Piedade
é uma mulher modelar, no contexto dos padrões do patriarcalismo, de trinta
anos. Fisicamente, possui uma boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes
de um castanho fulvo, dentes pouco brancos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia
e fisionomia aberta. Psicologicamente, é subserviente, diligente, sadia, forte,
obediente, honesta, correta, fiel, sem qualquer vaidade, vive para o marido e
em função dele, dando-se bem com tudo e com todos e trabalhando de sol a sol. O
seu perfil é o oposto do de Rita Baiana e de outras mulheres fortes e decididas
que vivem no cortiço. Nostálgica, ela conserva os hábitos e a rotina da terra
natal, não se deixa contaminar pelo meio, mantém as suas tradições e a esperança
de crescer ao lado do marido. No entanto, acaba por ser vencida pela força do
meio e, quando o marido se envolve com Rita, tenta fintar a dor da perda, as
más influências, a briga com Rita Baiana e a miséria. Assim, acaba por se
entregar à bebida e tornar-se alcoólica ao ser abandonada pelo esposo: “[...],
Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu
abandono e ia também agora se transformando de dia [...]. Deu para desleixar-se
no serviço [...] fez-se madraça e moleirona. [...] aconselharam-Ihe que tomasse
um trago de parati. Ela aceitou o conselho [...]; e, gole a gole, habituara-se
a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os
pesares.” (op. cit., 2004, pp. 191-192).
De
facto, tal como o consorte, a esposa de Jerónimo também sofre uma transformação
ao longo do romance de Aluísio de Azevedo. Ela luta contra a influência do
cortiço e, inicialmente, consegue vencer essa luta: mantém-se afastada dos
vícios e prazeres mundanos. Claramente, contrasta com a personagem Rita Baiana,
uma nativa brasileira. Envolvem-se numa disputa pelo mesmo homem – Jerónimo –,
mas diferenciam-se pela cor, pelo cheiro, pelos hábitos de vida e também pela
linguagem. No fundo, os três constituem um triângulo amoroso que gera conflitos
e desemboca numa morte: a de Firmo, às mãos de Jerónimo, que depois foge com
Rita. Abandonada pelo marido, Piedade enfrenta grandes dificuldades financeiras
e, com isso, a sua filha, Senhorinha, é adotada por Pombinha, o que constitui
um paralelismo com o que sucedera com Leonie no passado. Está escancarado o
caminho da prostituição para Senhorinha, enquanto à sua mãe resta apenas a
perda do marido e os lamentos motivados pelos infortúnios da vida, como se
pedisse piedade a Deus, o que é acentuado pelo seu apelido. Quando o esposo a
abandona, revolta-se contra a natureza que causou aquela mudança em jerónimo: “[...]
não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz
alucinadora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens
e metia-lhes no corpo luxúrias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela
natureza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para dá-lo a outra, porque a
outra era gente do seu peito e ela não.” (op. cit., 2004, p. 173)
Fiel ao
seu homem e aos seus princípios, ela tinha absoluta certeza de que ele fora
seduzido pela vulgaridade de Rita. Para ela, o marido era apenas uma vítima.
Jerónimo envolvera-se com a mulata que simboliza o Brasil. Ele "cedeu à
atração da terra, dissolveu-se nela e com isso perdeu a possibilidade de dominá-la".
Segundo CANDIDO, ao "agir como brasileiro redunda para o imigrante em ser
como brasileiro" (2004, p. 119), e, à medida que se entrega ao amor de
Rita, o lusitano vai sendo absorvido pela terra, até mudar completamente a sua
personalidade. Todas as metáforas usadas para descrever a mulata dão ideia de
dominação do elemento brasileiro sobre o português. É a mulher brasileira que
enfeitiça e mantém sob seu domínio o português, antigo colonizador.