Português: 25/12/24

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Caracterização de Rita Baiana

I. Retrato físico:

    Rita Baiana é uma personagem marcante do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Ela é descrita com uma beleza exuberante e sensualidade natural que capturam a atenção de todos ao seu redor.
  • Cabelos: Longos, ondulados e negros como a noite, com um brilho intenso que reflete sua vivacidade, caem como uma cascata sobre os ombros, emoldurando o seu rosto com um toque selvagem e natural. Costuma usá-los soltos ou presos de maneira despretensiosa, como quem não tem tempo a perder com formalidades, o que aumenta seu charme natural.
  • Pele: Morena e luminosa, com um tom dourado característico que reflete suas origens mestiças, exalando saúde e vitalidade. Ela tem um aspeto saudável, com um brilho que lembra o calor tropical, isto é, o brilho do sol num dia de verão.
  • Olhos: Grandes e negros, profundos e expressivos, com um brilho vivaz que transmite paixão ou malícia e ternura ou alegria, duas janelas para a sua alma calorosa e apaixonada. O olhar é magnético, capaz de cativar qualquer pessoa.
  • Corpo: Bem proporcionado, com curvas sensuais, é uma celebração da feminilidade. De facto, a sua figura reflete feminilidade e força, com quadris largos, equilibrados por ombros delicados, e uma postura confiante, formando uma silhueta que atrai olhares por onde passa. Além disso, movimenta-se com a graça de quem está em sintonia com a música do mundo, e cada passo parece uma dança, refletindo a sua ligação com o ritmo e a cultura brasileira.
  • Rosto: Oval e harmonioso, cheio de vida, com maçãs do rosto ligeiramente salientes e lábios carnudos e bem desenhados, de um vermelho natural, muitas vezes curvados formando um sorriso provocante que é, ao mesmo tempo, desafiador e convidativo.
  • Vestuário: Geralmente vestida de forma vibrante e atraente, com roupas coloridas, que refletem sua personalidade alegre e sua ligação com a cultura brasileira. Gosta de usar vestidos leves e coloridos/floridos, que destacam as suas formas e a sua naturalidade. Pequenos adornos, como brincos de argola ou pulseiras de contas, completam o visual, adicionando toques de brilho à sua aparência.
    Em suma, Rita Baiana é a personificação da vivacidade tropical, uma mulher cuja presença ilumina qualquer ambiente. Por outro lado, ela não se preocupa em seguir padrões de beleza impostos, daí que a sua beleza venha da sua autenticidade e da paixão que coloca em tudo o que faz. A presença da personagem  é magnética e envolvente e o seu jeito desinibido e alegre faz dela o centro das atenções, seja ao dançar numa roda de samba ou ao encantar com sua conversa espirituosa. É uma mulher cuja beleza transcende o físico, enraizada na sua energia, liberdade e paixão pela vida.

II. Caracterização social

  1. Origem e cultura: Rita Baiana é uma mulher de origem mestiça, representando o sincretismo cultural brasileiro, especialmente as influências afro-brasileiras. Ela incorpora uma sensualidade e uma alegria de viver que estão profundamente conectadas à cultura popular e ao ambiente tropical do Rio de Janeiro da época. A sua ligação com a música, especialmente o samba e a dança, destaca a importância da cultura afro-brasileira como elemento de resistência e identidade no contexto social do século XIX.
  2. Papel na comunidade do cortiço: Rita é uma figura central no cortiço. A sua casa é frequentemente palco de festas, onde ela canta, dança e atrai as atenções com o seu carisma. Esses momentos de celebração ajudam a solidificar o sentimento de comunidade entre os moradores, ao mesmo tempo que revelam as tensões sociais e económicas presentes no cortiço. Rita simboliza a liberdade e a expressão, mas também é alvo de fofocas e críticas, refletindo o moralismo da sociedade da época.
  3. Relações interpessoais: Rita é uma mulher independente e assertiva, características que fazem com que se destaque num ambiente marcado por relações patriarcais. A relação que mantém com Firmo é caracterizada pela paixão e por conflitos, representando um tipo de ligação intensa e volátil comum entre as camadas populares. Ela também exerce uma influência magnética sobre outros homens no cortiço, como Jerónimo, despertando desejos que acabam por alterar a dinâmica entre as personagens.
  4. Representação social: Enquanto personagem, Baiana é um símbolo da miscigenação brasileira e da tensão entre as diferentes classes e culturas. Ela desafia padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade da época ao viver com espontaneidade e autonomia. No entanto, a sua sexualidade e comportamento livre tornam-na alvo de comentários e julgamentos, revelando os preconceitos e a hipocrisia presentes no ambiente do cortiço.
  5. Conexão com o espaço do cortiço: Rita é uma extensão do cortiço e vice-versa. O empreendimento é um espaço de convivência intensa, repleto de conflitos e solidariedade, e Rita reflete essas características com a sua personalidade vibrante e contraditória. Ela tanto é uma mediadora social, conectando pessoas através da festa e da música, quanto um elemento de discórdia, expondo as tensões latentes entre as personagens.
  6. Crítica Social: A figura de Rita Baiana também serve como instrumento de crítica social de Aluísio Azevedo. Através dela, o autor expõe as desigualdades e os preconceitos estruturais da sociedade brasileira do século XIX, ao mesmo tempo que celebra a força e a resistência cultural das classes populares.

                Em suma, Rita Baiana, no plano social, é muito mais do que uma personagem; ela é um microcosmo do Brasil da época. Através da sua alegria, sensualidade e autenticidade, representa a riqueza e a complexidade cultural do país, mas também evidencia as desigualdades e os conflitos sociais que definem o ambiente em que vive.

 

III: Retrato social

 

  1. Espontaneidade e alegria de viver: Rita Baiana é uma mulher espontânea, que vive o momento presente com intensidade. A sua personalidade é marcada por uma alegria vibrante, que contagia todos ao seu redor. Essa atitude despreocupada reflete uma determinada visão de mundo: ela não se prende às convenções sociais ou morais que a maioria dos personagens tenta seguir.
  2. Paixão e intensidade: Uma característica marcante de Rita é a sua natureza apaixonada. Ela vive as emoções de maneira intensa, seja na alegria das festas que organiza, seja nos conflitos que marcam a relação com Firmo. Essa intensidade torna-a magnética, mas também a coloca em situações de tensão e confronto.
  3. Independência e autonomia: Rita é independente no que respeita à sua maneira de pensar e agir. Embora viva num ambiente fortemente patriarcal, não se sujeita às expectativas de submissão ou decoro que a sociedade da época espera das mulheres. Ela age de acordo com os seus desejos e necessidades, mesmo que isso vá contra as normas.
  4. Manipulação e sedução: Com uma personalidade magnética, Rita tem consciência do impacto que exerce sobre os outros, especialmente os homens. Embora isso não a defina como essencialmente manipuladora, sabe usar o seu charme e sensualidade para conseguir o que deseja ou para afirmar a sua posição num espaço onde as mulheres são frequentemente subjugadas.
  5. Impulsividade e falta de reflexão: Se é verdade que a paixão a define, Rita pode ser impulsiva e pouco reflexiva nas suas ações. Essa impulsividade, muitas vezes, coloca-a em situações de conflito e perigo, como a sua relação tumultuada com Firmo e a capacidade de gerar rivalidades entre outras personagens.

Características Morais

  1. Liberdade moral: Rita Baiana não se apega aos padrões morais rígidos da sociedade da época. Para ela, a vida deve ser vivida com liberdade, alegria e prazer, daí que desafie as normas conservadoras, representando uma visão do mundo mais flexível e moderna.
  2. Fidelidade às próprias emoções: Ela age de forma autêntica e não tenta esconder ou reprimir os sentimentos. Se ama, ama intensamente; se odeia, expressa o seu descontentamento sem hesitação. Essa autenticidade pode ser vista como uma virtude moral, mas também a expõe a críticas e conflitos.
  3. Ambiguidade moral: Rita não é um modelo de virtude segundo os padrões tradicionais. Ela provoca rivalidades, não hesita em usar a sua influência e poder de sedução para atingir objetivos, e, em muitos momentos, parece indiferente às consequências dos seus atos. Essa ambiguidade moral torna-a uma personagem realista e humana, cheia de contradições.
  4. Empatia e solidariedade: Apesar da sua postura independente, Rita demonstra empatia e solidariedade com os outros moradores do cortiço, especialmente nas festas e momentos de celebração. É uma figura que une as pessoas, criando laços de convivência num espaço marcado por tensões sociais e económicas.
  5. Desafiante de convenções: Rita é, moralmente, uma rebelde. Enquanto tal, desafia as normas de género e comportamento feminino da época, recusando submeter-se à passividade ou ao silêncio esperado das mulheres, o que lhe vale a admiração de uns e a crítica de outros, acabando por se tornar uma espécie de espelho dos dilemas sociais da época.

                Em suma, Rita Baiana é, ao mesmo tempo, um símbolo de liberdade e um retrato dos conflitos do seu tempo. A sua alegria contrasta com os momentos de tensão e agressividade que pautam as suas relações, especialmente com Firmo. A sua independência é admirável, mas a impulsividade coloca-a em situações problemáticas. A liberdade moral desafia padrões, mas também a torna alvo de julgamento por parte dos outros.

                Rita Baiana é uma personagem psicologicamente rica e moralmente ambígua. Ela representa a força da liberdade e da autenticidade num mundo opressor, especialmente para as mulheres, mas também os desafios e conflitos que acompanham quem vive à margem das expectativas sociais. Aluísio Azevedo constrói-a como uma mulher de paixões intensas e de espírito indomável, cujo retrato psicológico e moral a torna uma das personagens mais marcantes de O Cortiço.

 

IV. Relação com as outras personagens

 

1. Rita Baiana e Firmo

                A relação entre Rita Baiana e Firmo é marcada por uma paixão intensa e conflituosa. Firmo, um capoeirista de espírito violento e possessivo, sente-se ameaçado pela independência e sensualidade de Rita. Apesar disso, ambos compartilham momentos de cumplicidade e desejo ardente, vivendo uma relação carregada de química, mas também de explosões emocionais.

  • Dinâmica de poder: Firmo tenta exercer controle sobre Rita, mas ela constantemente desafia a sua autoridade, o que gera conflitos frequentes, refletindo uma luta entre o machismo e a independência feminina.
  • Paixão destrutiva: Apesar do magnetismo que existe entre os dois, a relação é tumultuosa, pautada por momentos de ciúme, violência e reconciliação, simbolizando a instabilidade das relações amorosas no cortiço.

2. Rita Baiana e Jerónimo

                Jerónimo, um português trabalhador e inicialmente moralista, é profundamente afetado pela presença de Rita Baiana. Ele, que representava os valores europeus de disciplina e recato, é atraído pela sua energia vibrante e pela sensualidade tropical, o que o leva a uma transformação radical.

  • Símbolo de transformação: Rita desperta em Jerónimo uma paixão arrebatadora que desafia os seus valores iniciais, levando-o a abandonar a esposa, Piedade, e a aproximar-se do estilo de vida do cortiço.
  • Conflito gerado: O interesse de Jerónimo por Rita exacerba a rivalidade com Firmo, culminando em tragédias que expõem o lado violento e instintivo das personagens.
  • Impacto psicológico: A relação evidencia o poder de Rita como uma força que transcende padrões culturais e morais, enquanto também reflete o impacto da cultura brasileira sobre os imigrantes.

3. Rita Baiana e Piedade

                A relação entre Rita Baiana e Piedade é marcada pela tensão e contraste. Piedade, a esposa de Jerónimo, representa os valores tradicionais da moralidade europeia e o papel submisso da mulher na sociedade patriarcal.

  • Contraste cultural: Enquanto Rita é livre e desinibida, Piedade é recatada e emocionalmente dependente de Jerónimo. Esse contraste acentua o impacto da relação entre ambos e a crise de identidade de Piedade.
  • Rivalidade implícita: Apesar de não haver confrontos diretos entre as duas, a presença de Rita destrói a estabilidade emocional e a vida conjugal de Piedade, tornando-a uma rival indireta.

4. Rita Baiana e os moradores do cortiço

                Rita Baiana exerce uma influência coletiva sobre os moradores do cortiço: é um ponto de união, mas também de conflito, dependendo das circunstâncias.

  • Figura central nas festas: Rita organiza festas animadas e danças que promovem a integração entre os moradores, criando momentos de alegria e descontração no ambiente tenso do cortiço.
  • Objeto de admiração e mexericos: A sua sensualidade e independência fazem dela uma figura admirada por uns e criticada por outros, especialmente pelas mulheres mais conservadoras, que veem no seu comportamento uma ameaça aos valores tradicionais.
  • Catalisadora de tensões: A sua presença amplifica os conflitos entre personagens masculinas, como Jerónimo e Firmo, e entre as mulheres, que a invejam ou reprovam sua conduta.

5. Rita Baiana e o cortiço (como espaço coletivo)

                Rita Baiana não se relaciona apenas com os indivíduos, mas também com o próprio ambiente do cortiço, sendo uma representação viva da sua essência.

  • Espelho do cortiço: Assim como o cortiço é um espaço de miscigenação cultural, contrastes e conflitos, Rita também encarna essas características. A sua vivacidade, contradições e liberdade refletem a dinâmica caótica e vibrante do lugar.
  • Contribuição para a identidade do espaço: Rita transforma o cortiço num ambiente de celebração cultural, com festas e música, mas também num espaço de tensões, reforçando a narrativa de Aluísio Azevedo sobre as forças sociais em jogo naquele microcosmo.

 

                As relações de Rita Baiana com as outras personagens de O Cortiço não são apenas interações individuais, mas também representações simbólicas de questões sociais, culturais e psicológicas. A sua sensualidade e liberdade de espírito provocam admiração, desejo, inveja e conflito, desestabilizando estruturas tradicionais e expondo as fragilidades das relações humanas. Rita é, ao mesmo tempo, um catalisador de mudança e uma figura de resistência contra as normas impostas, fazendo dela um dos principais motores da trama e uma personagem inesquecível.

 

V. Representatividade social

 

1. Representatividade Cultural

                Rita Baiana é a personificação da cultura afro-brasileira e tropical, contrastando diretamente com os valores europeus representados por personagens como Jerónimo e Piedade.

  • Símbolo da miscigenação: A origem mestiça reflete a realidade do Brasil do século XIX, um país marcado pela convivência (e conflitos) entre diferentes «raças» e culturas.
  • Ligação à cultura popular: Rita está profundamente ligada à música, dança e festas, elementos que representam a riqueza e vitalidade da cultura brasileira, especialmente as influências africanas.
  • Contraste com o estrangeiro: A energia vibrante e a sensualidade contrapõem-se à rigidez e à contenção dos valores europeus, sendo um agente de transformação, como, por exemplo, na mudança de Jerónimo.

2. Representatividade Feminina

                Rita Baiana é uma mulher que desafia os padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade patriarcal do século XIX.

  • Mulher independente: Numa época em que se esperava que as mulheres fossem submissas e moralmente irrepreensíveis, Rita age de acordo com os próprios desejos e emoções. Ela não é definida por um homem ou pelo papel numa família.
  • Figura de resistência: Rita desafia o moralismo conservador dos moradores do cortiço, recusando submeter-se às críticas ou aos julgamentos que recebe por causa do seu comportamento livre.
  • Contradição de papéis femininos: Enquanto mulheres como Piedade representam a submissão e a fragilidade emocional, Rita é o oposto: forte, autêntica e disposta a viver conforme as próprias regras.

3. Representatividade Social

                Rita Baiana é uma representação vívida da classe trabalhadora e das camadas populares, inserida no contexto do cortiço como um microcosmo da sociedade brasileira.

  • Figura comunitária: Rita é central na vida social do cortiço, organizando festas e unindo os moradores em momentos de celebração.
  • Crítica social: A sua figura ilustra as tensões e hipocrisias da sociedade da época. Apesar de ser admirada pela beleza e alegria, também é alvo de preconceitos e julgamentos morais, evidenciando as contradições da convivência no cortiço.
  • Símbolo da luta de classes: Enquanto outras personagens, como João Romão, aspiram a subir na escala social, Rita aceita a sua condição, vivendo plenamente dentro da realidade do cortiço, mas sem ser submissa a ela.

4. Representatividade no contexto do Naturalismo

                Dentro da estética naturalista que permeia O Cortiço, Rita Baiana é uma representação do instinto, do desejo e da força vital.

  • Exposição dos instintos humanos: Age impulsivamente, seguindo as suas emoções e desejos, alinhando-se com a visão naturalista de que o ser humano é regido por forças instintivas e biológicas.
  • Personificação do meio: O cortiço é um espaço de exuberância e caos, e Rita reflete essas características, sendo tanto um produto quanto um símbolo do ambiente em que vive.
  • Relação com o Determinismo: Através de Rita, Aluísio Azevedo ilustra o modo como o meio social e cultural influencia o comportamento humano, mostrando que as suas ações são moldadas pelas condições de vida no cortiço.

5. Representatividade como agente de transformação

                Rita Baiana desempenha um papel transformador no romance, especialmente em relação às personagens masculinas, como, por exemplo, Jerónimo.

  • Disrupção cultural: A sua presença provoca uma rutura nos valores tradicionais europeus representados por Jerónimo, levando-o a abandonar a sua postura rígida e a entregar-se à paixão e ao estilo de vida do cortiço.
  • Catalisadora de conflitos: Rita é o centro de tensões emocionais e sociais, como a rivalidade entre Jerónimo e Firmo, o que move a trama e expõe os dilemas morais e sociais das personagens.

6. Representatividade no contexto do Brasil oitocentista

                Rita Baiana, enquanto figura mestiça e representante da cultura popular, é um reflexo das contradições do Brasil do século XIX.

  • Símbolo da brasilidade: Ela encapsula os elementos que definem a identidade nacional – a miscigenação, a alegria, a sensualidade, mas também a precariedade e a marginalização.
  • Crítica às desigualdades: A sua posição no cortiço e a forma como é tratada refletem as desigualdades raciais, de género e de classe que estruturavam (e ainda estruturam) a sociedade brasileira.

 

                Em suma, Rita Baiana transcende a sua condição de personagem para se tornar um símbolo dentro da obra. Ela representa o Brasil mestiço, vibrante e contraditório, mas também as tensões sociais e culturais da época. Como mulher, desafia os padrões impostos, enquanto membro da classe popular, expõe as desigualdades, e, como figura cultural, celebra a riqueza da identidade brasileira. Aluísio Azevedo usa Rita para ilustrar as complexidades da vida no cortiço, tornando-a uma peça central na crítica social e no retrato coletivo do romance.

Caracterização de Miranda

    Miranda, uma das personagens de O Cortiço, é o típico comerciante português cuja descrição física reflete o seu estatuto social, caráter e contexto histórico. Embora Aluísio Azevedo não aprofunde o seu retrato físico, os traços destacados ao longo do romance ajudam a compor a imagem de um homem representativo da burguesia em ascensão na época.

I. Traços Físicos:
 
  1. Estatura Mediana: Miranda é descrito como um homem de porte médio, sem traços que o distingam no que diz respeito à altura ou imponência. A sua presença física está mais ligada à seriedade do que à força ou à beleza.
  2. Fisionomia séria e controlada: Ele apresenta um semblante grave, com feições alinhadas com a sua personalidade rígida e metódica. Aa expressão facial tende a ser severa, indicando preocupação constante com as aparências e o status social.
  3. Traços europeus: Como imigrante português, Miranda possui características típicas da etnia lusitana, como, por exemplo, pele clara e traços que não são descritos como belos, mas sim comuns e adequados ao seu estatuto de comerciante.
  4. Cabelo bem tratado: Embora o romance não se detenha na descrição específica do cabelo, pode deduzir-se que tem uma aparência limpa e cuidada, em consonância com a preocupação com a imagem pública.
  5. Postura rígida e formal: O seu comportamento e a sua postura refletem um homem que valoriza o autocontrole e a disciplina e que tende a exibir uma postura ereta, denotando seriedade e respeito.
  6. Vestuário elegante: Miranda veste-se de forma sóbria e alinhada, utilizando roupas que simbolizam a sua posição social como comerciante burguês, mas sem ostentação. Essa escolha reflete a tentativa de ser reconhecido como um homem respeitável e bem-sucedido.
  7. Físico não atlético: O romance não contém grandes referências a atributos físicos que sugiram vigor ou força, o que indicia que Miranda não é um homem de trabalho físico, mas, sim, um indivíduo dedicado à vida comercial e ao mundo das relações sociais.

                Em suma, a aparência da personagem está intimamente ligada à sua busca por respeitabilidade e ascensão social. Ele é o retrato do português típico da época, que migra para o Brasil em busca de oportunidades e constrói a sua identidade em torno do trabalho e da moral burguesa. Esses traços físicos, embora simples, servem para reforçar a sua personalidade e o contraste com outras personagens do romance, como João Romão, mais brutal e ambicioso. Assim, a sua figura física não é chamativa, mas funcional, coerente com a mensagem naturalista da narrativa, que utiliza o físico das personagens como extensão das suas condições sociais e psicológicas.

 
II. Retrato social

1. Classe social e ocupação profissional:
  • Miranda é um comerciante português bem-sucedido, representante da pequena burguesia. Ele é proprietário de um armazém, o que lhe garante uma posição económica estável e distingue-o socialmente no bairro onde vive.
  • A atividade profissional reflete a figura do imigrante português que enriquece por meio do comércio, um estereótipo frequente na literatura da época.
2. Aspiração à ascensão social:
  • Um dos traços mais marcantes de Miranda é a constante preocupação que manifesta em manter e elevar o seu status social. Assim, procura afastar-se da rusticidade e vulgaridade que percebe nos vizinhos, como João Romão, e almeja ser reconhecido como um homem respeitável e distinto.
  • Para reforçar essa imagem, Miranda valoriza uma vida organizada e pautada pelas normas da sociedade burguesa.
  • No entanto, embora se situe, socialmente, num patamar superior ao dos operários e moradores do cortiço, Miranda não ocupa um lugar elevado na hierarquia social. Ele sente-se desconfortável ao perceber que, mesmo sendo proprietário e comerciante, a sua posição é precária em comparação com os verdadeiros ricos ou com os aristocratas que tenta imitar.
3. Casamento como ferramenta de ascensão social:
  • A relação com Estela, sua esposa, é uma extensão da sua estratégia social. De facto, casou-se com ela por interesse, visando consolidar a sua respeitabilidade, mesmo que o casamento seja infeliz. Estela despreza-o e é infiel, o que reforça o contraste entre a aparência de ordem que Miranda tenta projetar e a realidade do fracasso pessoal.
4. Relação com outras personagens:
  • Miranda tenta diferenciar-se de João Romão, o ambicioso e grosseiro proprietário do cortiço, que representa o oposto da moral e da ordem que procura. Contudo, o contraste entre os dois também evidencia a hipocrisia e as limitações de Miranda, que, apesar da sua pretensão, é prisioneiro da própria mediocridade.
  • A interação com moradores do cortiço e com figuras de status inferior demonstra uma atitude condescendente e a sua tentativa de distanciar-se da vulgaridade.

III. Caracterização psicológico-moral

  1. Rigidez e Formalidade:
    • Miranda é uma pessoa metódica e rígida nas suas ações e decisões, o que se espelha na preocupação excessiva com as normas e os padrões sociais. Ele não suporta a desordem, seja no trabalho ou na vida pessoal, e a rigidez reflete o desejo de controlar a sua realidade.
  2. Insegurança Social:
    • Apesar de seu status enquanto comerciante bem-sucedido, Miranda sente-se constantemente ameaçado pela posição intermediária que ocupa na hierarquia social. Ele teme cair no mesmo nível dos trabalhadores e vizinhos mais humildes e nutre uma ansiedade constante em reafirmar sua superioridade.
  3. Aparência versus realidade:
    • A sua personalidade é marcada por um grande esforço em aparentar decoro e respeitabilidade. No entanto, por trás dessa fachada, mostra-se um homem infeliz, consciente da superficialidade das suas conquistas e da hipocrisia que caracteriza a sua existência, especialmente no que respeita ao casamento.
  4. Passividade e conformismo:
    • Miranda tem uma personalidade passiva, especialmente no âmbito pessoal. Apesar de ser humilhado por Estela, sua esposa, aceita a situação e evita confrontá-la para não comprometer a imagem pública. Essa passividade reflete a incapacidade de enfrentar conflitos emocionais de forma direta.
  5. Orgulho ferido:
    • Internamente, Miranda sofre com o desprezo da esposa e com a consciência de impotência diante de João Romão, cuja ambição e agressividade desafiam a sua postura formal. Ele sente-se diminuído por não ter a mesma determinação brutal para conquistar mais poder e riqueza.
  6. Respeito pelas regras:
    • Psicologicamente, Miranda é moldado por um profundo respeito pelas normas sociais e morais. Ele acredita que o cumprimento das regras é essencial para preservar a sua posição, mesmo que isso implique a repressão de desejos ou emoções.
  1. Moralidade aparente:
    • Miranda tenta projetar uma imagem de homem moralmente correto e íntegro. Defende a ordem, a disciplina e as boas maneiras. Contudo, a sua moralidade é superficial, mais voltada para agradar à sociedade do que para refletir uma verdadeira virtude interna.
  2. Hipocrisia:
    • Moralmente, Miranda é um hipócrita. Embora exija decoro e comportamento exemplar dos outros, ignora os problemas éticos que se manifestam na própria casa, como a infidelidade da esposa. A sua complacência revela a importância maior que dá às aparências do que à ética verdadeira.
  3. Egoísmo social:
    • Apesar de aparentar ser generoso ou justo, as ações são frequentemente motivadas por interesses pessoais. Evita envolver-se em questões que não tragam benefícios diretos para a sua imagem ou status, demonstrando uma visão moral utilitarista.
  4. Falta de coragem moral:
    • Miranda não demonstra força para confrontar situações que coloquem a sua integridade à prova. A aceitação passiva da infelicidade conjugal e a incapacidade para se impor perante João Romão revelam uma fraqueza moral significativa.
  5. Conservadorismo moral:
    • Ele é profundamente conservador, apegado a valores tradicionais que sustentam a estrutura social e hierárquica. Essa moralidade rígida e antiquada impede-o de se adaptar a mudanças ou de lidar com situações fora da sua zona de conforto.
  6.  Mentalidade conservadora e preocupação com as aparências:
o    Miranda é conservador e rígido no que concerne à sua visão do mundo, refletindo os valores tradicionais da burguesia portuguesa. Por isso, valoriza a moralidade pública, mas a sua vida privada, marcada pela infelicidade conjugal, revela um contraste entre a fachada que procura manter e a realidade.
o    Está constantemente preocupado com as aparências, evitando escândalos e procurando manter uma imagem de decência e ordem.
 
IV. Relação com outras personagens
 
Relação com João Romão:
  1. Rivalidade Velada:
    • João Romão é o proprietário do cortiço, um homem ambicioso e brutal que almeja ascender socialmente a qualquer custo. Miranda, embora financeiramente estável, sente-se desconfortável com a ascensão de Romão, vendo-o como uma ameaça à ordem e aos valores que acredita defender.
    • A relação entre os dois é marcada pelo contraste entre a astúcia brutal de João e a formalidade conservadora de Miranda. Apesar de desprezar a sua grosseria, Miranda reconhece e teme a sua capacidade de prosperar e acumular riqueza.
  2. Superioridade Social:
    • Miranda tenta colocar-se como superior a João Romão, enfatizando a sua educação e modos refinados. No entanto, o pragmatismo e a determinação de João muitas vezes fazem Miranda sentir-se inferior e frustrado.

Relação com Estela (a esposa):
  1. Casamento de conveniência:
    • Miranda casou-se com Estela não por amor, mas por interesse social, pois esperava que o matrimónio consolidasse a sua posição como um homem respeitável. Neste cenário, não é de estranhar que a relação seja marcada pela frieza e infelicidade.
  2. Desprezo e Infidelidade:
    • Estela despreza Miranda, considerando-o passivo e medíocre. Trai-o abertamente, demonstrando a sua insatisfação com o casamento. Apesar disso, ele opta por ignorar as infidelidades para preservar a imagem pública.
  3. Passividade de Miranda:
    • Como se depreende do que já foi dito, evita confrontar Estela ou resolver os problemas conjugais, preferindo manter as aparências. Assim, a relação entre ambos reflete a hipocrisia e a falta de coragem moral de Miranda, que prioriza a reputação acima da felicidade pessoal.

Relação com os moradores do cortiço:
  1. Distanciamento social:
    • Miranda tenta manter distância dos moradores do cortiço, que representam a classe trabalhadora e a "vulgaridade" que ele despreza. Ele vê essas pessoas como inferiores, um retrato de tudo a que não deseja estar associado.
  2. Apatia e desprezo:
    • Por outro lado, não demonstra interesse genuíno pelos problemas dos habitantes do cortiço e interage com eles apenas quando necessário, reforçando a barreira social que os separa socialmente.

Relação com Firmo e Léonie:
  1. Indiferença e Condescendência:
    • Miranda, embora não se envolva diretamente com essas personagens, considera figuras como Firmo (um capoeirista) e Léonie (uma prostituta) como representações da decadência e vulgaridade que procura evitar.

Relação com outros burgueses:
  1. Tentativa de aceitação:
    • Miranda procura ser aceite pelos membros da alta burguesia e aristocracia, tentando imitar os seus modos e valores. No entanto, frequentemente é olhado como um aspirante sem o refinamento ou a origem necessária para ser totalmente integrado.
  2. Falta de identificação:
    • Apesar das suas aspirações, Miranda não consegue sentir-se confortável entre as classes superiores, demonstrando a sua posição incómoda entre o cortiço e a elite.

V. Representatividade social

1. Representação da burguesia em ascensão:
  • Miranda é o arquétipo do pequeno burguês, típico do Brasil do século XIX, que procura firmar-se como respeitável e distinto, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta as limitações impostas pela sua origem humilde e pela sua posição intermediária na hierarquia social.
  • Ele reflete os valores da burguesia emergente: o apego às aparências, o conservadorismo moral e o desejo de se distanciar das classes populares enquanto almeja ser aceite pela elite.

2. Contraponto à ascensão bruta de João Romão:
  • Miranda é o oposto de João Romão, cuja ascensão está baseada na ambição desmedida, no trabalho incansável e na falta de escrúpulos.
    • Enquanto Miranda tenta preservar uma imagem de decoro e civilidade, João Romão é movido por pragmatismo e brutalidade.
    • Essa oposição ilustra duas faces da ascensão social no Brasil do período: a tentativa de manter uma moralidade (ainda que hipócrita) e a conquista sem limites éticos.

3. Crítica à hipocrisia social:
  • Miranda simboliza a hipocrisia da sociedade burguesa, que valoriza mais as aparências do que a verdadeira moralidade:
    • Ele mantém um casamento de conveniência com Estela, ignorando a sua infidelidade para não comprometer a imagem pública.
    • Finge desprezar João Romão, mas teme a sua capacidade de o superar economicamente.
    • Vive uma vida de aparente ordem, mas internamente é inseguro, infeliz e cobarde.

4. Mediação entre classes:
  • Miranda situa-se entre o cortiço (classe trabalhadora) e a aristocracia (classe alta), simbolizando uma classe intermediária que aspira à nobreza, mas teme ser confundida com os pobres.
    • Ele tenta distanciar-se dos moradores do cortiço, mas, ao mesmo tempo, a sua origem e posição tornam-no vulnerável às críticas da elite.

5. Função crítica no romance:
  • Através da figura de Miranda, Aluísio Azevedo critica:
    • A superficialidade das aspirações burguesas: o desejo de Miranda por respeitabilidade não o torna mais feliz ou virtuoso, apenas reforça a sua hipocrisia.
    • A ineficácia da rigidez moral: a tentativa de se alinhar com os valores da alta sociedade fracassa, evidenciando a fragilidade da sua posição.
    • A ilusão da ascensão social pacífica: Enquanto João Romão usa métodos brutais para subir na vida, Miranda, que adota uma abordagem passiva, é engolido pelas circunstâncias e limitado pelas suas inseguranças.

6. Representatividade no contexto do Naturalismo:
  • No contexto do Naturalismo, Miranda é uma figura que ilustra como o meio social e as condições históricas moldam o indivíduo. Ele é tanto produto quanto prisioneiro da sua classe social, incapaz de transcender os limites impostos pela hierarquia e pelos valores do seu tempo.
  • A sua posição social e as suas ações revelam como as forças externas (como a economia e a moralidade burguesa) influenciam comportamentos e relações.

Conclusão:

                Miranda representa a mediocridade e a fragilidade da burguesia média em O Cortiço. A sua existência é marcada pela busca incessante por respeitabilidade e por uma rigidez que não consegue sustentar internamente. Ele é uma peça-chave para a crítica social de Aluísio Azevedo, expondo as contradições e os conflitos de uma classe que tenta ascender sem ter a força de caráter ou os recursos da elite, e que teme profundamente ser confundida com os trabalhadores.

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