Português: O percurso existencial das personagens femininas do O cortiço

domingo, 12 de janeiro de 2025

O percurso existencial das personagens femininas do O cortiço

    No universo sócio-histórico do Brasil no final do século XIX, o que existia era uma sociedade em grande transformação, na qual a formação da identidade nacional ainda estava sendo alicerçada. Tratava-se de uma sociedade carregada de preconceitos. A literatura de então vem absorver e interpretar esse momento histórico, em obras como O cortiço, de Aluisio Azevedo. Como nos explica Antonio Cândido, “Talvez não haja equilíbrio social sem literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente (...). Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, políticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e a atuação deles.” (Apud CRUZ, 2008 p. 52 – 53).
    Como vimos no capítulo anterior Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza são mulheres que vivem nesse quadro sócio-histórico brasileiro, na criação ficcional de Aluísio Azevedo. Resta-nos, agora, ver como cada uma delas vivencia de modo particular essa realidade sócio-histórica.
    Explorando a identidade da “raça” brasileira, Aluísio Azevedo criou a personagem Rita Baiana com grande lirismo sensual, dentro da técnica naturalista de ressaltar os atributos físicos das personagens. Por isso, como representante da mulher brasileira, ela é mestiça, dengosa, maliciosa, generosa, usa da sua dança criativa, alegre e sensual para seduzir e aprisionar os seus amores. O seu percurso amoroso, no enredo do O cortiço, surpreende pelo traçado de grandes conquistas perigosas e traiçoeiras.
    Rita Baiana provoca aquele patriarcado social vigente no Brasil do século XIX, e faz isso por meio de seu comportamento fora dos padrões convencionais estabelecidos para o comportamento feminino. Rita baiana rompe com muitas regras sociais de tutela masculina sobre as mulheres. Ela não se casa oficialmente, não opta nunca pelo matrimônio, mas conquista e aprisiona os seus amores. É solteira por escolha e opção, e sabe como viver suas paixões avassaladoras. Assume explicitamente o papel de mulher livre, que se sustenta sozinha, e nunca fica à mercê de homem algum. Ela não mistura suas paixões com suas contas a pagar, pois se auto-sustenta com a lavagem de roupas, mora sozinha e paga o seu próprio aluguel. Não faz economia, tampouco algo como uma poupança financeira, pois trabalha, tão somente, na medida exata do seu consumo, nada mais além. No mais, vive apenas para desfrutar de suas paixões desenfreadas. Não por acaso, ficou satisfeita com o assassinato do seu amante mestiço, Firmo, planejado e concretizado pelo seu novo amor branco, o português Jerônimo, com quem passou a viver uma paixão tórrida e egocêntrica.
    Não menos avassaladora foi a paixão vivida entre a prostituta Léonie e sua doce afilhada Pombinha. Da somatória de menina doce, ingenuidade e atitudes prestativas à gente pobre e analfabeta do cortiço, com a adolescente letrada, Aluísio Azevedo criou Pombinha como uma personagem emancipada face ao sistema patriarcal e patronal da sociedade brasileira da época. Pombinha, depois de casada, optou por desfazer o seu casamento com seu marido Costa. Essa ruptura deu-se quando ela descobriu a superioridade da mulher frente à submissão egoísta de gestos pequenos do sexo masculino, e isso dentro de um casamento padronizado. Podemos dizer que Pombinha descobriu depois de casada aquilo que Rita Baiana sempre soube: o casamento costuma ser uma opressão para a mulher. Contudo, enquanto Rita Baiana sempre teve uma vida livre, a liberdade de Pombinha, obtida após a ruptura com um casamento marcado por uma vida medíocre, foi a prostituição. Rita Baiana nunca foi prostituta.
    Podemos também pensar que Pombinha se “diplomou” com Léonie, sua “madrinha protetora”, ou seja, ela se especializou como sócia majoritária de Léonie no empreendimento altamente profissional da prostituição. Nas horas vagas, ambas dividem a mesma cama entre si. Como vimos, Pombinha rompe com o domínio masculino, mas isso no que tange ao casamento convencional e padronizado, pois a sua escolha pela prostituição é uma forma de ascensão social que também dependem do mundo masculino. Ela explora, principalmente, os capitalistas e os barões do café, que pagam altas somas em dinheiro para ter as duas prostitutas, Pombinha e Léonie, as mais competentes do Rio de Janeiro.
    Diferente não só de Rita Baiana, mas também de Pombinha e Léonie, encontramos Estela. Ela ainda é aprisionada dentro de um casamento arranjando, uma união interesseira que vive de aparências. Estela não é feliz com Miranda, seu marido parasita, mas não abre mão de sair desse casamento. Ela precisa da figura masculina ao seu “lado”, especialmente do ponto de vista da valorização social, para se auto-afirmar. Ou seja: diferentemente de Rita Baiana e Pombinha, Estela é uma mulher que opta pelo casamento, e que vê nele a única forma de uma vida confortável do ponto de vista material e respeitável do ponto de vista social. Ela não consegue romper abertamente com os padrões sociais do sistema patriarcal, tal como Rita Baiana e Léonie. Porém, Estela também surpreende, pois impõe ao marido o pior castigo que um homem pode viver dentro de uma sociedade patriarcal: ele é traído constantemente pela fogosa e matreira esposa. Estela vive os seus amores bem “escondidos”, tão “escondidos” que não escapa de ser descoberta por um observador mais atento e, principalmente, pelo próprio marido. O que equivale a dizer que Estela consegue, a seu modo, desrespeitar o padrão convencional estabelecido para a mulher dentro do matrimônio. Vimos que Zulmira, a filha de Miranda e Estela, é fruto dessa inconstância amorosa. Estela não gosta da filha por supô-la filha do marido. Miranda não gosta da filha por não ter certeza que é seu pai.
    Miranda casou-se com Estela, por causa do seu dote, e não tem independência financeira para viver bem sem esse dote, por isso Estela tem o marido em suas mãos. Ela é a senhora e dona do seu relacionamento matrimonial com Miranda.
    Bertoleza, como Estela, também está aprisionada dentro de um falso casamento, porém em situação bem pior que Estela. O casamento de Bertoleza é uma amigação de vários anos com João Romão. Se Estela é dona e senhora do seu casamento, Bertoleza é uma verdadeira caixa registradora de armazenar dinheiro para João Romão, com o fruto do seu árduo trabalho.
    Por outro lado, tanto Bertoleza quanto Rita Baiana se deixam empolgar pelo homem branco europeu. Ambas avaliam que o homem branco é um ser superior ao negro, ao mestiço. Mas, ironicamente, é essa suposta “superioridade branca” que leva Bertoleza à ruína financeira, afetiva, moral e social, que a transforma em um burro de carga para o seu querido “Seu João”. Enquanto ele ascende social e financeiramente com o dinheiro do trabalho de Bertoleza, ela decai até a morte, provocada por João Romão, quando, num ato de extremo desespero e dor, por ter sido entregue a seu antigo dono, pelo seu homem branco, Bertoleza comete o suicídio.
    Entretanto, Bertoleza sempre foi fiel em tudo ao seu homem. Ela nunca o traiu, diferentemente de Estela. Tinha grande orgulho dele e sentia prazer em estar ao seu lado. Mas ele João Romão era casado não com ela, e sim com o dinheiro que vinha do trabalho dela. O envolvimento dele com ela representa bem a combinação determinista do homem branco que se aproxima da mulher negra com objetivo exploratório. Bertoleza, dentro da representação literária naturalista, torna-se uma figura grotesca e animalesca; é ferida em sua feminilidade em função de um embrutecimento que a torna um ser inferior. Na sua dignidade ela também é aviltada em função da mentalidade escravocrata. Ela adoece na alma, mas não consegue viver sem aquela figura masculina, representada pelo branco europeu. Segundo Alfredo Bosi, (2003) “o naturalista julga interessante o patológico, porque prova a dependência do homem em relação à fatalidade das leis naturais”. (p. 172).
    Como vimos, Rita Baiana também trocou Firmo, seu amor mestiço, por Jerônimo, um branco europeu. Mas, diferentemente de Bertoleza, Rita Baiana não só conquista Jerônimo, como o deixa de “queixo caído” por ela, graças a sua sensualidade venenosa de “mulher serpente”. Ou seja: Rita Baiana nunca é inferior a Jerônimo, da forma como Bertoleza é sempre inferior a João Romão. Isso estabelece uma grande diferença entre essas duas mulheres negras, bem como entre o tipo de relação que elas mantêm com os homens brancos, considerados racialmente superiores. Rita Baiana, por meio da sedução, é a dona do seu relacionamento amoroso com Jerônimo, tanto que ele cometeu loucuras por ela: matou Firmo, o amante mestiço indesejável de Rita, e largou sua mulher e filha a própria sorte. Enquanto Bertoleza é seduzida por João Romão por que ele vê nela apenas uma força de trabalho. Ela não tem nenhuma influência amorosa sobre ele. Por fim, é claramente visível que, ao final, Rita Baiana é quem destrói Jerônimo moralmente, mas Bertoleza é totalmente destruída por João Romão, que a leva ao suicídio.
    Mas a personagem Bertoleza também é figura com traços de caráter surpreendentes. Aliás, talvez mais até do que todas as outras quatro personagens objeto do nosso estudo: Rita Baiana, Pombinha, Léonie e Estela. Bertoleza surpreende pela sua condição humilde e de escrava humilhada. Apesar de ser analfabeta, ela mesmo assim consegue fazer contas e dirigir com eficiência sua quitanda, de forma a saldar todas as suas contas em dia, e ainda pagar mensalmente uma quantia em dinheiro ao seu dono. Ela consegue poupar para comprar sua carta de alforria, e isso tudo dentro da legalidade da lei. Trabalhava honestamente na sua quitanda, que era bem administrada, pois tinha uma grande freguesia. Bertoleza não sabia, mas era detentora de um alto e refinado talento: ela possuía espírito empreendedor. Portanto, apesar da figura grotesca e animalesca com que aparece no romance, o narrador também aponta em Bertoleza virtudes intelectuais e morais, que existem em seu caráter, ainda que em caráter embrionário. O problema é que tais virtudes, atuantes em Bertoleza quando ela ainda era solteira, quando não vivia sob a tutela do casamento com João Romão, foram totalmente anuladas pelo convívio com o marido. João Romão, e o casamento, foram a desgraça de Bertoleza. A pressão determinista, motivada por preconceito racial e pela mentalidade escravocrata do Brasil de então, encaminhou Bertoleza para João Romão, um homem inferior a ela, mas que era branco. Bertoleza não precisava de João Romão em sua vida. Ele, na verdade, desvirtuou Bertoleza, a qual, de honesta que era, passou até a roubar material de construção da vizinhança, para as obras do cortiço do marido.
    Rita Baiana também sofre a pressão determinista racial, tanto que ela desprezou Firmo, o amante mestiço, por preferir Jerônimo, o europeu branco. Estela, por exigência da sociedade burguesa, permanece junto de Miranda, seu odiado marido.
    Por outro lado, como vimos, o Naturalismo cru de O cortiço não deixa de lado uma escrita marcada pelo lirismo, presente, sobretudo, na caracterização das personagens Rita Baiana e Pombinha, e encontrado no discurso descritivo do narrador quando mostras as danças, vestimentas e conquistas sensuais de Rita Baiana, bem como na cena do mênstruo de Pombinha, que, deitada ao chão, recebe a visita do astro rei enamorado daquela menina-mulher. Acerca desse lirismo no naturalismo, Araripe Junior esclarece: “Assim, os naturalistas brasileiros seriam diferentes dos europeus, por força do clima aqui dominante; isso eliminaria do naturalismo ortodoxo as suas arestas, possibilitaria a sua adaptação ao nosso caso. E assim ocorreria, em realidade, porque os nossos naturalistas, e Aluísio Azevedo principalmente, desobedeciam de forma espontânea a fórmula ortodoxa e externa, oferecendo obras de mérito.” (Apud, CRUZ, 2008, p.39).
    Em suma, podemos dizer que a mais auto-suficiente das cinco personagens femininas aqui estudadas é Pombinha. Isso decorre do fato de ela ser escolarizada. Por saber ler e escrever, ganhou entendimento da vida ao escrever e ler cartas para a gente do cortiço. Somou o seu letramento com a vivência dos dramas humanos descritos nas cartas, e pôde compreender melhor a alma humana. Desta forma, ela rompe com o provincianismo do seu casamento, vai de encontro ao mundo masculino, toma o seu destino em suas mãos, e parte à procura de uma vida com perspectivas mais amplas, dentro que é possível na sociedade da época. No caso dela, essa tentativa de uma existência mais livre desemboca na prostituição. Ou seja: para ela se tornar cosmopolita, a força do determinismo do meio e do momento, prepara-lhe a cilada da prostituição. Pombinha, como prostituta, passa da condição de menina e adolescente pobre, oprimida pelo meio, para a condição de exploradora dos barões do café, juntamente com Léonie. Elas vendiam caro seus copos àqueles honrados e “bem casados” cidadãos.
    Por fim, podemos afirmar que as cinco personagens deste estudo, Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza, revelam traços de personalidade surpreendentes, que vão se tornando visíveis ao longo da narrativa de O cortiço. O percurso amoroso de cada uma é singular, dentro de um enredo, caracterizado de grande realismo, que aproxima, em um mesmo universo, mulheres diferentes. Em António Candido (1970), encontramos uma explicação para a composição amorosa dessas personagens: “… a verdade da personagem não depende apenas, nem sobretudo da relação de origem com a vida (...). Depende, antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior” (p.75).
    Aluísio Azevedo organizou as experiências amorosas de Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza, de forma tal, que não deixa dúvidas para o leitor que essas cinco personagens estão bem entrelaçadas com a composição fragmentária do romance. Elas têm ligação direta com o momento sócio-histórico, e, como personagens, estão unidas ao material estético-literário da composição realista-naturalista. Essas mulheres são personagens que ganham vida na união com a composição estrutural do romance, na qual conseguem surpreender de forma positiva no que tange, por exemplo, à autonomia financeira. Nenhuma delas dependem financeiramente de seus pares amorosos, o que é algo raro dentro de uma sociedade patriarcal. Por isso, segundo Antonio Candido (1970), “as personagens planas, na sua forma mais pura, são construídas em torno de uma única idéia ou qualidade quando há mais de um fator neles, temos o começo de uma curva em direção à esfera” (p.62).
    Portanto essas cinco mulheres iniciam, cada uma delas, um percurso amoroso, e fazem uma curva na escala: de personagens planas para esféricas. Elas continuam subindo na curva esférica, através do comportamento social não padronizado, com exceção de Bertoleza. Mas, Bertoleza, por seu lado, é a única a surpreender pela fidelidade amorosa dedicada a seu par amoroso. Rita Baiana, Estela e Pombinha continuam subindo na curva esférica das personagens, pois a três tem o mando dos seus relacionamentos amorosos. Já Bertoleza também alcança o maior grau na curva esférica, por seu espírito empreendedor, na gestão honesta e competente da sua micro empresa, sua quitanda, fato extraordinário dentro da sociedade patriarcal. Já Léonie trouxe consigo, da França para o Brasil, o glamour e a experiência da prostituta francesa. Ela consegue surpreender pela audácia traiçoeira, no desvirtuamento moral e sexual de sua afilhada Pombinha.
    Todas essas cinco mulheres conseguem surpreender; umas mais, outras menos, mas nenhuma fecha a curva das personagens esféricas, pela cilada do determinismo da raça, do meio e do momento, e sendo assim não conseguem mais avançar nas suas ações.

Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.

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