Português: 14/12/24

sábado, 14 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os níveis, incluindo o sexual).
    De facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida – para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade, o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte, dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
    Partindo do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir / quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
    Por isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou / e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual, pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte da abadessa.
    Na quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que, quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes vós mais fazer / ao comendador entom”.
    Na finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem / de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”, em geral religiosa).
    Ao contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa. Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui para a formação do tom de malícia.
    Nota, por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim” (v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim” (v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
    Esta cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
    A já referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar” referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou de outra mulher que lá morasse também.

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