Os
naturalistas acreditavam que o indivíduo era mero produto da hereditariedade e do
meio em que vivia e sobre o qual agia. É o que sucede, no caso da literatura
realista produzida em Portugal durante o século XIX, em Os Maias. De
facto, Eça de Queirós aborda a questão através das personagens Pedro da Maia e
Eusebiozinho, cuja fraqueza, defeitos e comportamentos são justificados pelos
traços hereditários, pela educação que tiveram e pelo meio em que cresceram.
Voltando a O Cortiço, Jerónimo é a figura que cumpre as leis naturais do
meio e da raça, uma personagem que passa por transformações ao longo da
narrativa. Jerónimo era um português forte, trabalhador e honesto, que chegou
ao Brasil com o objetivo de ascender socialmente, trazendo consigo uma filhinha
e a sua mulher, Piedade. Começa por trabalhar numa fazenda onde "tinha que
sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio
degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações nem futuro, trabalhando
eternamente para outro" (AZEVEDO, 2004, p. 56). Insatisfeito, resolve
abandonar tal atividade e ruma para a Corte onde, conforme os patrícios, o
homem determinado consegue obter uma boa disposição. Chega ao cortiço com o intuito
de enriquecer. Vive para a mulher e vice-versa. O V capítulo narra a mudança de
Jerónimo e da família e a reação da comunidade, nomeadamente os comentários e os
cochichos das lavadeiras. Após alguns meses, o casal acaba por conquistar a
total confiança dos habitantes do cortiço, por ser sincero, de caráter sério e
respeitável. Leva uma vida simples e a sua filha estuda num internato: Aos
domingos, vão às vezes à missa ou, à tarde, ao passeio público, ocasiões em que
o homem veste uma camisa engomada, calça sapatos e enfia um paletó, enquanto a
esposa enverga o seu vestido de ver a Deus.
Todo o
capítulo faz referência às virtudes de Jerónimo. É comparado a um Hércules,
tipo clássico-mitológico, robusto, que tinha bastante força e realizara grandes
feitos. O português é racional, possui valores morais, está ligado a tradições
lusitanas, à família e ao trabalho. Trabalha duro na pedreira de João Romão e distingue-se
entre os outros operários, de modo que "o patrão o converteu numa espécie
de contramestre" (op. cit., 2004, p. 56). Possui "a força de
touro". Jerónimo é, pois, um homem honrado, comedido e mantém um
comportamento saudosista de imigrante português, procurando ser fiel às
origens, o que se revela no hábito de se sentar à porta, dedilhando os fados da
terra natal. "Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria,
com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das
zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância" (op.
cit., 2004, p. 59). Porém, Jerónimo começa a sofrer a influência do ambiente
sensual e desregrado que caracteriza o cortiço. Tudo começou quando, depois de
passar uma temporada com Firmo, seu namorado, Rita Baiana, uma sedutora mulata
brasileira (raça e meio) retorna ao cortiço. Esse regresso é marcado por uma
festa, na qual Rita acaba por despertar a paixão do português quando entra na
roda para dançar: De facto, ela penetrou na roda, com os braços na cintura,
rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a
direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a deixava
ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a
tremer toda, como se se fosse afundando num prazer enorme, em que não se toma pé
e nunca se encontra fundo. Jerónimo encanta-se com a dança de Rita, o que
provoca os ciúmes de Firmo. "É o fado português de Jerónimo se batendo
contra o choro brasileiro do capoeirista Firmo". (MARQUES Jr., 2000, p.
239). Hábil na capoeira, Firmo abre a barriga do rival com uma navalha, fugindo
logo depois. O português vai parar ao hospital e, quando sai, chama os amigos e,
todos juntos, vão à "praia da Saudade", onde matam o outro a
pauladas.
Rita simboliza
o Brasil de campos escaldantes que penetrou na alma de Jerónimo, oriundo de
Portugal, um pais de terras frias. O português é um homem de moral rígida,
contudo acaba por perder a sua antiga fibra ao entregar-se uma vida
indisciplinada. O sol, a natureza, a sensibilidade e o calor da mulata
modificaram o seu modo de viver. António Cândido, em O discurso e a cidade,
explica que o abrasileiramento de Jerónimo é regido quase ritualmente pela
baiana, que o envolve em lendas e cantigas do Norte, lhe dá pratos apimentados
e o corpo "lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas aromáticas".
Este abrasileiramento é expressivamente marcado pela perda do "espírito da
economia e da ordem", da "esperança de enriquecer". A sua paixão
violenta é apresentada por Aluísio de Azevedo como consequência das
"imposições mesológicas", sendo Rita "o fruto dourado e acre
destes sertões americanos". No que diz respeito a esta questão, existe n’ 0
Cortiço um pouco de Iracema coada pelo Naturalismo, com a índia =
virgem dos lábios de mel + licor da jurema, transposta aqui para a baiana =
corpo cheiroso + filtros capitosos, que derrubam um novo Martim Soares Moreno
finalmente desdobrado, cuja parte arrivista e conquistadora é João Romão, mas cuja
parte romântica é fascinada pela terra e Jerónimo. Iracema e Rita são
igualmente a Terra. Lá, com filtro da jurema, aqui, com o do café, que possui
um sentido afrodisíaco e simbólico de beberagem através da qual penetram no
português as seduções do meio: "[...] a chávena fumegante da perfumosa
bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores". (CANDIDO, 2004, pp. 120-121). A atração do português pela mulata é causada pela tropicalidade, a
natureza brasileira que foi fundamental para a sua mudança. Mas não é só a
natureza que justifica a transformação. De facto, as diferenças raciais também
têm um peso considerável, pois a sensual Rita é mulata. Ela representa a raça
desagregadora. "No Brasil, quero dizer: n' O Cortiço, o mestiço é
capitoso, sensual, irrequieto, fermento de dissolução que justifica todas as
transgressões e constitui em face do europeu um perigo e uma tentação"
(op. cit., 2004, p. 118). Rita e Jerónimo atraem-se impulsionados pelo
determinismo do meio e do sangue (raça). O desejo pela mulata constitui um dos
fatores da queda do lusitano, que "abrasileirou-se", como afirma o
narrador. O erotismo de Jerónimo demonstra que ele cedeu aos instintos e se nivelou
aos nativos brasileiros. Este seu erotismo atraiu o brasileiro, no caso,
representado pela mulata Rita, porque o português pertencia a uma "raça
superior", a branca. O narrador evidenciou traços de Jerónimo que este
mesmo desconhecia, como, por exemplo, na descrição do início dos sentimentos
que o português nutre pela brasileira ao vê-la dançar. "Isto era o que Jerónimo
sentia, mas o que o tonto não podia conceber [...] só lhe ficou no espírito o
entorpecimento de uma desconhecida embriaguez [...]" (AZEVEDO, 2004, p. 78). Enquanto seguidor de teorias científicas, o narrador pode saber o que
influencia uma personagem; mas, como razão da experiência, essa personagem não
tem ciência do que lhe vai acontecer. No início da narrativa, Jerónimo era
bastante equilibrado, mas aos poucos sofre uma grande transformação, pois,
influenciado pelo novo meio geográfico (Brasil) e social (a comunidade) em que
se integra, chega ao ponto de perder a razão e a sensatez que haviam
impressionado os moradores do cortiço. Assim sendo, essa mudança é fruto de um
"abrasileiramento" da personagem.