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sábado, 7 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achei Sanch’Eanes encavalgada", de Afonso X

    A presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
    A cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra, um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo, gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
    A comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, / e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”, “en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
    Atente-se no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha” é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar, acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
    Além da hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo, estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010). O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha (“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia (“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada legalmente em várias legislações medievais.
    Por outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social, designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
    A mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda, metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha. Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse, o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
    As duas palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
    Um outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco, incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v. 14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz: «Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário, pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”. Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada (“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina, vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
    Em suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente com uma mulher.
    Outras interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava, bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).

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