domingo, 11 de abril de 2021
Caracterização do Rata
▪ Era amigo de Batola, mas contrastava
com ele: aquele vive conformado e apático; este saía frequentemente da aldeia e
percorria o Alentejo, embora o máximo onde tenha chegado tenha sido Beja. De
facto, a personagem vivia de esmolas que ia recebendo em várias terras.
▪ Rata é um mendigo e viajante, uma
espécie de mensageiro que traz novidades do que se passa para além dos limites
da aldeia. “Ao escutá-la durante «tardes inteiras» de forma entusiasmada,
também Batola parecia viajar por «todo aquele mundo». Esta hipérbole (o mais
longe que Rata viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos
habitantes de Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar «pelos longes»,
Rata suicidou-se.” (Violante Magalhães, in Conto Português [séculos XIX-XX]:
Antologia Crítica). Este suicídio agudiza a solidão do Batola.
▪ Constituía um agente de mudança,
pois trazia o mundo exterior até à aldeia, graças às suas saídas, combatendo o
isolamento de Alcaria e dos seus habitantes.
▪ Quando a miséria e a doença o
forçam a uma existência estagnada e repleta de privações, suicida-se. De facto,
o reumatismo tinha-o tornado incapaz de sair da aldeia. Quando se viu preso e
impedido de viajar, o Rata mata-se por não se conformar com o isolamento e a
solidão a que se viu remetido pela doença incapacitante.
Caracterização dos habitantes de Alcaria
▪ Os homens de Alcaria são
apresentados como «figurinhas» (de presépio?) que vivem em casas
«tresmalhadas». Atendendo a esta caracterização das casas (continente), os
homens que as habitantes (conteúdo) são aparentados com gado. […] eles são «o
rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado
pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão». A tudo isto
acresce a falta de esperança numa vida melhor. Batola não enfrenta aquele tipo
de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de preguiçar, bebe «o melhor
vinho que há na venda», carrega um fio de ouro no colete. Todavia, consciente
da vida difícil dos demais aldeãos, ele é solidário. E partilha a condição
animalesca dos conterrâneos: […] «rumina» a revolta; os suspiros saem-lhe «como
um uivo de animal solitário».” (Violante Magalhães, in Conto Português…].
Relação entre Batola e a mulher
▪ A relação que mantêm gera raiva e
revolta nas duas personagens. Vivem juntos, mas mal se falam, e o silêncio
domina a sua convivência diária, o que gera um estado permanente de tensão,
raiva e revolta, o que desemboca na violência ocasional.
▪ A mulher é dominadora, enérgica,
autoritária quando tem de tomar decisões; ele é passivo, indolente e torna-se
violento quando alcoolizado.
▪ Após a compra da telefonia, a
situação muda: o Batola corda cedo e assume a gestão da venda, que antes cabia
à mulher, que fica em casa e raramente marca presença no espaço comercial. A
própria atitude da esposa relativamente ao marido é bastante diferente: o seu
autoritarismo desaparece e, agora, surge «com um ar submisso» e humilde, como o
evidencia o modo como lhe pede, humilde, quase sob a forma de murmúrio, que
conservem o aparelho radiofónico.
Caracterização da mulher do Batola
▪ Psicologicamente, é uma mulher ativa,
dinâmica, diligente e determinada, mas também autoritária e prepotente. De
facto, é ela quem gere a casa e o negócio do casal: “abre a venda”, avia os
fregueses, “põe e dispõe”.
▪ É ela quem detém, pois, o poder e
revela-se “silenciosa e distante” relativamente ao marido, ao contrário de quem
toma decisões com lucidez. A vida dura e rotineira que tem não a inibe nem
impede de seguir um rumo.
▪ A aquisição da telefonia vai
provocar uma alteração na personagem: perde o seu ar autoritário e prepotente e
mostra-se submissa, “com uma quase expressão de ternura”, pedindo ao marido
para ficar com a telefonia. De facto, se, no início, se distancia para não
compartilhar da alegria e do entusiasmo do marido e do povo da aldeia, acaba,
no final, por se render ao aparelho e às mudanças que este trouxe,
provavelmente porque ganhou gosto pela nova vida que ele lhe aportou. Também
ela sentia, como os demais, a necessidade de uma companhia (“Sempre é uma
companhia”), de romper a solidão e o isolamento em que vivia.
▪ A sua recusa inicial justifica-se
pelo facto de, para si, a rádio não possuir qualquer utilidade, constituindo
apenas um luxo e, consequentemente, um desperdício de dinheiro; por outro lado,
a compra da telefonia não é uma decisão sua, o que constitui outro motivo para
se lhe opor.
▪ Não possui nome próprio no conto, o
que pode significar que mais importante do que a sua identidade é o papel que
desempenha na ação.
Caracterização do Batola
▪ Psicologicamente, no início do
conto, apresenta-se como um indivíduo desmotivado, passivo, entediado,
preguiçoso, desinteressado e deprimido, traços sintetizados na expressão “[…] a
vida do Batola é uma sonolência pegada”.
▪ Por outro lado, é agressivo,
violento, pouco polido e fraco, como o demonstra o facto de se entregar ao
vício da bebida, de agredir a mulher e não conseguir superar a situação em que
se encontra, o que gera frustração.
▪ Face à vida que tem, sentindo-se só
(solidão essa que radica na ausência de convívio com os habitantes da aldeia) e
desesperado, evade-se através do álcool (passa os dias “a beber de manhã à
noite”) e da ausência (“para ali fica com um olhar mortiço”).
▪ O comportamento e a relação com a
mulher suscitam-lhe revolta, a entrega à bebida e, frequentemente, a agressão /
violência física: “Era o Batola, bêbedo, a espancar a mulher”. De facto, a
relação do casal é marcada pela agressividade e pela violência.
▪ A venda proporciona ao casal uma
vida económica desafogada, comparativamente ao resto da comunidade, o que,
todavia, não impede que se sinta só, frustrado e vazio interiormente.
▪ Depois da aquisição da telefonia, o
Batola sofre uma mudança de comportamento. Assim, torna-se um indivíduo
trabalhador, conversador e interessado no que se passa no mundo, adquirindo
gosto pela vida. O convívio com as outras pessoas, que passam a vir à venda
para ouvir rádio, quebra a sua monotonia, tristeza e solidão, e a sua
existência passa a ser preenchida com a música e a informação que lhe chegam
via aparelho.
Ação do conto "Sempre é uma companhia"
quinta-feira, 8 de abril de 2021
domingo, 4 de abril de 2021
Resumo do conto "Sempre é uma companhia"
O conto situa-se na época da II Guerra Mundial e narra-nos a história de um casal que possui uma venda numa aldeia alentejana e cujo quotidiano é caracterizado pela solidão, pelo isolamento do mundo, pela monotonia e tédio e pela agressividade entre os membros desse casal.
Este panorama é alterado com a
chegada de dois vendedores de telefonias, que convencem o Batola, a personagem
principal, a comprar um aparelho. Perante a oposição da mulher, um dos vendedores
propõe uma compra à condição: a telefonia ficará à experiência durante um mês.
Passado esse tempo, se não a quiserem, poderão devolvê-la e receber de volta as
“letras”.
A aquisição do aparelho provoca uma
mudança enorme na povoação e na vida dos seus habitantes: os ceifeiros
dirigem-se todos à venda do casal para ouvir as notícias da guerra, saem de lá “alta
noite” e a discutir o que ouviram “numa grande animação”. As mulheres
deslocam-se igualmente para a venda após a ceia, para ouvir as melodias e até
(as velhas” dançar ao som da telefonia. Os aldeãos sentem-se, assim, agora,
mais próximos do mundo, por consequência menos isolados e solitários.
Esta mudança acaba por se estender à
própria mulher do Batola, que abandona a sua prepotência e o seu autoritarismo
e se mostra submissa, pedindo ao marido para ficarem com a telefonia, visto que
“é uma companhia” naquele deserto.
sábado, 3 de abril de 2021
"Os rios nasceram nossos", Quarteto 1111
O mito de Cupido e Psique — Brendan Pelsue
segunda-feira, 29 de março de 2021
domingo, 28 de março de 2021
"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes
Apesar de o título do poema apontar
para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto
autobiográfico?
É certo que o elemento «auto-» está
presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos
«meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que
aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia
se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo
que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A
Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva
presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da
autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia,
mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora
admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um
texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por
questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.
Uma leitura metafórica do poema permitiria
entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas»
como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente,
sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer
poético.
Porém, o poema pode ser lido também
de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do
quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam
de brincar com estas.
O uso do determinante possessivo
tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético
não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os
gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as
baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel
importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não
tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).
Numa crónica publicada na revista “Visão”,
Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido
durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação
metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos,
isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz
– e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que
em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua
interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois.
Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na
cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou,
com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”
A partir da leitura desta crónica,
Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que
“[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação
simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do
sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e
baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.
Assim sendo, esta composição poética
é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio
poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que
pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título
longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um
poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o
assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito
risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e
pela solidão humana que pode sugerir).
Além disso, os gatos ligam-se
afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma
que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a
escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão
associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória:
“O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para
crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”
O poema, pela relação que estabelece
entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à
questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não
vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história
de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior
de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”)
que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade
factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente
garantida.
O uso do presente do indicativo na
apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja,
a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à
autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que
compreende o relato de acontecimentos passados.