aceitaram o domínio filipino e explica a insurreição de Manuel de Sousa, bem como o seu gesto de rebeldia e desobediência.

9.ª As figuras dos esposos apresentam traços psicológicos que se opõem claramente:
Manuel

Madalena
- Razão
- Honra
- Fidelidade ás suas ideias
- Firmeza
- Patriotismo
- Luta pela liberdade e pela independência

- Coração
- Temores e agouros permanentes
- Pressentimentos fatais
- Fragilidade
- Descontrolo emocional


Elementos trágicos (cenas 7 e 8)

Agón de D. Madalena:
- com Manuel de Sousa:
Manuel de Sousa, no regresso de Lisboa, resolve incendiar o seu palácio, para não hospedar os governadores Luís de Moura, o conde do Sabugal, o conde de Santa Cruz, “que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro”. O arcebispo já estava alojado no convento dos domínicos de Almada.
Tomando esta atitude dos governadores como opressão, prepara-se para dar “uma lição aos nossos tiranos que lhes há de lembrar,… um exemplo a este povo que os há de alumiar”, numa frase ambígua e profética. Para não “sofrer esta afronta”, diz, “é preciso sair desta casa”.
D. Madalena interroga-se, aterrada, diante do inevitável (voltar de novo para o palácio onde vivera com D. João), acerca do novo local de habitação. É a partir desta premente necessidade de mudar de residência que se manifesta o conflito de D. Madalena com Manuel de Sousa. As razões de D. Madalena são óbvias:
1.ª) “a violência, o constrangimento de alma, o terror com que eu penso em ter de entrar naquela casa”;
2.ª) “parece-me que é voltar ao poder dele, que é tirar-me dos teus braços, que o vou encontrar ali”;
3.ª) “vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre”;
4.ª) “sei decerto que vou morrer naquela casa funesta, que não estou ali três dias, três horas, sem que todas as calamidades do mundo venham sobre nós”.
        Por fim, um pedido ansioso:
5.ª) “Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor to peço, pela nossa filha… vamos seja para onde for, para a cabana de algum pobre pescador desses contornos, mas para ali não, oh, não!...”.
Ouvem-se as lágrimas, sente-se o sofrimento íntimo e atroz nestas palavras proféticas, dolorosas e ambíguas, carregadas de duplo sentido, cheias de motivações profundas, claras apenas para D. Madalena, só obscuras para Manuel de Sousa, desconhecedor do mistério e do segredo nelas contido.
Por isso, Manuel de Sousa, a princípio, interpreta esta repugnância como «capricho» bem feminino, e leva-a à conta de «fraqueza de acreditar em agouros». Se o coração e as mãos de D. Madalena «estão puras», colo ele crê, em sua boa fé, então «não há espectros que nos possam aparecer». Espectros só os das «más ações». Tudo isso são «quimeras de criança». Por fim, chama-a à razão e lembra-lhe as responsabilidades que ela tem, por si e pelos antepassados: «Vamos, D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes, senhora…».
Vencida, mas não convencida, nada mais adiantará para D. Madalena perante o irremediável: incendiado o palácio de Manuel de Sousa, vê-se forçada, muito a contragosto, a mudar de residência, a regressar a casa de D. João de Portugal.
- com D. João de Portugal: manifesta-se na relutância de voltar a viver sob o mesmo teto em que fora (não o era ainda?) esposa de D. João, e nas razões que apresenta (I, 7 e 8).

▪ A presença do Destino, que estabelece um clima de fatalidade que paira sobre as personagens.

▪ Os agouros e pressentimentos de destruição e morte, como o da espada, que sufocam D. Madalena.

▪ O pathos de D. Madalena


Características românticas
. crença em Deus;
. nacionalismo e patriotismo;
. interioridade / sensibilidade;
. adequação da linguagem às personagens: coloquialidade e emotividade – reticências, pausas, exclamações, interjeições, repetições;
. Manuel de Sousa representa o herói romântico que luta pela liberdade e pela pátria, contra a tirania;
. D. Madalena é a figura romântica da mulher dominada pelo sentimento (medo, culpa, agouros, terror…).

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