Podemos
entender este poema de Alberto Caeiro, o quarto de O Guardador de Rebanhos,
datado de 10 de maio de 1914, como o real começo da obra, no seguinte sentido:
no poema I, Caeiro definiu-se; no II, definiu o modo como encarava a realidade,
clarificando a sua postura anti-metafísica meditativa; no III, libertou-se das
suas influências literárias, pois poderiam poluir a sua escrita, se optasse
pela imitação dos seus modelos. Nesta composição em concreto, Caeiro vira a sua
atenção para o exterior, para a realidade, o mundo que ele capta agora através
apenas das sensações.
O
sujeito poético abre o poema referindo-se à trovoada, exatamente o fenómeno
natural que mais fascinava e aterrorizava Fernando Pessoa, nomeadamente os
relâmpagos, como contou a sua irmã Henriqueta Dias em entrevista ao “Jornal de
Letras” em 1985. Almada Negreiros contava que, certo dia, no Martinho da
Arcada, café predileto do poeta, estava sentado à mesa com Pessoa quando
rebentou subitamente uma fortíssima tempestade. Ele levantou-se e foi à porta
do café. No momento em que retornou à mesa, Pessoa estava escondido debaixo da
mesa. Almada, então, fez o seguinte: “Puxei-o. Pálido como defunto
transparente. Levantei-o. Inerte senão morto. Pus-lhe os gestos de sentar-se e
apoiar-se de corpo sobre a pedra da mesa.” O próprio Fernando Pessoa, em carta
ao seu amigo Mário Beirão, qualifica o seu medo das trovoadas como uma “terrivelmente
torturadora fobia”.
A
primeira parte da descrição do fenómeno por parte do sujeito poético é pautada
pelo paganismo: “Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do céu abaixo (…)
/ Como alguém que duma janela alta / Sacode uma toalha de mesa, / E as migalhas,
por caírem todas juntas, / Fazem algum barulho ao cair”. A metáfora sugere que
existem presenças divinas por detrás desse fenómeno natural. Embora divinas,
essas presenças têm hábitos humanos: o paganismo passa também pela aproximação
das divindades de quem as reverencia. Essa aproximação prossegue nos versos
seguintes: “Os relâmpagos sacudiam o ar (…) / Como uma grande cabeça que diz
que não”.
O
sujeito poético declara não sentir medo da trovoada, nomeadamente dos
relâmpagos, mesmo tratando-se de um fenómeno terrível, como indiciam as
comparações com um pedregulho enorme a rolaer encosta abaixo e da chuva com
alguém a sacudir as migalhas de uma toalha de mesa de uma janela aberta, que,
por caírem juntas, fazem barulho ao cair, sugerindo a violência, o ruído dos
trovões, bem como a intensidade da chuva, que “enegreceu os caminhos”. No
entanto, dá por si a rezar a Santa Bárbara, a santa protetora contra as
trovoadas, cujo dia é 4 de dezembro. Essa contradição aponta para o fingimento:
se o «eu» tivesse medo, não faria sentido apelar a ser como a Natureza, dado
que não se teme o que é nosso semelhante. O sujeito poético justifica essa
ausência de medo por se sentir “ainda mais simples / DO que julgo que sou…”. É
como se estivesse consciente de que está a passar por um processo, em quem vai
abandonando a complexidade que ainda existe nele.
Isto
significa que, afinal, o pastor não se sentia verdadeiramente simples. A figura
do pastor terá impressionado Fernando Pessoa pela simplicidade que lhe é
associada e terá sido motivada por uma leitura de juventude, concretamente o
poema “The Shepherdess”, da autoria de Alice Meynell. Rezar a Santa Bárbara é
um gesto mais simples, mais comum, ou seja, é o que um pastor faria ao ver-se,
e ao seu rebanho, envolvido numa tempestade com aquela intensidade. No caso de
um intelectual, o apelo à religião seria ridículo e inócuo porque tratar-se-ia
de nova superstição. Tal não sucede, porém, com o «eu lírico, que opta pela
simplicidade.
Depois
de rezar, o sujeito lírico sugere que duvida da crença simples na Santa: “Sentia-me
alguém capaz de acreditar em Santa Bárbara… / Ah, poder crer em Santa Bárbara!
/ (Quem crês em Santa Bárbara, / Julgará que ela é gente visível, / Ou que
julgará dela?”. Se antes rezava para ser mais simples, depois de rezar, duvida
até da crença simples na Santa. Na realidade, nem Santa Bárbara existe, pois a
única existência é a Natureza: “(Que artifício! Que sabem / As flores, as
árvores, os rebanhos, / De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore / Se pensasse
nunca podia / Construir santos nem anjos…”. O sujeito poético nega o artifício
da religião, que cria santos e anjos a partir da imaginação humana, por
oposição à simplicidade e à pureza da Natureza, que não pensa nem constrói
ficções produto da imaginação humana. Ele valoriza e identifica-se com as
flores, com as árvores, com os rebanhos, elementos naturais que não pensam, não
sabem nada de santos, nomeadamente de Santa Bárbara, a padroeira contra as
tempestades, mas que existem harmoniosamente com os demais elementos.
Recorrendo
ao modo condicional, o sujeito poético coloca a hipótese de “julgar que oi sol
/ É Deus, e que a trovoada / É uma quantidade de gente / Zangada por cima de
nós…”, ou seja, de seguir o caminho daqueles que explicavam fenómenos e
elementos da Natureza por meio da religião, da crença em entidades divinas. Encontramos
aqui uma dupla visão: a de certos homens que inventam deuses e mitos para
explicar aquilo que não compreendem e a do «eu», que nega essas crenças (a
negação é logo antecipada pelo uso do condicional), valorizando a sensação e a
observação da Natureza, sem a tentar compreender, recorrendo à razão e à fé.
Daí que o sujeito lítico qualifique esses homens como “doentes e confusos e
estúpidos” (enumeração e polissíndeto): “(…) como os mais simples dos homens /
São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade / E saúde em
existir / Das árvores e das plantas!”. A antítese (por exemplo, os outros vs. «eu»;
doença vs. saúde) torna claro o contraste entre a estupidez e a doença dos
outros homens, por recorrerem à religião e à crença para conseguirem explicar o
que não compreendem, e a simplicidade e a saúde em simplesmente existir por
parte dos elementos naturais, que não pensam e, por isso, não sofrem,
limitando-se a existir. O sujeito lírico vê o erro dos outros homens e deixa de
ser seu semelhante. Como? Pensando nisso.
Na
última estrofe, o «eu» revela que o facto de pensar o deixa triste (“menos feliz”),
sombrio, doente e soturno, ou seja, o facto de pensar nesse contraste entre a
sua visão da Natureza e a dos outros homens. Seguidamente, ele compara esse seu
estado de espírito com um dia “em que todo o dia a trovoada ameaça / e nem
sequer de noite chega.”, isto é, a trovoada ameaça, mas não chega, não se
concretiza, ou seja, um dia de uma expectativa frustrada e de angústia
permanente. Pode depreender-se que o sujeito poético se sente infeliz por não
conseguir comunicar com os outros, por não comungar nem compreender a sua fé.
O
sujeito lírico quer ser natural, quer ser como a Natureza, porém acaba por
reconhecer que não pode ser somente a Natureza, visto que é, afinal, e será
sempre, um ser humano. É nessa qualidade que deverá encontrar o seu lugar na
Natureza. “Se procurar a sua própria completa anulação, nunca poderá fazer
parte de algo maior do que ele mesmo.” Deste modo, ficará no limbo: “(…)
sombrio e adoecido e soturno / Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
/ E nem sequer de noite chega…”.