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segunda-feira, 20 de maio de 2019

Análise do poema "Num bairro moderno"

. Tema: a oposição campo / cidade – dramatização de uma invasão simbólica da cidade pelo campo, representada por uma vendedeira e sua giga de frutas e legumes.


. Assunto: o percurso do sujeito poético, a caminho do emprego às dez horas de uma quente manhã de agosto, pelas largas ruas macadamizadas de um bairro moderno da cidade, e ao longo do qual faz contrastar o conforto dos habitantes do bairro com o esforço de uma vendedeira ambulante, uma jovem camponesa pobre. Os frutos e legumes que vende são o pretexto para uma transfiguração do real, transmutando os legumes e frutos num ser humano.

            Perante este cenário, é fácil concluir que o poema apresenta uma linha narrativa: o sujeito poético caminha, pelas ruas macadamizadas de um bairro da cidade, para o seu emprego, às dez horas de uma manhã quente de agosto. Em determinado momento vê uma camponesa pobre, uma vendedeira ambulante a colocar o cabaz pesado de frutos e legumes nas escadas de uma casa luxuosa. Esta é a cena que inspira nela a “visão de artista”, que é o principal foco do poema. O sujeito poético vai observando, com bastante pormenor, o que o rodeia, contrastando a frescura da vida confortável das casas “apalaçadas” com o calor daquela rua. Segue-se a caracterização da vendedeira e transformação dos elementos da sua giga num “corpo orgânico”.


. Estrutura interna


            Porém, este luxo da vida confortável na sombra fresca das ilhas privativas de verdura, que são as casas apalaçadas, contrasta com a crua hostilidade da luz e do calor na larga rua desabrigada: “E fere a vista, com brancuras quentes, / A larga rua macadamizada.” (vv. 4-5)
            O sujeito poético desempenha um papel activo na medida em que, enquanto caminha, vai observando o que o rodeia com uma particularidade de detalhes que constituem o seu próprio comentário selectivo. As casas grandiosas têm fontes e jardins; os seus interiores, vislumbrados através das janelas quando se abrem as persianas, revelam a folhagem pintada dos papéis de parede – o jardim capturado e enclausurado como um tema decorativo – e o reluzir reconfortante das porcelanas frias. Mas além de reportar o que vê e o surpreende nas ruas durante os passeios pelos bairros da cidade, ele integra-se nas várias cenas que anota na sua poesia. Daí, vemo-lo às “Dez horas da manhã”, a descer, “Sem muita pressa, para o [seu] emprego”, e a observar agudamente o meio ambiente. O “eu” projecta-se, assim, como quem vai todos os dias para o seu emprego, tal como qualquer lisboeta o faz, na rotina e monotonia típicas do ambiente citadino e burguês de qualquer capital em qualquer época. Perante esta vida monótona, o sujeito poético reage negativamente – fala das “tonturas duma apoplexia” que já se lhe tornaram quase habituais.
            Os ataques de tonturas levam o sujeito poético a ironizar enquanto caminha sobre a “vida fácil” representada pelas casas “apalaçadas” que abundam nas ruas largas e modernas que distam do seu emprego (est. 1-3). A sua observação contém particularidades que são o seu próprio comentário selectivo (estr. 2). O luxo contrasta com a hostilidade da luz e do calor (est. 1, vv. 4-5) que retém a sua visão na presença da vendedeira de hortaliça (est. 4-5), enquanto a restante cidade prossegue na sua rotina quotidiana (est. 8); o sujeito poético fica, porém, imerso na visão que o leva a recompor gradualmente um “novo corpo orgânico” com os produtos do cabaz da vendedeira (est. 9-12).


. 2.ª parte (estr. 4-6) – Entrada da vendedeira, simbolizando a invasão da cidade pelo campo.

            No ambiente hostil onde caminha, a atenção do sujeito poético é atraída pela presença da vendedeira de hortaliça numa escada de mármore.
            A rapariga é socialmente inferior ao sujeito lírico. No entanto, tem mais em comum com as ilhas de verdura do bairro moderno do que ele: pertence ao mundo natural da vegetação que, na forma do jardim ou da sua representação no forro das paredes, circunda e invade a casa apalaçada, da mesma maneira que ela invadiu a cidade com o seu “retalho de horta aglomerada”.


. Descrição da vendedeira:
“rota, pequenina, azafamada”tripla adjectivação, diminutivo;
“esguedelhada” – desleixada – , feia”dupla adjectivação, sensação visual;
– pobre, pelas vestes, que são apresentadas mesmo antes da camponesa em si mesma;
“ressoam-lhe os tamancos”sensação auditiva;
“o algodão azul da meia”sensação visual, metonímia;
“os seus bracinhos brancos”sensação visual, diminutivo carinhoso;
– demonstra ser activa, diligente, trabalhadora (estr. 13, vv. 1-5);
– mostra-se robusta [“Nós levantámos todo aquele peso / (...) Com um enorme esforço muscular.” – estr. 14, vv. 3-5; “E como as grossas pernas dum gigante...”, “... abóboras carneiras.”, estr. 20], em paralelo com o seu aspecto frágil: “magra, enfezadita” (estr. 19, v. 4)

            Esta descrição vinca bem o contraste entre a vitalidade dos produtos do campo transportados pela vendedeira e a sua fragilidade.
            Por outro lado, sugere a imagem de uma criatura pobre e privada de tudo, com uma vida que é uma verdadeira luta, pis embora “azafamada", continua “rota” e “esguedelhada”, de uma pobreza que se reflecte também nas meias que se abrem quando ela se curva. Não obstante, ela é alegre e “prazenteira”; a sua boa disposição reflecte-se nos tamancos que ressoam, no algodão azul das meias, na chita estampada e nas ramagens da sua saia, e dá-lhe uma projecção ao mesmo tempo “pitoresca e audaz”, como alguém que desabafa a sua própria penúria, com o “peito erguido, os pulsos nas ilhargas” (mostrando-se decidida), e “duma desgraça alegre” (paradoxo) que incita o sujeito poético.


. Relações:


            A tensão que existe entre o criado desdenhosamente impaciente e a hortaliceira tem uma projecção simbólica nos últimos três versos da estrofe, cujo efeito é a intensificação da atitude negativa do sujeito perante o criado: por transferência metonímica, a moeda «lívida, oxidada» representa a cara cor de cadáver («lívido», significando cor de chumbo, entre o negro e o azul, ou a cor cadavérica) do criado, o «bater» da imagem representa a atitude hostil deste perante a rapariga, enquanto as «faces» dos «alperces», sobre os quais a moeda cai, simbolizam, pela sua frescura saudável, as faces da própria rapariga. A bofetada verbal que se lhe dá transforma-se, assim, numa bofetada simbolicamente física.
            A pobreza desta vendedeira é um sintoma de injustiça social, tal como a riqueza contrastante das casas apalaçadas.


. Recursos expressivos:
sinestesia: "xadrez marmóreo" (sobreposição de sensações visuais e tácteis);
– nas estrofes 5 e 6 há um grande rigor de observação (“apesar do sol, examinei-a”), obtido através da importância conferida às sensações auditivas ("ressoam os tamancos") e às sensações visuais ("o algodão azul da meia", "os seus bracinhos brancos”, "um cobre lívido, oxidado”);
– na estrofe 6 nota-se a grande capacidade de síntese de Cesário Verde e do seu génio em conseguir caracterizar todo um universo social e psicológico através da fala do criado ("Se te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais...”), de gestos burgueses de arrogância presentes na expressividade do(a):
® superlativo analítico "muito descansado”;
® forma verbal "atira”;
® personificação "cobre lívido”;
® cariz pejorativo e desprezível presente no adjectivo oxidado – autênticos traços naturalistas da poesia de Cesário;
– a adjectivação utilizada para a vendedeira caracteriza-a como inferior, desprezível;
verbos: "notei", "examinei"    observação do sujeito poético.


. 3.ª parte – Transfiguração da realidade  –  marca surrealista 


. Marcas do real     – "E eu recompunha"
– a azáfama matinal de uma rua citadina (estr. 7-8):
. sensações olfactivas: "Bóiam aromas";
. sensações visuais: "fumos de cozinha", "claros de farinha";
. sensações auditivas: "uma ou outra campainha toca".


   


NOTAS:

            1.ª) O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela frágil mensageira do campo é uma mulher gigantesca com grandes seios maternais ("seios injectados”) e opulentas “carnes tentadoras”; uma Deusa-Mãe arquetipal, uma personificação da Natureza.

            2.ª) Este exuberante corpo vegetal é a antítese do corpo da vendedeira que o transporta: caracterizada inicialmente como “rota, pequenina, azafamada”, a rapariga é também “esguedelhada, feia” (estrofe 5), “magra, enfezadita” (estrofe 19), “descolorida nas maçãs do rosto, / E sem quadris na saia de ramagens” (estrofe 16).

            3.ª) A transfiguração do real (que foi desencadeada pelo “cobre lívido, oxidado” caindo sobre as “faces duns alperces” – estr. 6, vv. 4-5), essa fuga para o fantástico não significa um abandono do real, mas sim atribui uma visão mais ampla dos seus aspectos essenciais, conseguida através da transformação de sensações em imagens. Deste modo, dos frutos e legumes nasce a imagem das várias partes de um gigantesco corpo natural, simbólico do campo: prevalecem os substantivos, a adjectivação sugestiva [“túmido”, “fragrante”, est. 11, v. 3; “(...) vívida, escarlate”, est. 12, v. 3; “(...) hirtos, rubros”, est. 12, v. 5], o verbo expressivo em Bóiam aromas, fumos de cozinha” (est. 8, v. 1); existem enumerações (est. 10-11), elipses (est. 9, vv. 5; est. 10, vv. 4-5), comparações (“túmido”, “fragrante, / Como de alguém que tudo aquilo jante, / Surge um melão, que me lembrou um ventre”, est. 12, vv. 3-5; “E como um feto”, est. 12, v. 1); hipálage (“E às portas, uma ou outra campainha / Toca, frenética, de vez em quando”, est. 8, vv. 4-5); e metáforas [“(...) verdes folhos”, est. 10, v. 2; “São tranças dum cabelo (...)”, est. 10, v. 3; “E os nabos – ossos nus”, est. 10, v. 4; “E os cachos de uvas – os rosários dos olhos”, est. 10, v. 5].
            Em suma, esta metamorfose da realidade é bastante simbólica. A giga é “um retalho de horta”, daí que transpire força, vigor, saúde, vida, poder de transformação, por oposição à cidade, representada pelo sujeito poético e, de certa forma, pela hortaliceira, conotada com dor, sofrimento e, no limite, morte. Esta oposição campo / cidade, vida / morte é um dos binómios estruturadores da poesia de Cesário e está ligada ao mito de Anteu. Anteu foi um gigante, filho de Neptuno e da Terra. Na luta contra Hércules, Anteu recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e conseguiu desta forma eliminá-lo. Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera energias físicas ou psicológicas. No caso deste poema, o mito de Anteu está presente no sentido de que só o contacto com o real, mas sobretudo com o campo, com a terra, confere ao homem força e vitalidade.

            4.ª) Serão a reacção física negativa e a tensão psicológica que o sujeito patenteia na 1.ª parte apenas o resultado da monotonia da sua vida? Ou serão ao mesmo tempo o resultado de um esforço constante de sublimar problemas pessoais? Nesta ordem de ideias, o que lhe desperta o interesse não é a paisagem, em geral, mas, especificamente, as casas, os lares, que, por sua vez, representam tudo aquilo que lhe é negado pela sua inadaptação sexual. Enquanto o «eu» vai observando e anotando, apresenta-se-lhe repentinamente, de costas, a figura de uma pequena hortaliceira, e logo, numa imagem brilhante e visual, o sujeito foca nela um aspecto erótico, ou pelo menos, sugestivo, no «algodão azul da meia» que se abre quando ela se curva. Neste momento começa-se a sentir a tensão que noutros poemas se manifesta perante a figura feminina quando, «Subitamente, através da sua visão de artista», todos os controles, as barreiras censoriais erguidas contra os impulsos da líbido no processo de sublimação, se rompem, e segue-se-lhe depois o quadro mais sensual de toda a obra de verdiana, como seu o «eu» estivesse protegido e desculpado agora pela sua «visão de artista». É neste momento que a sexualidade inerente, insatisfeita e problemática do «eu», em termos da sua ambivalência, atinge o seu clímax.

            5.ª) Por outro lado, é aqui que o sujeito poético se apresenta na pele de um artista, de um poeta, no gesto demiúrgico de transformar esses alperces, humilhados pelo valor de troca e pela classe que o determina (representada no criado de uma casa apalaçada), num motivo de metaforização poética de recriação vital  -  de uma sobre-vida. Trata-se aqui de um projecto de sobre-vivência não só do sujeito, que passa a ter uma visão de artista e se autocontempla no acto de transmutar os simples vegetais, com a ajuda da luz do sol, num corpo recriado, mas também de sobre-vivência da própria natureza vegetal, reagindo contra a funesta redução do seu uso ao valor de troca, entendido como mortal: o cobre é qualificado de oxidado e além disso Cesário substituiu a qualificação da versão primitiva, «ignóbil», por «lívido». Deslocou o enfoque do conflito humano e sentimental para um nível mais profundo, onde a lógica económica se cruza com uma lógica fantasmática dominada pela pulsão de morte. Para revalorizar a natureza  -  os frutos e os legumes  -  o sujeito torna-se e mostra-se poeta, capaz de a recriar num corpo carnal, e põe a nu o procedimento metafórico com a sua capacidade fecundadora e produtiva. A metáfora transforma-se assim num equivalente da fertilidade da natureza.
            Convém ainda notar que não é um corpo qualquer que a «visão de artista» recompõe, mas pedaços de um organismo feminino, agigantados e plurais, numa série que caminha do mais epidérmico para o mais visceral, para os órgãos da digestão, da procriação e para os centros de vida: «ventre», «feto», «sangue» e «corações pulsando». Se a natureza comestível se transforma em natureza carnal e fértil, o contrário também sucede. A metáfora é também pretexto para uma oralização dos estilhaços do corpo feminino, tornando-o deglutível e nutritivo como as hortaliças e como elas revigorante, pois que é do «gigo» que o sujeito recebe «emanações sadias».

            6.ª) Uma vez que o sujeito poético recompõe, isto é, compõe de novo “um novo corpo orgânico” com os frutos e legumes vistos em termos metafóricos (“... descobria / Uma cabeça numa melancia...”), a sua actividade implica a existência anterior de um modelo ou arquétipo, de uma «ideia» no sentido platónico, que houvesse sido decomposto em frutos e legumes. Esse modelo é, portanto, a própria Natureza. Mas como o corpo que é recomposto é um corpo “novo”, fica também implícito que a Natureza, no processo da sua decomposição, tinha perdido a sua forma ou totalidade original. A visão de artista ganha, assim, uma dimensão mais ampla e mais profunda: é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.


. 4.ª parte (est. 13 - fim) – Interrupção da visão pelo pedido da vendedeira ao sujeito poético que a ajude, seguida da observação:

. da vendedeira:
- a palidez e a fragilidade:
. metáfora / sensação visual: "descolorida nas maçãs do rosto"(1) ;
. metáfora e hipérbole: "e sem quadris na saia de ramagem"(1) → associado à “rama dos papéis pintados” (v. 9) nas paredes da casa apalaçada, este verso torna-se numa comparação entre a vendedeira rural que invade a cidade com o campo e a casa citadina que aprisiona o campo na cidade;
. adjectivação expressiva: "pitoresca e audaz"; "magra, enfezadita"; "ver-dura rústica, abundante"; "repolhudas, largas"; "pobre caminhante"; "duas frugais abóboras carneiras";
. antítese e construção estrófica final, onde o verso mediano carrega com todo o peso dos 2 + 2 versos marginais, referindo-se aquele à «pobre caminhante» e os outros quatro, que o encaixam e esmagam, às «grossas pernas dum gigante» e à «verdura rústica, abundante» das abóboras:
"Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas largas." → contraste entre a fragilidade da vendedeira e a "robustez" dos produtos que transporta;
. comparação: "E como as grossas pernas dum gigante (...) / Duas frugrais abóboras carneiras", realçando as grandes dimensões e o peso das abóboras em contraste com a fragilidade da vendedeira;
. sensação auditiva: o pregão da vendedeira;
. oxímoro/paradoxo: "desgraça alegre";

. do conteúdo da giga:
- adjectivação expressiva: "repolhudas, largas"; "emanações sadias"; "duas frugais abóboras carneiras";
- sensações olfactivas: os aromas provenientes da giga;

. da realidade exterior:
- metáforas: "O sol dourava o céu";
“Seus raios de laranja destilada”;
- sensações auditivas: "E ao longe rodam umas carruagens"; "Oiço um canário";
- imagem: "... parece que joeira / Ou que borrifa estrelas"; "... e a poeira / Que eleva nuvens altas a incensá-lo";
- exclamação: "que infantil chilreada";
- adjectivação expressiva: "infantil chilreada".

            O aspecto da colaboração aprazível que se salienta na expressão «sem desprezo» reforça-se pelo uso da 1.ª pessoa do plural do verbo junto com o pronome correspondente, que estabelece um cunho de intimidade relativamente à relação que assim se institui entre o sujeito e «ela». A hortaliceira depois agradece-lhe e ´é como se o «eu» se purificasse e purgasse do fastio que sente em relação ao meio urbano por ter tido este contacto com uma presença feminina bem diferente da maioria das mulheres que se nos afiguram na poesia de Cesário em geral. Mas, se bem que o contacto se realize e o sujeito consiga vencer momentaneamente a distância social entre ele e ela, é um contacto passageiro cujo aspecto transitório se salienta pelo substantivo «despedida», com a sua conotação de partida, que, por sua vez, se realça em função do pronome demonstrativo do terceiro grau («naquela despedida»). A separação já implícita concretiza-se pelos verbos motores que se lhe seguem quando os dois seguem em direcções opostas, num acto mútuo de afastamento que transpõe para o lado espacial o que já se verificou no temporal: «E enquanto sigo para o lado oposto, / [...] / A pobre afasta-se [...].» A relação «eu-ela» marca-se com o afastamento, um afastamento implícito e "psicológico", em função da divergência de classe social, e um afastamento explícito e físico, em função da dinâmica do desencontro.

            Como foi dito anteriormente, a “visão de artista” do sujeito poético é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.
            É nestes termos que a atitude dele perante a pobreza da rapariga pode tomar a forma aparentemente contraditória acentuada pelo uso do verbo incitar na sequência do oximoro “desgraça alegre”. A rapariga, como a transportadora da energia vital que falta ao sujeito poético – aprisionado na rotina diária da sua vida citadina contra a qual reage com frequentes tonturas ou da qual procura fugir em fantasias visionárias – , é ela própria transfigurada porque transfiguradora. Até a sua miséria pessoal é secundária à riqueza funcional da sua identificação com o mundo natural que representa. Com efeito, é directamente dela que o sujeito poético recupera a força simbolizada por esse mundo. Ela pede-lhe, “prazenteira”, que a ajude a levantar o pesado cabaz e ele acede, “sem desprezo”; a frase com que ela lhe agradece tem nele o efeito mágico de uma bênção:
“«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.”
            O efeito cómico dos últimos versos é característico do uso de ironia como um mecanismo de correcção sentimental na poesia de Cesário: a virtude é o seu próprio prémio, mas uma boa digestão ajuda. Mário Sacramento refere que este comentário irónico se relaciona com as “tonturas” a que o sujeito poético se refere no início do poema: «Tal “digestão desconhecida” só ironiza se tivermos presentes os prenúncios de apoplexia que o narrador nos havia confiado sessenta versos atrás Não obstante a auto-ironia, o contacto do sujeito poético com a vendedeira, que, no plano simbólico, é a transportadora da Deméter construída pela sua “visão de artista”, tem sobre ele um efeito regenerador: sente-se com força, alegria, plenitude.
            A metamorfose dos frutos e dos legumes tem, portanto, um equivalente psicológico na transformação subjectiva que ocorre no sujeito lírico. O processo dessa transformação gradual é marcado pelas sucessivas modificações da sua atitude em relação ao Sol. Inicialmente um sol real e hostil, cuja intensidade interfere com a visão literal das coisas – “E eu, apesar do sol, examinei-a” (est. 5) – , torna-se ele próprio, no acto da visão artística, num “intenso colorista”, num artista também, e num aliado do sujeito lírico: “Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista...” (est. 7).
            E logo que o artista acaba de “dourar” a realidade no seu acto de imaginação criadora, assim também “o Sol dourava o céu” (est. 13). A maiúscula, indicativa da personificação do sol, que não fora usada na primeira referência ao sol real, também o não vai ser quando aparece pela última vez, de novo o sol real, mas agora como um efeito metonímico do gosto e da cor da própria fruta (est. 18).
            A atenção do sujeito poético volta a incidir sobre os pormenores do seu ambiente imediato. Na quadra anterior tinha observado as nuvens altas de poeira a “incensar” uma criança que regando uma trepadeira, numa “janela azul”, “parece que joeira ou que borrifa estrelas”. Agora ouve a “infantil chilreada” de um canário, sente a lida das ménages entre as geloseias” e vê o Sol de novo integrado no contexto dos outros objectos da realidade restaurada. Mas a vendedeira – “magra, enfezadita” – só é parcialmente restaurada à realidade das suas circunstâncias objectivas, pois continua ainda associada às qualidades de “força, alegria, plenitude” transpostas para ela da Natureza.
            A visão final do sujeito lírico, no entanto, não é a rapariga magra e enfezadita mas as enormes pernas de um gigante emergindo, sem tronco, da “verdura rústica” do cabaz que ela leva à cabeça:
“E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.”
            Esta nova metamorfose do conteúdo do cabaz, a visão das pernas do colosso triunfante carregando sobre “a pobre caminhante”, funciona como um comentário ambíguo e complexo da primeira metamorfose. A mudança do estado psicológico do narrador estivera intimamente ligada à obliteração visionária da percepção objectiva da vendedeira e dos seus produtos; esta última visão reintegra a percepção compadecida da rapariga, finalmente entendida como uma “pobre caminhante” esmagada pela imensidade do peso que transporta.
            Esta complexa atitude em relação à vendedeira de “Num Bairro Moderno” marca um ponto de viragem no tratamento do contraste campo-cidade na poesia de Cesário. Na prévia polarização de sentimentos e de atitudes nesta antinomia, «campo» tinha representado um conjunto de recordações, de percepções e de projectos que funcionavam como uma metáfora de uma ordem oposta à realidade constritora da cidade. Era portanto definido em termos negativos: o significado de «campo» só era deduzível por contraste com o seu pólo oposto, a cidade confinadora. Era uma essência sem existência real.
            A metáfora amplificada que é “Num Bairro Moderno” funde a observação e o símbolo: o contraste entre os pólos semânticos, representados pela cidade e pelo campo adquire neste poema uma nova dimensão que prevê a investigação e a análise do campo nos seus próprios termos, independentemente da ideia ou conjunto de ideias sobre a cidade que haviam determinado a definição do campo como seu equivalente antinómico.
            O ponto nodal da evolução semântica da metáfora “campo” é a consciência social despertada pela cidade, e expressa na atitude compadecida e revoltada dos narradores de “Desastre” e de “Contrariedades” perante a pobreza e a opressão que nela observaram. É significativo que a desgraça do ajudante de pedreiro de “Desastre” não tenha sido temperada por qualquer elemento de “alegria” que pudesse inspirar o narrador a uma visão transfiguradora e que a miséria da engomadeira de “Contrariedades” não tenha sido considerada nem “pitoresca” nem “audaz”. O único incitamento trazido por essas duas vítimas da exploração citadina foi ao protesto contra a ordem social denunciada pelas suas situações.
            A pobreza da vendedeira de “Num Bairro Moderno”, descrita objectivamente pelo narrador antes de ser neutralizada pela sua visão transfiguradora da Natureza, é um sintoma tão claro da injustiça social como a riqueza contrastante das casas apalaçadas.
            Este contraste, dramatizado no sobranceiro e alienado desdém de um criado de uma dessas casas pela rapariga (“Do patamar responde-lhe um criado: / «Se te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais.» E muito descansado, / Atira um cobre lívido, oxidado, / Que vem bater nas faces duns alperces.”) e no contraste implícito entre a imagem das carruagens rodando ao longe e a imagem da “pobre caminhante” curvada sob o seu pesado fardo, revela a posição anómala do narrador, que nem pertence ao campo como a vendedeira, nem tem o poder para se apropriar de um pedaço de campo para seu uso privativo na cidade, como os donos das casas apalaçadas.
            O bairro moderno e a visão inspirada pela presença da camponesa nas suas ruas representam duas maneiras de resolver a anomalia: o narrador pode tentar triunfar na cidade, nos termos da cidade, e assim alcançar a vida fácil e confortável das casas apalaçadas; ou pode transfigurar a cidade, num acto de imaginação artística. Mas é no seu contacto humano com a vendedeira que recebe as forças, a alegria e a plenitude que lhe faltavam. A ajuda que oferece “sem desprezo”, em contraste dramático com o desprezo do criado alienado, sendo uma recusa das hierarquias sociais em que ele próprio, a caminho do emprego, está relutantemente integrado, é o prelúdio da sua compadecida visão final da “pobre caminhante”.
            Assim, a base de uma possível resolução dinâmica do inevitável impasse gerado pelo conflito entre uma consciência social compadecida pela miséria de que não partilha e um mundo onde essa miséria parece ser a fundação necessária da riqueza, começa a ser criada neste poema não já pela simples polarização do sentimento nos significantes antinómicos “campo” e “cidade” – ou os seus equivalentes temporais “passado” e “presente” – mas pela dramatização, na situação de uma «persona» poética, de um processo entre os dois pólos. Com efeito, ao colocar a fuga visionária do narrador na área semântica de caracterização social definida pelo todo do poema, Cesário está a significar valores opostos aos da sua própria classe privilegiada, sugerindo uma reformulação socialmente amplificada do anterior contraste entre campo e cidade.



. A dicotomia cidade/campo e o mito de Anteu

            Quanto à dicotomia cidade/campo, esta fica bem explícita ao encararmos a vendedeira como a metonímia do próprio campo, invadindo assim com o seu pregão, a sua força, a sua vitalidade, o bairro citadino, apático, adormecido; chega mesmo a sensibilizar o sujeito poético que corresponde ao seu chamamento para a ajudar a prosseguir a sua tarefa (“Eu acerquei-me dela, sem desprezo”, est. 14, v. 1). A invasão da cidade pelo campo é ainda mais flagrante quando a própria giga da vendedeira – outra metonímia quando se lhe coloca o epíteto de “(...) retalho de horta aglomerada” (est. 4, v. 4) – toma vida na visão do poeta (est. 9-12) ao ponto de, no final, tomar a vendedeira como fazendo parte dessa super-realidade (ela é a causa e o efeito), uma vez que a comparação das “grossas pernas” com as “abóboras carneiras” nos transporta novamente para tal transfiguração (est. 20).
            O mito de Anteu (um gigante e portentoso lutador, era invencível desde que estivesse em contacto com a terra; aliás, nas lutas a sua energia era redobrada quando era atirado ao chão devido a esse contacto com o solo) perpassa no simbolismo dado a esta figura feminina e os produtos transfigurados – repare-se como é do próprio chão que o sujeito poético ajuda a vendedeira a recolocar a giga na cabeça (“Nós levantámos todo aquele peso / Que do chão de pedra resistia preso, / Com um enorme esforço muscular.”, est. 14, vv. 3-5) e deste acto lhe advêm “As forças, a alegria, a plenitude” (est. 15, v. 3), tal como Anteu se manteve indomável enquanto não tirou os pés da terra, já que desta emanava toda a sua força, o seu poderio. Por extensão a esta ideia, todos os produtos luxuriantes da giga são produtos da terra e, por tal, pujantes, robustos, vitalizadores – repare-se na antítese aquando da descrição da vendedeira (“Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas, largas.”, est. 19, vv. 4-5) ou, ainda, na comparação com os membros inferiores – aqueles que inerentemente à terra estão ligados: “(...) grossas pernas dum gigante”, “(...) Duas frugais abóboras carneiras.” (est. 20, vv. 1, 5).


. Marcas do Surrealismo: a transfiguração surrealista dos frutos e legumes num "corpo humano", uma transfiguração que foi tornada possível, esteticamente, pelo poder de uma «visão de artista».


. Marcas do Impressionismo:
. a presença da cor;
. a presença da luz;
. as formas;
. o uso da sinestesia;
. o uso da hipálage;
. a acumulação de pormenores;
. a impressão inicial que o objecto provoca no sujeito;
. as sensações;
. a noção de movimento [“Sobem padeiros (...)”].


. Marcas do estilo poético de Cesário:
-» emprego de um vocabulário pragmático, preciso, concreto e corrente (“Se ela se curva esguedelhada, feia...”);
-» utilização inusitada do adjectivo (“Atira um cobre lívido, oxidado”);
-» emprego da sinestesia (“Brancuras quentes”);
-» recurso a sensações:
- visuais: “matizam”;
- tácteis: “fere”;
- olfactivas: “Bóiam aromas, fumos de cozinha”;
“A hortelã que cheira”;
- auditivas: “Toca frenética...”;
- gustativas: “Como dalguém que tudo aquilo jante”.


. Síntese

. Duas realidades presentes no poema:
* a objectiva, construída através da descrição do bairro e das personagens que nele se movimentam (estrofes 1-6, 13-19);
* a subjectiva, patente na fuga imaginativa leva a cabo pela visão pessoal do sujeito que vagueia, deambula pelo bairro (estrofes 7-12 e 20).

. O poema explicita o carácter deambulatório (o sujeito descreve o que vê à medida que passeia pelo bairro), cinético e visual da poesia de Cesário:
* a focagem do plano geral (o bairro);
* a passagem para o plano particular (o episódio da hortaliceira).

. Características narrativas do poema:

. Tempo:   “dez horas da manhã” (1);
                   “ao calor de Agosto” (16).

. Espaço:   “larga rua macadamizada” enquadrada por casas apalaçadas com quartos estucados, paredes de papéis pintados, mesas com porcelanas, jardins com nascentes Þ bairro burguês (1, 2).

. Personagens:
- sujeito poético: frágil, doente, “Com as tonturas de uma apoplexia”;
- hortaliceira: mulher do povo, esguedelhada, magra, feia, doente, enfezadita (5, 16, 19).
     A mulher do povo, apresentada de uma forma realista, não sujeita a uma metamorfose poética, constitui uma inovação da poesia de Cesário. Esta mulher pobre, feia, “sem quadris”, esmagada pelo peso do cabaz, simboliza também as preocupações sociais presentes na poesia de Cesário, aspectos «revolucionários» para a época.

. Ação: o deambular do sujeito poético pelo bairro:
- o encontro com a hortaliceira e a fuga imaginativa a partir da giga (esta fuga imaginativa é uma micronarrativa encaixada na narrativa de 1.º grau);
- o retomar do passeio e a visão final.


Gente que não sabe estar: Eleições Europeias

domingo, 19 de maio de 2019

"Porque" ou "por que"?


     Desta vez é o jornal Expresso.

     Note-se, porém, que nada disto é importante; o novo ensino do século XXI quer é formar pessoas que saibam trabalhar em conjunto, cooperantes, flexíveis e mais não sei o quê. Isso de saber escrever, de dominar as normas básicas da língua são conceitos ultrapassados...

     Não obstante, se a pessoa que escreveu isto desejar, pode consultar este post [link] e corrigir a bacorada que produziu.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Um título ilegível


     Decorreram já várias semanas desde que detetei esta notícia e ainda não consegui compreender um título.

     Será que, se enviar uma mensagem de correio eletrónico para a redação do jornal, alguém me esclarecerá?

Superlativo absoluto sintético de "simpático"


     «Simpatiquíssimo» ou «simpaticíssimo»?

     Bom, a primeira forma surgiu por via popular, enquanto a segunda chegou até nós por via erudita, derivada do latim «simpathicu-».

Luzelos



sexta-feira, 26 de abril de 2019

Os mitos sobre o ensino na Finlândia

«Alguns colegas e alunos estiveram na Finlândia num daqueles programas de intercâmbio (também recebemos professores e alunos de outros países). Hoje estive a conversar com colegas sobre a experiência. Pelos vistos os nossos alunos só diziam, 'meus ricos professores' e vieram de lá mal impressionados. E porquê? Bem, as turmas têm nove alunos, o que é um pouco a menos... difícil criar uma dinâmica com tão poucos alunos.
Depois, os alunos estão espalhados em mesas, em silêncio, agarrados ao telemóvel. Estão no twitter, no instagram, recebem e enviam mensagens, estão com os pés em cima das mesas... não há uma dinâmica de turma, não há interacções... há um silêncio passivo.»

     O testemunho, bem diverso da versão paradisíaca com que costumamos ser confrontados, porde ser encontrado aqui [ip].

segunda-feira, 22 de abril de 2019

O cómico de situação na 'Farsa de Inês Pereira'

Cómico: os objetivos do cómico são provocar o riso, através do qual se castigam os vícios («ridendo castigat mores») e expor o contraste entre personagens e situações – exs.: Pêro Marques vs. Escudeiro; Lianor Vaz vs. Judeus casamenteiros.

Cómico de situação:

* Pêro Marques senta-se na cadeira ao contrário e de costas para a Mãe e Inês;

* a fala dos Judeus, que, na sua sofreguidão e calculismo materialista para casarem Inês com Brás da Mata, se interrompem, repetem e atropelam constantemente;

* o episódio final, em que Pêro Marques, descalço, transporta Inês e duas lousas às costas e, porque o caminho é longo e a viagem monótona, canta, a pedido de Inês, uma cantiga que o apelida de «marido cuco».


sexta-feira, 19 de abril de 2019

'Rimas' de Camões

         Rimas é a designação atribuída à obra lírica de Camões.
         Nela concluem três correntes líricas: a da poesia peninsular, constituída por vilancetes, cantigas, esparsas, endechas, cartas, trovas e outras composições extensas, todos eles em redondilha; a corrente italiana, concretizada em sonetos, canções, composições em oitava-rima e sextinas, todos poemas da medida nova ou decassílabos; a corrente greco-latina, composta por éclogas e elegias. Há ainda as sátiras e as cartas moldadas em metro tradicional.
         Em vida de camões, foram publicados apenas uma ode a apresentar Garcia de Orta em Colóquios dos Simples e Drogas (1563), o soneto “Vós, ninfas da gangética espessura”, a elegia “Depois que Magalhães teve tecida”, ambos dedicados a D. Leonis Pereira, insertos no livro de Magalhães Gândavo: História da Província de Santa Cruz (1576). Segundo o humanista Diogo de Couto, encontrou Camões em Moçambique “vivendo de amigos” e trabalhando em duas obras: Os Lusíadas e Parnaso, “livro de muita doutrina e filosofia” que lhe foi roubado. Este roubo deu lugar à incorporação de poesias em Rimas que certamente não lhe pertencem.
         A primeira edição de Rimas foi publicada em 1595 por F. Rodrigues Lobo Soropita.
         A lírica de Camões engloba dois estilos: o engenhoso, na esteira do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, presente na maioria das redondilhas e nalguns sonetos, que se caracteriza pela coisificação das palavras e das realidades sensíveis e manifesta subtiliza e imaginação; e o clássico, em que as palavras pretendem captar uma realidade externa ou interna, com existência independente das mesmas.
         A temática das Rimas é variada, mas pode estruturar-se em 3 grupos: o galanteio amoroso, mais ou menos circunstancial, os temas psicológicos quase sempre analisando a paixão amorosa e os temas filosóficos, como a desarmonia entre o Merecimento e o Destino, o direito à felicidade e a impossibilidade de a alcançar, a justiça aparente e a justiça transcendente.



Queima das Fitas - Coimbra 2019 - Cartaz


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Temas da poesia de Camões

Representação da amada

. Mulher inacessível, misteriosa, quase divina, de beleza inefável, a quem o sujeito poético presta vassalagem e adoração e que se relaciona com o amor espiritual (cf. ideal de beleza petrarquista).
Ex.: “Ondados fios de ouro reluzente”, “Um mover d’olhos brando e piadoso”
. Mulher terrena, por quem o sujeito poético se sente atraído e fascinado.
Ex.: “Aquela cativa”, “Minina dos olhos verdes”.



Experiência amorosa e reflexão sobre o amor

. Amor espiritualizado, sereno, racionalmente intelectualizado, de influência petrarquista.
Ex.: “Ondados fios de ouro reluzente”
. Amor experienciado, vivido.
Ex.: “Aquela cativa”, “Pastora da serra”
. Amor conturbado, dividido entre o anseio espiritual e o desejo, e marcado pela culpa, pela saudade e pela insatisfação.
Ex.: “Alma minha gentil, que te partiste”, “Tanto de meu estado me acho incerto”, “Amor é um fogo que arde sem se ver”.



Natureza

. Cenário associado ao locus amoenus clássico (paisagem idealizada, tranquila/serena e bucólica ou pastoril).
Ex.: “A fermosura desta fresca serra”, “Alegres campos, verdes arvoredos”.
. Personificação da natureza, encarada com confidente do sujeito poético.
Ex.: “Verdes são os campos”, “Alegres campos, verdes arvoredos”.




Desconcerto

. Desconcerto social:
- distribuição arbitrária dos prémios e castigos;
- sobreposição da cobiça e da vileza aos valores morais;
- necessidade de submissão à desordem / irracionalidade da vida.
Ex.: “Os bons vi sempre passar”, “Correm turvas as águas deste rio”, “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”.
. Desconcerto individual e subjetivo: sujeição à Fortuna (cf. Reflexão sobre a vida pessoal).



Mudança

. Oposição entre o tempo / a mudança da / na natureza e o tempo / mudança do / no ser humano: a mudança cíclica vs. a mudança irreversível.
Ex.: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
. Oposição entre o bem passado e o mal presente.
Ex.: “Sôbolos rios que vão”.



Reflexão sobre a vida pessoal

. Reflexão sobre a situação atual e sobre as causas que lhe deram origem (os “erros”, a “Fortuna” e o “amor ardente”).
Ex.: “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, “O dia em que eu nasci, moura e pereça”, “Eu cantei já, e agora vou chorando”.



quarta-feira, 17 de abril de 2019

Soneto

         O soneto é uma composição poética característica do chamado dolce stil nuovo, uma tendência que surge como reação à poesia trovadoresca na Itália.

         Em Portugal, foi divulgado por Sá de Miranda, após a sua viagem a Itália (1521-1526), e cultivado desde o século XVI até à atualidade.

         O soneto é um poema constituído por duas quadras e dois tercetos, em versos decassilábicos. O esquema rimático das quadras tende a ser fixo (abba), ao contrário do que acontece nos tercetos, em que a rima pode apresentar esquemas rimáticos variados (cdc dcd, ccd eed, cd cede, cde cde). Quando o último terceto apresenta a informação mais relevante do poema, diz-se que o soneto termina com chave de ouro.
         Pela sua constituição e disposição, o soneto favorece um discurso em tese e antítese, seguidas de conclusão e desfecho sentencioso.

         Para além deste tipo de soneto, conhecido por soneto italiano, existe igualmente o chamado soneto inglês, constituído por catorze versos divididos em três quadras e um dístico final.

         O poeta Vasco Graça Moura (1942-2014) compôs um soneto que tem como tema a própria noção de soneto, pondo em evidência algumas das suas características:
. o número total de versos;
. os versos decassilábicos;
. as quadras com esquema rimático abba;
. o modelo suscetível de inovação (vv. 5-8);
. o modelo com duas variedades possíveis: a inglesa (“isabelino”) e a italiana (“continental”);
. o último terceto com a função de chave de ouro,


soneto do soneto

catorze versos tem este soneto
de dez sílabas cada, na contagem
métrica portuguesa; de passagem,
o esquema abba dá esqueleto

aos versos do começo: a engrenagem
podia ser abab, mas meto
aqui baab: destarte, preto
no branco, instabilizo a sua imagem.

teria, isabelino, uma terceira
quadra cddc e ee final,
em vez de dois tercetos, com quilate

sempre de ouro no fim. de tal maneira
porém o engendrei continental,
que em duplo cde tem seu remate.

Vasco Graça Moura, Poesia 2001/2005


Obra de António Ferreira

         Dos escritores renascentistas, apenas António Ferreira se pode considerar como representante íntegro do espírito classicista e humanista que conviveu com a tradição literária renascentista e com a Contra-Reforma; fez parte dos «Zagais da Estremadura» e como tal se relaciona com Sá de Miranda e com todos os seus seguidores, que pugnavam a favor do gosto renascentista; pelos destinatários das suas obras sabemos que conviveu com a elite governante, administrativa, social e literária do seu tempo. As Odes e Cartas dirigem-se a personalidades como Pêro de Andrade Caminha, Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Francisco de Sá e Meneses, Duque de Aveiro, Padre Luís Gonçalves da Câmara (mestre de D. Sebastião), D. Francisco Coutinho, D. Constantino de Bragança, cardeal D. Henrique, rei D. Sebastião, Diogo de Teive, etc.
         Dois importantes factos distinguem António Ferreira dos outros autores clássicos renascentistas: nunca escreveu em castelhano e usou sempre a medida nova. De facto, o autor utilizou sempre a língua portuguesa em prosa e verso. Na sua Carta a Pêro de Andrade Caminha, censura-o por ter utilizado a língua castelhana e, em simultâneo, estimula-o a escrever em português, enriquecendo a nossa língua, como fizeram os Gregos, os Latinos, os Espanhóis e os Italianos, que sempre escreveram nas suas próprias línguas e não nas dos outros.


1. Poesia

         A obra de António Ferreira, que inclui sonetos, epigramas, odes, elegias, éclogas, epitalâmios, cartas, epitáfios, um poema religioso (História de Santa Comba dos Vales), foi compilada pelo autor num volume editado pelo seu filho mais velho, Miguel Leite Ferreira, em 1598, intitulado Poemas Lusitanos. Seguiram-se-lhe outras edições, nomeadamente em 1771 e 1829.
         No aspeto de estrutura formal, António Ferreira aperfeiçoou a carta e a elegia, e foi o introdutor em Portugal do epigrama, da ode e do epitalâmio. Todas estas formas são elaboradas sobre modelos italianos, latinos e gregos: à expressão em novas formas corresponde fatalmente a expressão de novas ideias, sentimentos e temas.

         Destas composições, umas estão recheadas de lugares comuns petrarquistas e renascentistas, outras assumem certa importância e inovação na época, como as odes e as cartas. O facto de se falar em lugares-comuns não assume aqui a conotação negativa vulgar de mera repetição da tradição literária: provenientes em geral de autores (autoridade) greco-latinos (auctoresauctoritas), os lugares comuns sentem-se viva e diferentemente na Idade Média, Renascimento e Barroco, segundo a idiossincrasia epocal. Referem-se a áreas semânticas múltiplas: natureza, sentimentos humanos, vida, etc.
         De facto, o interesse das composições líricas é desigual. Por exemplo, os sonetos, por vezes harmoniosos, repisam os lugares-comuns do petrarquismo, mas só há vibração nos referentes à morte da primeira esposa. As éclogas, geralmente de cunho virgiliano ou sannazzariano, e as elegias revestem-se também de pouco interesse. No entanto, nas odes horacianas, de que terá sido o primeiro cultor português, e sobretudo nas cartas, António Ferreira mostra toda a sua excelência enquanto escritor, podendo considerar-se o mais completo teorizador português quinhentista, em vernáculo, dos padrões e valores humanísticos, sobre aqueles relacionados com a arte literária.

         Nas suas cartas e odes perpassam, referenciadas ou como destinatárias de dedicatórias, personalidades múltiplas de relevo histórico, desde poetas como Pêro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Sá de Miranda, Francisco de Sá de Meneses, Jerónimo Corte Real, Diogo de Teive, a figuras de importância político-social como Alcáçova Carneiro, secretário de Estado de D. João III, filho do Duque de Aveiro (D. João de Lencastre), príncipe D. João (filho de D. João III), D. João III, D. Sebastião, D. Duarte (filho do Infante D. Duarte), Cardeal D. Henrique, Reis Cristãos (Carlos V, Francisco I), Marquês de Torres Novas (D. Jorge), Afonso de Albuquerque (filho do governador da Índia do mesmo nome), D. Constantino de Bragança (governador da Índia), Conde de Redondo (D. Francisco Coutinho, regedor da Casa da Suplicação), Luís da Câmara (mestre de D. Sebastião), e muitos outros. Temos assim uma rede polarizada de personalidades a quem António Ferreira expõe os seus sentimentos e atitudes perante as questões mais diversas. A todos prodigaliza conselhos e encorajamentos, que encobrem por vezes uma crítica discreta, pois entendia o escritor exercer desta maneira uma certa autoridade espiritual que reivindica para os poetas e os doutos em Humanidades. Diversos poemas são dedicados a D. Maria Pimentel, sua primeira mulher.
         Por outro lado, do conjunto das cartas e odes desprende-se uma atitude horaciana mais ou menos harmonizada com uma sabedoria cristã. António Ferreira adota uma postura de impassível superioridade perante as opiniões irracionais do «vulgo» (odi profanum vulgus) e perante a vacuidade dos bens por que se bate a maioria dos homens. Para ele, o «vulgo» ou «povo» é um conceito basicamente moral e não social: “Eu chamo povo onde há baixos intentos;”. Pelo contrário, considera sábio quem, guiando-se pelo próprio juízo, pode desprezar o que lhe é exterior:
“Ditoso aquele que em si só encerra
e, estimando o tesouro que em si tem,
pisa soberbamente toda a terra.”
         A razão humana, educada nas letras clássicas, feita de ponderação, buscando uma felicidade terrestre ao abrigo de paixões e ilusões, e que é a mais alta forma de autodomínio, é o único guia em que Ferreira confia. Em seu nome, condena todas as manifestações de impulsividade, incluindo o espírito de aventura e a brutalidade guerreira. Como se relaciona então com a ideologia expansionista da época, praticamente unânime em Portugal? Não obstante o elogio dirigido a heróis militares, o escritor insiste na superioridade da razão sobre a coragem física e, com alguma regularidade, censura ou lamenta aqueles que trocam a quietude da meditação e do estudo pelos riscos do mar e da guerra, levados pela ambição da riqueza, na esteira do que já fizera Sá de Miranda.

         No campo das ideias políticas e sociais, em carta dirigida a D. Sebastião, António Ferreira expõe, de forma inequívoca, a doutrina do contrato social (provavelmente herdada de Aristóteles) e nega o poder monárquico absoluto:
“absoluto poder não há na terra
que antes será injustiça e crueldade”
e afirma a condição humana dos reis:
“iguais somos, Senhor, na natureza:
assim entramos na vida, assim saímos.”
Além disso, contrapõe à nobreza do sangue a aristocracia do saber, lamentando que lhe não sejam reconhecidas no seu tempo as prerrogativas a que se sente com direito:
“Aquela proveitosa liberdade
aos antigos Poetas concedida […]
porque entre nós será mal recebida?”

         Parte da sua obra, nomeadamente as epístolas dirigidas aos confrades em letras, consagra-se a problemas do ofício de escrito, sobretudo à defesa e ilustração da língua portuguesa. Como já foi referido, o escritor quinhentista interessou-se a fundo pelo nosso idioma, inclusivamente na sua forma medieval, de que fez duas imitações felizes a propósito do texto do Amadis. Reagiu contra o emprego da língua castelhana por parte dos poetas seus contemporâneos e foi um dos poucos portugueses do século XVI que não escreveram em castelhano um só verso. Pelo contrário, por exemplo, Gil Vicente ou Camões mesclaram com alguma frequência as duas línguas. Terá sido este amor à língua portuguesa que o levou a designar a sua coletânea de Poemas Lusitanos:
“Eu desta glória só fico contente:
que a minha terra amei, e a minha gente.”

         Além disso, António Ferreira foi um notável doutrinário, o mais importante teorizador do Classicismo, tendo como fonte principal o poeta latino Horácio, nomeadamente a sua Epístola aos Pisões (também conhecida por Arte Poética). Alguns dos traços desse magistério são os seguintes:

a) a primazia do estudo e do trabalho sobre a inspiração, isto é, a poesia não pode ser só inspiração, deve ser fruto de trabalho e estudo apurado e prolongado sobre o texto:
“doutrina, arte, trabalho, tempo e lima
fizeram aqueles nomes tão famosos
por quem a Antiguidade se honra e estima.”

b) a necessidade do conhecimento aprofundado e de uma imitação dos antigos que afinal consiste na apropriação nacional do património literário das línguas clássicas:
“Do bom escrever, saber primeiro é fonte.”

c) a necessidade da crítica e da autocrítica, de «tempo e de lima»: o poeta deve desconfiar de si próprio e fazer discutir pelos entendidos as suas composições;

d) o sentido da justa proporção:
“há nas cousas um fim, há tal medida,
que quanto passa ou falta dela é vício.”

e) a proscrição de toda a herança peninsular medieval, conservando apenas, como mal inevitável, a rima, que restringe a liberdade dos versos «e com som leve o juízo engana», enquanto se não encontrar outro sistema rítmico mais próximo do verso latino – de facto, Ferreira considera desejável que se fizesse uso do verso branco;

f) a necessidade de tomar a Razão como único guia

         No conjunto da sua obra lírica, há a destacar ainda as exortações que dirigiu a vários confrades no sentido de produzirem uma epopeia nacional (ideia já expressa por Garcia de Resende no Prólogo do Cancioneiro Geral), não tanto um texto que fosse a afirmação dos valores guerreiros e cruzadistas nacionais, mas um monumento de cultura e sobretudo da língua. Coube a Camões seguir o repto e produzir Os Lusíadas.


2. Teatro

         A seguir…

Bibliografia:


Vida de António Ferreira

         Nasceu em 1528, em Lisboa, filho de Martim Ferreira e de Mexia Fróis Varela. O pai era escrivão de fazenda de D. Jorge de Lencastre, Duque de Coimbra.
         Na sua educação conviveu com os filhos de D. Jorge de Lencastre e com pessoas de grande relevância nobiliárquica, administrativa e literária. Frequentou em Coimbra o curso de Humanidades e Leis e doutorou-se em Cânones. Foi temporariamente professor nesta Universidade.
         A frequência da Universidade deu-se na época áurea do Humanismo Bordalês, em que pontificaram os Gouveia (André, Marcial, Diogo Júlio), Diogo de Teive, João da Costa, António Mendes, Jorge Buchanan, Arnaldo Fabrício, Guilherme de Guérente, Nicolau Grouchy, Elias Vinet.
         Parece ter-se enamorado em Coimbra por uma senhora de família nobre de apelido Serra, que evocará veladamente em algumas poesias. Em 1557 casou com D. Maria Pimentel, senhora de Torres Novas, que morreu no terceiro ano de casamento, que primeiro cantou e depois chorou muito sentidamente: «Com que mágoa (ó Amor) com que tristeza / Viste cerrar aqueles tão fermosos / Olhos, onde vivias, poderosos / De abrandar com sua vista a mor dureza!».
         Voltou a casar em 1564, com D. Maria Leite, de Cabeceiras de Basto, de quem teve dois filhos. Também ela foi evocada nos seus textos.
         Em 1567 foi nomeado Desembargador da Relação de Lisboa. Em 1569, apenas com 41 anos, morre em Lisboa vitimado pela peste, deixando dois filhos, um dos quais (Miguel Leite Ferreira) lhe publicará, em 1598, a obra em Poemas Lusitanos.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Análise do soneto "Está o lascivo e doce passarinho"

"Já não dá para abastecer"


     A greve de motoristas de materiais perigosos está a originar a escassez de combustíveis um pouco por todo o país.

     A plataforma VOST Portugal criou o sítio janaodaparaabastecer.vost.pt, onde as pessoas podem pesquisar, por posto de combustível, quais os que estão encerrados e quais os combustíveis que já esgotaram nos outros que ainda não encerraram.


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