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sábado, 28 de dezembro de 2024

Análise da ode "Seguro assento na coluna firme", de Ricardo Reis

    Estamos na presença de uma ode de Ricardo Reis, publicada originalmente na revista “Athena”, em outubro de 1924 e incluída posteriormente na obra Odes, um projeto que Fernando Pessoa planeou publicar em cinco volumes, porém o poeta apenas concluiu o primeiro.
    Nesta ode, o «eu poético», socorrendo-se da metáfora, associa os seus versos a uma coluna firme, os quais lhe proporcionam um lugar firme (sinónimo) e duradouro no mundo, mesmo confrontado com as questões da passagem do tempo e do esquecimento. Assim, o sujeito não receia o futuro (“Nem temo o influxo inúmero futuro” – v. 3) nem o esquecimento (“o olvido”), pois a sua mente cria uma realidade que não está dependente dos reflexos do mundo, mas, sim, da arte. Os “reflexos do mundo” são as imagens que a sua mente capta das coisas externas ao «eu», mas que não correspondem à essência das coisas. A mente, quando se fixa na sua própria atividade criadora, transforma os reflexos exteriores em matéria para a sua criação, para a sua arte. Posteriormente, essa mesma arte cria o mundo, isto é, dá forma e sentido ao que é caótico e transitório. A arte não é uma criação ou projeção da mente, mas algo independente e superior.
    Nos dois últimos versos da ode, introduzidos pelo advérbio «assim», em jeito de conclusão, através de nova metáfora («placa», isto é, a sua poesia), o «eu» lírico sugere que os seus versos, a sua arte, lhe garantirão um lugar firme e duradouro no mundo. Ele grava o seu ser na placa, ou seja, os seus versos, que duram mais que o “instante externo”, quer dizer, o que sucede em seu redor, o que ocorre no exterior da sua mente, no mundo sensível e transitório, que se opõe ao seu ser, isto é, à sua essência, à sua personalidade, ao seu modo de ver e sentir as coisas. O seu ser permanecerá na placa, ou seja, na sua obra, mesmo depois de o poeta ter morrido ou esquecido. A poesia confere-lhe imortalidade.

Análise de "Esta tarde a trovoada caiu", de Alberto Caeiro

    Podemos entender este poema de Alberto Caeiro, o quarto de O Guardador de Rebanhos, datado de 10 de maio de 1914, como o real começo da obra, no seguinte sentido: no poema I, Caeiro definiu-se; no II, definiu o modo como encarava a realidade, clarificando a sua postura anti-metafísica meditativa; no III, libertou-se das suas influências literárias, pois poderiam poluir a sua escrita, se optasse pela imitação dos seus modelos. Nesta composição em concreto, Caeiro vira a sua atenção para o exterior, para a realidade, o mundo que ele capta agora através apenas das sensações.
    O sujeito poético abre o poema referindo-se à trovoada, exatamente o fenómeno natural que mais fascinava e aterrorizava Fernando Pessoa, nomeadamente os relâmpagos, como contou a sua irmã Henriqueta Dias em entrevista ao “Jornal de Letras” em 1985. Almada Negreiros contava que, certo dia, no Martinho da Arcada, café predileto do poeta, estava sentado à mesa com Pessoa quando rebentou subitamente uma fortíssima tempestade. Ele levantou-se e foi à porta do café. No momento em que retornou à mesa, Pessoa estava escondido debaixo da mesa. Almada, então, fez o seguinte: “Puxei-o. Pálido como defunto transparente. Levantei-o. Inerte senão morto. Pus-lhe os gestos de sentar-se e apoiar-se de corpo sobre a pedra da mesa.” O próprio Fernando Pessoa, em carta ao seu amigo Mário Beirão, qualifica o seu medo das trovoadas como uma “terrivelmente torturadora fobia”.
    A primeira parte da descrição do fenómeno por parte do sujeito poético é pautada pelo paganismo: “Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do céu abaixo (…) / Como alguém que duma janela alta / Sacode uma toalha de mesa, / E as migalhas, por caírem todas juntas, / Fazem algum barulho ao cair”. A metáfora sugere que existem presenças divinas por detrás desse fenómeno natural. Embora divinas, essas presenças têm hábitos humanos: o paganismo passa também pela aproximação das divindades de quem as reverencia. Essa aproximação prossegue nos versos seguintes: “Os relâmpagos sacudiam o ar (…) / Como uma grande cabeça que diz que não”.
    O sujeito poético declara não sentir medo da trovoada, nomeadamente dos relâmpagos, mesmo tratando-se de um fenómeno terrível, como indiciam as comparações com um pedregulho enorme a rolaer encosta abaixo e da chuva com alguém a sacudir as migalhas de uma toalha de mesa de uma janela aberta, que, por caírem juntas, fazem barulho ao cair, sugerindo a violência, o ruído dos trovões, bem como a intensidade da chuva, que “enegreceu os caminhos”. No entanto, dá por si a rezar a Santa Bárbara, a santa protetora contra as trovoadas, cujo dia é 4 de dezembro. Essa contradição aponta para o fingimento: se o «eu» tivesse medo, não faria sentido apelar a ser como a Natureza, dado que não se teme o que é nosso semelhante. O sujeito poético justifica essa ausência de medo por se sentir “ainda mais simples / DO que julgo que sou…”. É como se estivesse consciente de que está a passar por um processo, em quem vai abandonando a complexidade que ainda existe nele.
    Isto significa que, afinal, o pastor não se sentia verdadeiramente simples. A figura do pastor terá impressionado Fernando Pessoa pela simplicidade que lhe é associada e terá sido motivada por uma leitura de juventude, concretamente o poema “The Shepherdess”, da autoria de Alice Meynell. Rezar a Santa Bárbara é um gesto mais simples, mais comum, ou seja, é o que um pastor faria ao ver-se, e ao seu rebanho, envolvido numa tempestade com aquela intensidade. No caso de um intelectual, o apelo à religião seria ridículo e inócuo porque tratar-se-ia de nova superstição. Tal não sucede, porém, com o «eu lírico, que opta pela simplicidade.
    Depois de rezar, o sujeito lírico sugere que duvida da crença simples na Santa: “Sentia-me alguém capaz de acreditar em Santa Bárbara… / Ah, poder crer em Santa Bárbara! / (Quem crês em Santa Bárbara, / Julgará que ela é gente visível, / Ou que julgará dela?”. Se antes rezava para ser mais simples, depois de rezar, duvida até da crença simples na Santa. Na realidade, nem Santa Bárbara existe, pois a única existência é a Natureza: “(Que artifício! Que sabem / As flores, as árvores, os rebanhos, / De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore / Se pensasse nunca podia / Construir santos nem anjos…”. O sujeito poético nega o artifício da religião, que cria santos e anjos a partir da imaginação humana, por oposição à simplicidade e à pureza da Natureza, que não pensa nem constrói ficções produto da imaginação humana. Ele valoriza e identifica-se com as flores, com as árvores, com os rebanhos, elementos naturais que não pensam, não sabem nada de santos, nomeadamente de Santa Bárbara, a padroeira contra as tempestades, mas que existem harmoniosamente com os demais elementos.
    Recorrendo ao modo condicional, o sujeito poético coloca a hipótese de “julgar que oi sol / É Deus, e que a trovoada / É uma quantidade de gente / Zangada por cima de nós…”, ou seja, de seguir o caminho daqueles que explicavam fenómenos e elementos da Natureza por meio da religião, da crença em entidades divinas. Encontramos aqui uma dupla visão: a de certos homens que inventam deuses e mitos para explicar aquilo que não compreendem e a do «eu», que nega essas crenças (a negação é logo antecipada pelo uso do condicional), valorizando a sensação e a observação da Natureza, sem a tentar compreender, recorrendo à razão e à fé. Daí que o sujeito lítico qualifique esses homens como “doentes e confusos e estúpidos” (enumeração e polissíndeto): “(…) como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade / E saúde em existir / Das árvores e das plantas!”. A antítese (por exemplo, os outros vs. «eu»; doença vs. saúde) torna claro o contraste entre a estupidez e a doença dos outros homens, por recorrerem à religião e à crença para conseguirem explicar o que não compreendem, e a simplicidade e a saúde em simplesmente existir por parte dos elementos naturais, que não pensam e, por isso, não sofrem, limitando-se a existir. O sujeito lírico vê o erro dos outros homens e deixa de ser seu semelhante. Como? Pensando nisso.
    Na última estrofe, o «eu» revela que o facto de pensar o deixa triste (“menos feliz”), sombrio, doente e soturno, ou seja, o facto de pensar nesse contraste entre a sua visão da Natureza e a dos outros homens. Seguidamente, ele compara esse seu estado de espírito com um dia “em que todo o dia a trovoada ameaça / e nem sequer de noite chega.”, isto é, a trovoada ameaça, mas não chega, não se concretiza, ou seja, um dia de uma expectativa frustrada e de angústia permanente. Pode depreender-se que o sujeito poético se sente infeliz por não conseguir comunicar com os outros, por não comungar nem compreender a sua fé.
    O sujeito lírico quer ser natural, quer ser como a Natureza, porém acaba por reconhecer que não pode ser somente a Natureza, visto que é, afinal, e será sempre, um ser humano. É nessa qualidade que deverá encontrar o seu lugar na Natureza. “Se procurar a sua própria completa anulação, nunca poderá fazer parte de algo maior do que ele mesmo.” Deste modo, ficará no limbo: “(…) sombrio e adoecido e soturno / Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça / E nem sequer de noite chega…”.

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