Esta
cantiga, da autoria de João Airas de Santiago, é constituída por três sétimas e
uma finda de dois versos (dístico), com rima interpolada e emparelhada, segundo
o esquema rimático ABBACCA, em versos decassílabos.
O
trovador expressa a sua queixa perante a Justiça, que não quer aplicar a
sentença que estabelece o Livro de León a uma dama galega chamada Mor da Cana, eventualmente
irmã do trovador Paio da Cana, que lhe queria bem, mas, assim que o teve em seu
poder, o matou de amores sem razão: “Ai Justiça, mal fazes, que nom / queredes
ora dereito filhar / de Mor da Cana, porque foi matar / Joan’ Airas, ca fez mui
sem razom” (vv. 1-4). As leis antigas de Leão estabeleciam que o assassino era
enterrado por baixo da sua vítima, daí que o trovador, em nome do “Livro de
Leon”, exija que coloquem debaixo de si Dona Mor da Cana, visto que esta o
matara de amores. O caráter malicioso da cantiga fica estabelecido a partir daqui:
“mais se dereito queredes fazer, [se a Justiça quiser agir corretamente] / ela
sô ele devedes a meter [deveis metê-la debaixo dele] / ca o manda o Livro de
Leon”.” [pois o manda o Livro de Leon]. De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt,
este texto será, provavelmente, o Fuero de León, a mais antiga
compilação de leis da Península Ibérica, promulgado em 1017 pelo rei de Leão,
Afonso V. Todavia, segundo Eugénio López-Aydillo, dado que a referida pena não
se encontra nessa compilação, mas apenas no chamado Fuero de Cuenca,
poderemos estar perante um lapso do trovador. Acrescente-se, no entanto, que D.
Carolina Michäelis de Vasconcelos refere que, do foral da Lourinhã, consta a
pena de enterrar o assassino debaixo do cadáver.
Deste
modo, tendo em conta a primeira estrofe, podemos já afirmar que esta cantiga
constitui uma paródia ou amor cortês, nomeadamente ao tópico da morte de amor.
Por outro lado, estamos perante o recurso à despersonalização, justificada pela
alegada morte do trovador, de quem só uma terceira pessoa poderia assim falar,
ou seja, a despersonalização consiste no facto de o poeta falar de si próprio
através da voz de um terceiro. Além disso, temos de ter em conta que este
recurso está no centro de diversas cantigas de amigo, nas quais diversas vezes
a voz feminina que se ouve no texto é, de facto, u mero recurso para a
expressão de sentimentos pessoais e até dados biográficos do próprio trovador.
A
segunda estrofe reforça a ideia de que a mulher foi matar o sujeito poético
precisamente quando ele mais lhe queria: “e quando lh’el queria mui melhor, /
foi-o ela logo matar ali” (vv. 10-11). Por isso, roga que seja observada
justiça, aplicando à figura feminina a antiga pena de a sepultar, enquanto
“assassina”, debaixo dele, “pois tam gram torto fez” – “metede-a já sô el ua
vez, / ca o manda o dereito assi”.
A
terceira estrofe reforça, ainda mais, a mensagem das duas anteriores: quando o
trovador acreditava que “houvesse de Mor da Cana bem”, foi “assassinado” por
ela, exatamente no momento em que se tornou seu vassalo e a começou a servir:
“foi-o ela logo matar por en, / tanto que el em seu poder entrou”. É a sátira
clara ao amor cortês, aos tópicos da vassalagem amorosa e da morte de amor. Nos
versos finais desta cobla, reitera, novamente, o pedido para que seja feita
justiça, “sepultando-a” por baixo dele, fazendo-a, assim, padecer: “metam-na sô
el, e padecerá / a que oi a mui gram torto matou”.
A finda
que encerra a composição poética prossegue o tom humorístico e malicioso
introduzido a partir do verso 6: quem os vir deitados (“E quen’os ambos vir
jazer”), abençoará o “juiz” que “julgou” o caso e determinou a sentença:
“Beeito seja aquel que o julgou!” (v. 23). Note-se que este derradeiro verso
poderá constituir uma referência equívoca a D. Beito, o símbolo do marido
enganado, que é visado em três cantigas de João Airas de Santiago.