Português: Tragédia
Mostrar mensagens com a etiqueta Tragédia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Tragédia. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

5. A origem do teatro

    O teatro foi introduzido em Atenas no século VI a.C. sob a tirania de Pisístrato.
    O regime tirânico de Pisístrato foi, ao mesmo tempo, uma emanação da aristocracia e uma reação contra ela. O poder estava nas mãos de famílias célebres que o administravam ou através de um regime monárquico ou de um regime oligárquico e podia ser transmitido de forma hereditária ou eletiva, mas estava sempre nas mãos da aristocracia. Com o surgimento de uma série de crises no seio da aristocracia ocorriam casos em que um aristocrata tomava indevidamente o poder, apoiado por outros aristocratas e/ou por um grupo de cidadãos. Pisístrato foi um desses tiranos “populares”. Na realidade, tomou e perdeu o poder três vezes na segunda metade do século VI a.C., concretamente entre os anos 561-555 a.C., 544-538 a.C. e 534-533 a.C. Foi precisamente neste último período de tirania que Pisístrato, preocupado com o apoio do povo, regulamentou as representações teatrais em Atenas.
    Antes dessa época, o teatro grego tinha um caráter privado e voluntário. Assim, temos notícia de que eram representadas «peças» em Atenas desde 558 a.C., associadas a Téspis, o primeiro autor de que temos conhecimento, porém foi Pisístrato quem determinou que fossem encenadas nas Grandes Dionísias Urbanas, que ocorriam nos finais do mês de março. Deste modo, Pisístrato usava a religião contra a aristocracia, reorganizando as festividades tradicionais e patrocinando o culto mais popular da época – o de Dioniso – e a sua festa mais importante – as já citadas Dionísias Urbanas.
    De acordo com o conhecimento que se tem, a primeira representação de uma tragédia incluída nas Dionísias Urbanas terá ocorrido entre 536 e 533 a.C. Existem igualmente poucos dados sobre os autores dessa primeira fase do teatro grego. Assim, após e além de Téspis, conhecemos o nome de Quérilo, que terá composto cerca de 160 tragédias, e de Frínico, discípulo de Téspis, cuja primeira vitória se deu entre 511 e 508 a.C. Os grandes nomes do teatro grego situam-se, porém, no século V a.C.: Ésquilo (525-455 a.C.), Sófocles (495-405 a.C.) e Eurípides (480?-406-405 a.C.). Da sua produção teatral, terão chegado até ao nosso conhecimento apenas cerca de 10%, concretamente sete tragédias de Sófocles e Ésquilo e dezoito de Eurípides, num total de trinta e duas, a saber: Ésquilo – Os persas (472), Os sete contra Tebas (467), As suplicantes (data incerta), Prometeu Agrilhoado (data desconhecida e autenticidade contestada), Oresteia: Agamémnon, As coéforas e as Euménides (458); Sófocles – Ájax (data desconhecida), As traquínias(data desconhecida), Antígona (442), Édipo Rei (cerca de 420), Eletra (sem data), Filoctetes (409) e Édipo em Colona (401); Eurípides – Alceste (438), Medeia (431), Os heráclidas (entre 430 e 427), Hipólito (28), Andrómaca (cerca de 426-424), Hécuba (cerca de 424), As suplicantes (entre 424 e 421), Hércules furioso (entre 420 e 415), Íon (entre 418 e 414), As troianas (415), Eletra (413), Ifigénia em Táurida (entre 415 e 412), Helena (412), As fenícias (provavelmente em 410), Orestes (408), Ifigénia em Áulida (após a morte de Eurípides), As bacantes (após a morte de Eurípides) e Reso (data desconhecida e autenticidade contestada). Na verdade, Ésquilo terá escrito cerca de noventa tragédias, Sófocles mais de cem (Aristófanes de Bizâncio menciona 130, sete das quais passavam por inautênticas) e Eurípides 92, 67 das quais ainda eram conhecidas na época em que foi escrita a sua biografia.
    O teatro gregro, por outro lado, situa-se num duplo plano: religioso, visto que se insere no calendário festivo-religioso, e político, dado tratar-se também de uma festa estatal, cabendo à polis tratar dos preparativos para a sua realização.
    Com o desenvolvimento do género teatral, as Grandes Dionísias, no século V a.C., atraem um público cada vez maior. Assim, vemos a cidade de Atenas a reunir-se em peso para assistir anualmente, num determinado momento do calendário religioso, à representação de tragédias e comédias, pelo que se pode concluir que é para a polis que as peças são direcionadas. No entanto, gradualmente os estrangeiros começam a participar no evento, vindos de outras cidades gregas (metecos), ou de outros países, exclusivamente para assistir às representações teatrais. Deste modo, o teatro ateniense torna-se o símbolo cultural da cidade e constitui um elemento importante da política hegemónica de Atenas na zona do Mediterrâneo oriental a partir das vitórias sobre as invasões persas.
    Após a regulamentação promovida por Pisístrato, as Grandes Dionísias ou Dionísias Urbanas passaram a ser um conjunto de manifestações religiosas, políticas e poéticas com uma programação definida. A organização cabia à cidade, mais concretamente do arconte-epónimo, num contexto de tribalização, isto é, a comunidade de Atenas mantinha a antiga divisão em tribos, embora das quatro tradicionais se tivesse formado dez novas. De cada tribo era escolhido um arconte e o conjunto dos dez arcontes organizava durante um ano a vida quotidiana e religiosa da cidade de Atenas. Um deles designava-se arconte-rei ou arconte-epónimo, dado que dava o seu nome ao ano em curso, e era o responsável por selecionar três tragediógrafos dentre os autorizados a concorrer nos concursos.
    O festival estendia-se por seis dias, mais concretamente entre 10 e 15 do mês Elafebolión, o que corresponde a finais de março e início de abril do nosso calendário atual, e os espetáculos sucediam-se ininterruptamente de manhã até ao meio da tarde.
    Nesse espaço de tempo, além das atividades religiosas propriamente ditas, tinham lugar quatro tipos de apresentações artísticas soba forma de concursos: ditirambos, comédia, drama satírico e tragédia, as primeiras três com ligação clara a Dioniso. Note-se que o caráter competitivo que preside a essas representações teatrais é uma das formas motrizes da cultura grega, que competia por «tudo e por nada»: desporto, beleza física, arte, artesanato, canto, dança, teatro, etc. A competição e o confronto públicos (agón) atraíam irresistivelmente os gregos e todas as suas festividades possuíam algum tipo de competição, desde logo porque a civilização helénica possui um caráter fortemente público. Por exemplo, desde os poemas homéricos, os heróis têm o seu status definido pelos feitos que realizam publicamente, na presença dos seus iguais. Os Jogos Olímpicos, cuja primeira edição conhecida teve lugar em 776 a.C., são o exemplo máximo desse espírito competitivo dos festivais religiosos, neste caso, em homenagem a Zeus e de caráter pan-helénico, nos quais competiam atletas de várias cidades gregas, bem como poetas e oradores. Essa pulsão competitiva caracteriza também a tragédia, não só pela competição entre os tragediógrafos, mas também pelo facto de possuir a cena do enfrentamento.
    No primeiro dia do festival – 10 –, um grande cortejo conduzido pelo arconte-rei e protegido pelos efebos, jovens de 16 a 18 anos, acompanha a estátua de madeira de Dioniso Eleutério, o Libertador, que é transportada para a cidade, a qual será conduzida até ao teatro à luz de tochas. Neste cortejo, participam todos os concorrentes às diversas modalidades poéticas. Além disso, durante este primeiro dia, ocorre também uma hecatombe, ou seja, um grande sacrifício de inúmeros animais que alimenta animados banquetes por toda a cidade.
    Nos dois dias seguintes – 11 e 12 –, havia o concurso de ditirambos, que eram cantados em louvor a Dioniso por coros de homens e crianças. Esses coros, de origem bem antiga, no passado, acompanhariam um rito de sacrifício dionisíaco com dilaceração e consumo das carnes da vítima viva e do seu sangue ainda quente.
    Na noite do dia 12 para o dia 13, havia um grande kômos, isto é, uma procissão irreverente de foliões com faloforia, ou seja, o transporte do falo, na qual participavam figuras disfarçadas e mascaradas, em geral de sátiros ou de animais, subordinada a um argumento rudimentar. Assim, havia uma entrada em cena tumultuada, uma discussão por motivo fútil e um discurso-bufo final. Na realidade, o kômos constituiu uma espécie de embrião da comédia.
    As apresentações aconteciam em três dias consecutivos. No quarto dia, tinha lugar o concurso de comédias. Nestas representações teatrais, é retomado o argumento simples do kômos, embora de forma mais elaborada nas suas três partes principais: párodo, a entrada tumultuosa do coro, evocando eventualmente uma cena conhecida; o agón, a disputa/ o conflito entre as personagens; e a parábase, o momento em que o coro se dirige diretamente ao público, solicitando-o como testemunha. No entanto, a comédia diferencia-se do kômos primitivo por já não apresentar tão frequentemente Dioniso e o seu cortejo.
    Os dois últimos dias do festival – 14 e 15 – eram reservados aos concursos trágicos. De facto, o rápido crescimento da produção teatral e do interesse que ela despertava foi responsável pela introdução do concurso de tragédias nas Grandes Dionísias Urbanas, em evento instituído oficialmente por Pisístrato e que contava com o patrocínio do Estado e realização da pólis, o que conferia a estas representações teatrais numa das festividades mais populares um forte cunho político.
    O arconte (magistrado da Grécia Antiga que, antes de Sólon, detinha o poder de legislar e, posteriormente, se tornou um simples executor de leis), o cidadão mais importante de Atenas, designava para cada autor um corega, que seria o responsável pelas representações e aquém incumbia, a expensas suas, a função de escolher os jovens coreutas que formariam o coro, os atores – para esses papéis eram selecionados apenas pessoas do sexo feminino – e o ensaio de ambos.
    Em cada concurso trágico, cada autor apresentava três tragédias, a chamada trilogia, e finalizava com um drama satírico, ou drama silénico. O conjunto das três tragédias e do drama constituía a tetralogia, que possuía unidade temática. Somente uma trilogia temática chegou até nós, a Oresteia, também designada Trilogia de Orestes, da autoria de Ésquilo. Nela, a primeira tragédia representava o regresso e morte de Agamémnon às mãos de Clitemnestra, a sua esposa; na segunda, Orestes, seu filho, vinga o pai assassinando a própria mãe; na última, Orestes é inocentado do matricídio graças à intervenção da deusa Atena.
    O elemento mais importante do drama satírico, e que lhe dava o nome, era o coro de sátiros que representava sob a forma de danças acrobáticas o aspeto exterior da manía, a loucura decorrente da possessão divina. Esses dramas satíricos assemelhavam-se, na forma, às tragédias, mas, ao nível do conteúdo, aproveitavam os detalhes grotescos das lendas antigas. Apenas um drama satírico grego completo chegou aos nossos dias, os Ciclopes, de Eurípides, além de um fragmento extenso dos Icneutas, de Sófocles.
    No dia do festival, todo o povo era convidado. A entrada para os espetáculos era paga, porém o Estado responsabilizava-se pelas despesas dos que não pudessem pagar e contribuía com uma quantia de dinheiro para pagar os seus dias de trabalho. Toda a cidade de Atenas estava presente, desde as mulheres (existem, porém, dúvidas sobre a constituição do público teatral na Atenas do século V a.C., defendendo alguns autores que as mulheres não teriam lugar na plateia, no entanto falas de vários textos são dirigidos a um público feminino, o que pode pressupor a sua presença no auditório) até aos escravos, passando pelos estrangeiros e metecos (estrangeiros residentes em Atenas), o que fez com que essas manifestações culturais adquirissem características de uma manifestação nacional.
    A presença de tanta gente em simultâneo criava um ambiente agitado e tumultuoso, havendo certamente lugar ao consumo de comida e bebida dada a duração das representações, que se tornaram num acontecimento de grande importância. Em primeiro lugar, havia a questão de se tratar da grande festa em honra de Dioniso, que por si só já era motivo de atração; depois, havia o caráter único de cada apresentação, que não voltaria a ser exibida durante muito tempo; a seguir, havia a curiosidade geral para saber como seria tratado um tema já conhecido por todos; por último, havia o prazer de as pessoas se juntarem para uma atividade em comum.
    No final dos três dias de representações, um tribunal constituído por representantes das diferentes tribos, decidia quem deveria ocupar o primeiro, o segundo e o terceiro lugar, recebendo o poeta vencedor uma coroa como prémio.
    A existência da tetralogia, isto é, a conjugação de tragédia e de um drama satírico terá uma explicação. Muitos autores associam a tragédia ao sacrifício de um animal, como sucede nas Grandes Dionísias, em que era sacrificado um bode a Dioniso e bode, em grego, dizia-se trágos. A morte de animais na caça ou em sacrifícios estava associada a sentimentos de culpa pelo sangue derramado, que é igual ao do caçador ou sacrificador. Assim sendo, o animal abatido necessita de ser apaziguado de alguma forma, para que não perturbe o seu matador, por exemplo por meio de rituais. Ora, se a trilogia trágica é o momento do sacrifício, do derramamento de sangue, deve haver alguma compensação em cena. Deste modo, é natural que às tragédias sucedesse um drama satírico, dado que os bodes seriam trazidos novamente ao palco, agora vivos, revertendo os maus fluidos através da ressurreição e assim fechando um ciclo. Quanto ao espectador, após uma sequência de três tragédias, há uma grande quantidade de tensão naturalmente acumulada que seria libertada através do drama.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

4. A figura de Dioniso

    Dioniso é um deus que está associado ao fruto carnudo e suculento, como a uva ou o figo, opondo-se, neste sentido, a Deméter, deusa dos cereais, do trigo, da cevada. Se, por um lado, a fruta dá a sensação de prazer imediato, o grão é pouco saboroso, porém os dois tipos de alimentos completam-se, pois é o grão que sustenta, é ele que simboliza a civilização, o plantio e, portanto, o esforço humano. O fruto carnudo e doce, pelo contrário, é colhido diretamente, pelo que se trata de uma dádiva da natureza. Assim sendo, Dioniso é o deus do contacto direto, sem esforço, com o prazer.
    Por outro lado, Dioniso opõe-se também a Apolo. Embora este, nos poemas homéricos, possua igualmente um caráter violento (por exemplo, são as suas flechas que, na Ilíada, dizimam os aqueus a pedido de Crises, o seu sacerdote), por estar associado à música e à poesia através da lira (que, na verdade, revela a violência original do arco e da flecha), tornou-se o deus da simetria da forma, da grave determinação, da seriedade de tom, características apolíneas.
    Dioniso também está associado à poesia e à música como Apolo, mas o seu instrumento é a flauta, aulos em grego, um instrumento duplo de sopro que soaria mais como um oboé ou uma gaita de foles escocesa, portanto distante do som suave das flautas atuais, mas mais apropriado aos êxtases dionisíacos.
    O culto de Dioniso é muito antigo na Grécia, remontando à época micénica, estendendo-se os seus centros de culto desde Atenas a Tebas, Corinto e Naxos. O verso usado nos cantos que ocorriam nas celebrações dionisíacas era o ditirambo, um canto lírico copmposto por elementos alegres e dolorosos que, além de narrar os momentos tristes da passagem de Dioniso pelo mundo mortal e o seu posterior desaparecimento, exprimia, de forma exuberante, uma quase intimidade dos homens com a divindade que lhes possibilitara chegar ao êxtase. O hino assumia a forma de uma dança coral acompanhada de gestos e movimentos ilustrativos, dança essa que se chamava órchesis. Este canto em coro acabou por se definir como trágico e dele resultou a tragédia: uma representação viva feita por atores que narrava os acontecimentos ocorridos no plano mítico e que, problematizando a situação do herói, discutia os valores fundamentais da existência humana.
    As características especiais de Dioniso acabaram por atrair outros seres, como os sátiros, por exemplo, que possuíam características animalescas e que representariam forças vigorosas da natureza, paixões e emoções humanas. Regra geral, eram representados como cobardes, sensuais, livres e bem-humorados e com um pénis permanentemente ereto. Havia também os silenos, sátiros velhos, bêbedos e lascivos. Além disso, existiam ainda as bacantes ou mênades, que eram entidades femininas, umas vezes ninfas, outras mulheres mortais, que tomavam parte no cortejo de Dioniso com os cabelos soltos e enfeites florais e que, para contactarem com o deus, se entregavam ao êxtase (o entusiasmo). A Dioniso, estavam também associados os centauros, que representavam a força e o vigor natural e se embriagavam frequentemente, bem como Pan, o deus da vida rural.
    Este conjunto de seres configuraria na imaginação grega algo que é recorrente em várias culturas: o sentimento de que há algo pulsante e incontrolável no mundo, mas que constitui também uma manifestação de uma dimensão superior ao homem, algo que se, por um lado, pode ser fonte de alegria e libertação, por outro, pode ser perigoso e até mortal. Em suma, algo que pode representar um mistério.
    Outro elemento que assumia grande importância no culto de Dioniso era a máscara, que era usada pelos seus seguidores e que representava o elemento de transformação, de perda de identidade. Além disso, é nela que se baseia a essência da representação dramática, conferindo ao teatro grego uma peculiaridade que não se encontra nos demais géneros e que se conservou até à atualidade.
    No que diz respeito ao coro, cantava em uníssono a princípio, porém, ao longo do tempo, foi-se dividindo em duas secções, cada uma das quais perguntava e respondia à outra alternadamente. Este «diálogo», no entanto, não tinha ainda caráter dramático. O corifeu – o membro do coro que podia cantar sozinho – era o responsável por coordenar esse diálogo.
    Para responder às perguntas dos coreutas e dos cantores como um todo, foi introduzida uma nova figura, o exarconte, que possuía uma voz autónoma em relação ao canto coletivo, tornando-se um elemento indispensável do ditirambo. Com a passagem do tempo, foram incorporadas novas funções no seu ofício, dentre elas a representação. Nesse momento, o exarconte passou a chamar-se hypokrités – aquele que finge, isto é, o ator.
    Inicialmente, os temas do ditirambo, bem como os da tragédia, relacionavam-se com a lenda de Dioniso, estendendo-se o seu âmbito, mais tarde, a toda a mitologia. Esses temas raramente eram extraídos da história. As próprias máscaras foram substituídas com essas mudanças: máscaras humanas passaram a ocupar o lugar das máscaras animalescas dos sátiros.
    Será justamente neste ambiente religioso e festivo que será introduzido a posteriori o teatro.

domingo, 29 de dezembro de 2024

3. A origem da tragédia

    A tragédia grega terá nascido do culto de Dioniso – o deus do vinho, da alegria, da exuberância, das potências geradoras e “da excitação de toda a espécie e da união mística” (Heinz-Mohr 1994: 137). De facto, a tragédia grega era uma das principais festividades religiosas anuais que se realizavam em Atenas, as Grandes Dionísias Urbanas.
    Atenas, como as restantes cidades gregas, tinha o seu calendário anual pautado por diversas festividades. Com efeito, cada cidade grega tinha a sua própria bandeja de festas e o seu próprio calendário. Mais do que isso, dentro da mesma cidade, sucedia por vezes haver festas exclusivas de determinada tribo. Em Atenas, supõe-se que 60 dias anuais eram dedicados exclusivamente a festividades religiosas. A importância destas manifestações é atestada também pelo facto de os nomes dos meses estarem ligados às festividades mais importantes realizadas naquele período de tempo.
    A festividade na qual eram apresentadas as tragédias era a que se destinava a homenagear Dioniso. Na Ática, os principais festivais em honra do deus eram as seguintes:

1) Leneias: as festas dos tonéis de vinho, aproximadamente em janeiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho novo.

2) Antestérias: o mais antigo festival dionisíaco, por isso também chamado “Velhas Dionisíacas”, aproximadamente em fevereiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho.

3) Oscofórias: o festival da colheita das uvas, realizado sensivelmente em outubro, quando havia uma corrida de rapazes levando ramos de parreira-

    Para o caso – a origem da tragédia grega –, o mais importante festival em honra de Dioniso eram as Dionísias (que se dividiam em urbanos e rurais), especialmente a primeira, que ocorria em dois momentos distintos: uma tinha lugar logo na primavera, após as Antestérias, em finais de março, quando o vinho do último ano estava maduro, pronta para beber, fazendo-se, portanto, a abertura dos barris (o sentimento geral era de que a terra estava a acordar para uma nova vida); a outra ocorria no inverno e marcava o fim do trabalho anual e que ocorria no início de janeiro em Atenas.
    Quanto às Dionísias Rurais, tinham uma dimensão inferior e lugar em dezembro. Nelas, um kômos, isto é, um grupo de foliões, carregando um falo de grandes proporções, cantava canções dirigidas a Dioniso, as chamadas «canções fálicas». Nos intervalos, o líder entretinha os espectadores com vulgaridades, na forma de monólogo ou de diálogo. Diversos autores creem que esse kômos foi uma das origens do coro, um dos traços mais importantes do teatro grego, tanto na tragédia como na comédia.
    As Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias tinham a seguinte forma. Iniciavam-se por uma procissão que escoltava uma antiga imagem de Dioniso ao longo da estrada que levava à cidade de Eleutéria e retomava depois ao altar do deus, em Atenas, onde um bode era sacrificado no meio de danças e canções. Uma virgem liderava a procissão, enfeitada com ornamentos dourados, transportando uma cesta cheia de bolos e flores. Os demais participantes levavam oferendas rurais (uvas, figos, vinho, etc.) e o animal que seria sacrificado. Além disso, um falo era transportado no alto.
    Neste cortejo ritual, os participantes ativos que se dirigem para um objetivo, durante o percurso, interagem com o outro grupo que se forma simultaneamente ao longo do caminho, ou seja, os espectadores. A finalidade da pompé (equivalente ao latim pompa) é um santuário no qual terá lugar o sacrifício, mas o próprio caminho também tem significado, é «sagrado». Noutras procissões religiosas, são apresentadas já dramatizações de caráter mimético da partida, o abandono do santuário, prefigurando no ritual a futura forma dramática.
    Os participantes ativos desempenham papéis bem definidos, como a portadora do cesto, ou os portadores do falo, no caso das Grandes Dionísias, a portadora da água, o portador do fogo, das taças, etc. O estatuto particular dos participantes é indicado não só pelo vestuário festivo, mas também pelas coroas, faixas de lã e pelos ramos que levam nas mãos. O uso destes sinais exteriores dos papéis durante o ritual será mais tarde apropriado pelo teatro.
    Deste modo, as procissões, os hinos e as danças de caráter festivo-religioso prefiguram, de certo modo, as formas que o teatro grego assumirá mais tarde. O divertido kômos e a solene pompé constituem a contrapartida puramente ritual dos coros cómicos e trágicos do teatro grego.
    Outra semelhança entre o ritual de Dioniso e a tragédia tem a ver com a forma como o festival dionisíaco acontecia na Ática, que era bem diferente das suas manifestações orientais, nas quais existia violência selvagem e extática, além de serem realizadas no inverno e à noite. Assim, observa-se neste ritual a passagem de uma simplicidade rude e às vezes brutal à graça, à dignidade e refinamento que serão também características da tragédia ática.

2. Origem e significado da palavra tragédia

    A tragédia é uma forma dramática ou peça de teatro, em geral solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, envolvido num acontecimento funesto. Nela expressa-se o conflito entre a vontade dos homens e os desígnios inelutáveis do destino, nela se geram paixões contraditórias entre o indivíduo e o coletivo ou o transcendente. Em sentido lato, pode abranger qualquer obra ou situação marcada por acontecimentos trágicos, ou seja, em que se verifique algo de terrível e que inspire comoção.
    A palavra tragédia vem do grego tragoidia, uma palavra formada por duas outras: trágos, que significava bode, e õide (odé), que queria dizer canto. Assim, etimologicamente, tragédia significa canto do bode. Crê-se que resultou de os atores se vestirem com pele de cabra ou de, primitivamente, na Grécia, nas festas em louvor a Dioniso (o deus grego do vinho e da alegria, tal como Baco entre os Romanos), se sacrificar um bode (tragos) ao som de canções (odé) executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar sozinho) acompanhado por um coro. De acordo com uma das interpretações que procura explicar essa origem, Dioniso teria ensinado aos homens, em Ícaro, pela primeira vez, a arte de cultivar vinhas. Assim que as videiras cresceram, um bode destruiu-as, por isso foi morto. Depois de o perseguirem em esquartejarem, os homens começaram a dançar e a beber em cima da sua pele, até caírem desmaiados. Este episódio, ao que parece, passou a integrar os rituais dionisíacos anualmente. De facto, durante os festivais, era oferecido um bode a Dioniso e, posteriormente, cantava-se e dançava-se até à exaustão. Os cantares e os dançarinos travestiam-se de «sátiros», que eram concebidos pelo imaginário popular como “homens-bode”.

1. Introdução à tragédia grega clássica

    Habitualmente, pensamos numa tragédia como um livro que lemos no sentido de compreendermos como os gregos sentiam o trágico nas suas vidas e como o expressavam artisticamente. No entanto, não era assim que os gregos antigos procediam. De facto, é só por volta do século V a.C., no período de maior fulgor do teatro grego, que surge na Grécia uma cultura verdadeiramente letrada, nomeadamente com a edição e circulação (venda) de livros, ainda que de forma incipiente. Neste contexto, há que ter em conta que, nesta fase, persiste uma tensão entre o oral e o escrito, que se prolonga pelo século seguinte e que é visível, por exemplo, na obra de Platão, que olha para a escrita com alguma desconfiança.
    Gradualmente, porém, a escrita / a leitura de tragédias vai fazendo o seu caminho, até Aristóteles (38 a.C. – 322 a.C.) declarar que é possível obter também o efeito trágico apenas lendo uma peça, sem necessidade de uma representação pública.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A tragédia clássica: origens e características

Introdução

A tragédia é uma forma dramática ou peça de teatro, em geral solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, baseada no percurso e no destino do protagonista ou herói, que termina, quase sempre, envolvido num acontecimento funesto. Nela se expressa o conflito entre a vontade humana e os desígnios inelutáveis do destino, nela se geram paixões contraditórias entre o indivíduo e o coletivo ou o transcendente. Em sentido lato, pode abranger qualquer obra ou situação marcada por acontecimentos trágicos, ou seja, em que se verifique algo de terrível e que inspire comoção.
A palavra tragédia vem do grego trágos + odé, que significa canto dos bodes ou canto para o bode. Crê-se que resultou de os atores se vestirem com pele de cabra ou de, primitivamente, na Grécia, nas festas em louvor a Dionísio (o deus grego do vinho e da alegria, tal como Baco entre os Romanos), se sacrificar um bode (tragos) ao som de canções (odé) executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar sozinho) acompanhado por um coro.
A origem da tragédia como teatro parece ter acontecido em 534 a.C., quando um corifeu chamado Téspis decidiu encarnar a personagem Dionísio, dramatizando os ditirambos (composições líricas corais) num diálogo com os restantes elementos do coro, que passou a ter um papel de espectador privilegiado ao interpretar os sentimentos dos outros espectadores.
Se os cantos e as danças, entusiastas, com sátiras a alguns aspetos da vida permitiram o aparecimento da comédia, as reflexões mais sérias e tristes que mostravam os aspetos negativos da existência, muitas vezes pela crença num destino funesto, provocaram o aparecimento da tragédia.


Estrutura da tragédia clássica grega

As partes principais da tragédia clássica grega são o Prólogo (introdução e preparação para a entrada do coro), o Párodo (entrada do coro), Episódios (cenas no palco, entre os cantos corais, com os atos que constituíam a intriga), Estásimos (trechos líricos executados pelo coro), o Epílogo (desenlace ou desfecho). Isto significa que era constituída por 5 atos: um introdutório (o prólogo), três centrais (no último, situa-se o clímax ou ponto culminante da ação, com a anagnórise ou reconhecimento) e um conclusivo, o epílogo, no qual se situa a catástrofe.
A tragédia clássica latina (influenciada pela comédia nova grega) apresentava o Prólogo (exposição inicial), os Episódios (os atos que constituíam a intriga) e o Êxodo (desenlace ou desfecho).


Elementos intrínsecos característicos da tragédia

Na tragédia, percebe-se o seguinte percurso: após a hybris (desafio do protagonista aos deuses, às autoridades ou ao destino; o sentimento de orgulho desmedida leva o herói a perpetrar uma violação à ordem estabelecida, através de uma ação que constitui o tal desafio aos poderes e ordens divinos), acontece o páthos (sofrimento intenso como consequência do desafio e capaz de despertar a compaixão do espectador) e surge a agnórise ou anagnórise (reconhecimento de um facto inesperado ou o reconhecimento de uma personagem), que desencadeia o clímax (etimologicamente, “escada” ou “gradação”, é o crescendo trágico até à peripécia, ou seja, à mudança repentina de estado nas personagens, muitas vezes como resultado da agnórise; é o ponto máximo da tensão, a partir do qual se define o desfecho; o ponto culminante é a acmê); daqui resulta a cathársis (a catarse é a reflexão purificadora, a purgação ou purificação dos sentimentos dos espectadores, que se identificam com os conflitos representados) e a catástrofe ou catástase (desfecho trágico). Algures ocorre a peripeteia ou peripécia (a súbita mudança de acontecimentos que altera completamente o rumo dos acontecimentos) e o ágon [o conflito que decorre da hybris desencadeada pelo(s) protagonista(s)].
Outros elementos sempre presentes são a némesis (vingança dos deuses, ou do destino, perante o desafio arrogante do homem), o destino (moira), a anankê ou fatum (necessidade como fatalidade; o destino, a força inexorável que determina o rumo da ação e à qual têm de se submeter os seres humanos, os heróis e os próprios deuses), a phóbos (sentimento de terror, de medo) e a éleos (sentimento de piedade).
Há ainda a considerar os traços seguintes:
▪ o homem subordina-se a um destino inelutável, sendo um mero instrumento dele e joguete dos deuses;
▪ o protagonista é um homem justo que, sem culpa, cai da felicidade na desgraça;
▪ o protagonista atua movido por forças superiores (o destino, os deuses);
▪ ao longo dos atos, a ação desenvolve-se num crescendo de intensidade que torna a catástrofe inevitável;
▪ os protagonistas são geralmente três, acompanhados respetivamente de outros três secundários;
▪ a personagem coletiva – o coro –, inverosímil de um ponto de vista realista, apresenta como função o ato de comentar ou anunciar o desenrolar dos acontecimentos sem interferir neles (estabelece uma relação entre o autor e o público);
▪ a lei das três unidades: unidade de espaço (a ação decorre no mesmo cenário e os acontecimentos passam-se todos no mesmo lugar), de tempo (a ação ocorre num período de 24 horas, mostrando que a ação do destino é imperativa e fulminante) e de ação (a peça desenrola-se em torno de um só problema central, não se desviando para problemas secundários);
▪ a linguagem da tragédia é o verso.

Ésquilo é o primeiro poeta trágico clássico, a que se lhe seguiram Sófocles e Eurípides, que acrescentaram outros atores ao corifeu, podendo cada um desempenhar vários papéis com recurso a máscaras. Entre os romanos, foram importantes dramaturgos Lívio Andrónico e Séneca; na época clássica, merecem referência Shakespeare, Calderón de la Barca, Corneille, Racine ou o português António Ferreira, com A Castro; na época moderna, os grandes representantes da tragédia são Ibsen, Strindberg e Tchekhov.
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, apesar de ser um drama romântico, pode aproximar-se da tragédia clássica na medida em que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objetiva.
Tal como foi teorizada e cultivada pela Antiguidade greco-latina e pela literatura clássica, a tragédia, com o seu conjunto de convenções rígidas de género, com a intervenção de personagens heroicas em conflito com deuses vingadores, subordinadas a um fatum inelutável, é um género extinto desde o Romantismo (cf. STEINER, George – La Mort de La Tragédie, Paris, 1965). Quando se fala de "tragédia" na época contemporânea, é necessário lembrar a distinção estabelecida por G. Genette (cf. Introduction à l'Architexte, Paris, 1979) entre "tragédia" e "trágico", pelo que não se deve confundir o género "tragédia", definido na Poética de Aristóteles, por oposição a outro género nobre, a epopeia, e a um género menor, a comédia, com outra realidade "puramente temática e de ordem mais antropológica do que poética: o trágico, isto é, o sentimento da ironia do destino ou a crueldade dos deuses" (id. ibi., p. 25, trad.). O recurso ao "trágico" na época contemporânea pode traduzir-se na introdução do arcaboiço temático ou estrutural da tragédia sob outros discursos, como o romanesco, como sucede, por exemplo, em Os Maias, de Eça de Queirós.


Fonte: Infopedia


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...