Miranda,
uma das personagens de O Cortiço, é o típico comerciante português cuja
descrição física reflete o seu estatuto social, caráter e contexto histórico.
Embora Aluísio Azevedo não aprofunde o seu retrato físico, os traços destacados
ao longo do romance ajudam a compor a imagem de um homem representativo da
burguesia em ascensão na época.
I. Traços Físicos:
- Estatura
Mediana: Miranda é descrito como um homem de porte médio, sem traços que
o distingam no que diz respeito à altura ou imponência. A sua presença
física está mais ligada à seriedade do que à força ou à beleza.
- Fisionomia
séria e controlada: Ele apresenta um semblante grave, com feições
alinhadas com a sua personalidade rígida e metódica. Aa expressão facial
tende a ser severa, indicando preocupação constante com as aparências e o status
social.
- Traços
europeus: Como imigrante português, Miranda possui características
típicas da etnia lusitana, como, por exemplo, pele clara e traços que não
são descritos como belos, mas sim comuns e adequados ao seu estatuto de
comerciante.
- Cabelo
bem tratado: Embora o romance não se detenha na descrição específica do
cabelo, pode deduzir-se que tem uma aparência limpa e cuidada, em
consonância com a preocupação com a imagem pública.
- Postura
rígida e formal: O seu comportamento e a sua postura refletem um homem
que valoriza o autocontrole e a disciplina e que tende a exibir uma
postura ereta, denotando seriedade e respeito.
- Vestuário
elegante: Miranda veste-se de forma sóbria e alinhada, utilizando
roupas que simbolizam a sua posição social como comerciante burguês, mas
sem ostentação. Essa escolha reflete a tentativa de ser reconhecido como
um homem respeitável e bem-sucedido.
- Físico
não atlético: O romance não contém grandes referências a atributos
físicos que sugiram vigor ou força, o que indicia que Miranda não é um
homem de trabalho físico, mas, sim, um indivíduo dedicado à vida comercial
e ao mundo das relações sociais.
Em suma,
a aparência da personagem está intimamente ligada à sua busca por
respeitabilidade e ascensão social. Ele é o retrato do português típico da
época, que migra para o Brasil em busca de oportunidades e constrói a sua
identidade em torno do trabalho e da moral burguesa. Esses traços físicos,
embora simples, servem para reforçar a sua personalidade e o contraste com outras
personagens do romance, como João Romão, mais brutal e ambicioso. Assim, a sua figura
física não é chamativa, mas funcional, coerente com a mensagem naturalista da
narrativa, que utiliza o físico das personagens como extensão das suas
condições sociais e psicológicas.
II. Retrato social
1. Classe social e ocupação profissional:
- Miranda
é um comerciante português bem-sucedido, representante da pequena
burguesia. Ele é proprietário de um armazém, o que lhe garante uma posição
económica estável e distingue-o socialmente no bairro onde vive.
- A
atividade profissional reflete a figura do imigrante português que
enriquece por meio do comércio, um estereótipo frequente na literatura da
época.
2. Aspiração à ascensão social:
- Um
dos traços mais marcantes de Miranda é a constante preocupação que
manifesta em manter e elevar o seu status social. Assim, procura
afastar-se da rusticidade e vulgaridade que percebe nos vizinhos, como
João Romão, e almeja ser reconhecido como um homem respeitável e distinto.
- Para
reforçar essa imagem, Miranda valoriza uma vida organizada e pautada pelas
normas da sociedade burguesa.
- No
entanto, embora se situe, socialmente, num patamar superior ao dos
operários e moradores do cortiço, Miranda não ocupa um lugar elevado na
hierarquia social. Ele sente-se desconfortável ao perceber que, mesmo
sendo proprietário e comerciante, a sua posição é precária em comparação
com os verdadeiros ricos ou com os aristocratas que tenta imitar.
3. Casamento como ferramenta de ascensão social:
- A
relação com Estela, sua esposa, é uma extensão da sua estratégia social.
De facto, casou-se com ela por interesse, visando consolidar a sua
respeitabilidade, mesmo que o casamento seja infeliz. Estela despreza-o e
é infiel, o que reforça o contraste entre a aparência de ordem que Miranda
tenta projetar e a realidade do fracasso pessoal.
4. Relação com outras personagens:
- Miranda
tenta diferenciar-se de João Romão, o ambicioso e grosseiro proprietário
do cortiço, que representa o oposto da moral e da ordem que procura.
Contudo, o contraste entre os dois também evidencia a hipocrisia e as
limitações de Miranda, que, apesar da sua pretensão, é prisioneiro da
própria mediocridade.
- A
interação com moradores do cortiço e com figuras de status inferior
demonstra uma atitude condescendente e a sua tentativa de distanciar-se da
vulgaridade.
III. Caracterização psicológico-moral
- Rigidez
e Formalidade:
- Miranda
é uma pessoa metódica e rígida nas suas ações e decisões, o que se espelha
na preocupação excessiva com as normas e os padrões sociais. Ele não
suporta a desordem, seja no trabalho ou na vida pessoal, e a rigidez
reflete o desejo de controlar a sua realidade.
- Insegurança
Social:
- Apesar
de seu status enquanto comerciante bem-sucedido, Miranda sente-se
constantemente ameaçado pela posição intermediária que ocupa na
hierarquia social. Ele teme cair no mesmo nível dos trabalhadores e
vizinhos mais humildes e nutre uma ansiedade constante em reafirmar sua
superioridade.
- Aparência
versus realidade:
- A
sua personalidade é marcada por um grande esforço em aparentar decoro e
respeitabilidade. No entanto, por trás dessa fachada, mostra-se um homem
infeliz, consciente da superficialidade das suas conquistas e da
hipocrisia que caracteriza a sua existência, especialmente no que
respeita ao casamento.
- Passividade
e conformismo:
- Miranda
tem uma personalidade passiva, especialmente no âmbito pessoal. Apesar de
ser humilhado por Estela, sua esposa, aceita a situação e evita
confrontá-la para não comprometer a imagem pública. Essa passividade
reflete a incapacidade de enfrentar conflitos emocionais de forma direta.
- Orgulho
ferido:
- Internamente,
Miranda sofre com o desprezo da esposa e com a consciência de impotência
diante de João Romão, cuja ambição e agressividade desafiam a sua postura
formal. Ele sente-se diminuído por não ter a mesma determinação brutal
para conquistar mais poder e riqueza.
- Respeito
pelas regras:
- Psicologicamente,
Miranda é moldado por um profundo respeito pelas normas sociais e morais.
Ele acredita que o cumprimento das regras é essencial para preservar a sua
posição, mesmo que isso implique a repressão de desejos ou emoções.
- Moralidade
aparente:
- Miranda
tenta projetar uma imagem de homem moralmente correto e íntegro. Defende a
ordem, a disciplina e as boas maneiras. Contudo, a sua moralidade é
superficial, mais voltada para agradar à sociedade do que para refletir
uma verdadeira virtude interna.
- Hipocrisia:
- Moralmente,
Miranda é um hipócrita. Embora exija decoro e comportamento exemplar dos
outros, ignora os problemas éticos que se manifestam na própria casa,
como a infidelidade da esposa. A sua complacência revela a importância
maior que dá às aparências do que à ética verdadeira.
- Egoísmo
social:
- Apesar
de aparentar ser generoso ou justo, as ações são frequentemente motivadas
por interesses pessoais. Evita envolver-se em questões que não tragam
benefícios diretos para a sua imagem ou status, demonstrando uma
visão moral utilitarista.
- Falta
de coragem moral:
- Miranda
não demonstra força para confrontar situações que coloquem a sua
integridade à prova. A aceitação passiva da infelicidade conjugal e a
incapacidade para se impor perante João Romão revelam uma fraqueza moral
significativa.
- Conservadorismo
moral:
- Ele
é profundamente conservador, apegado a valores tradicionais que sustentam
a estrutura social e hierárquica. Essa moralidade rígida e antiquada
impede-o de se adaptar a mudanças ou de lidar com situações fora da sua
zona de conforto.
- Mentalidade conservadora e preocupação
com as aparências:
o Miranda
é conservador e rígido no que concerne à sua visão do mundo, refletindo os
valores tradicionais da burguesia portuguesa. Por isso, valoriza a moralidade
pública, mas a sua vida privada, marcada pela infelicidade conjugal, revela um
contraste entre a fachada que procura manter e a realidade.
o Está
constantemente preocupado com as aparências, evitando escândalos e procurando
manter uma imagem de decência e ordem.
IV. Relação com outras personagens
Relação com João Romão:
- Rivalidade
Velada:
- João
Romão é o proprietário do cortiço, um homem ambicioso e brutal que almeja
ascender socialmente a qualquer custo. Miranda, embora financeiramente
estável, sente-se desconfortável com a ascensão de Romão, vendo-o como
uma ameaça à ordem e aos valores que acredita defender.
- A
relação entre os dois é marcada pelo contraste entre a astúcia brutal de
João e a formalidade conservadora de Miranda. Apesar de desprezar a sua grosseria,
Miranda reconhece e teme a sua capacidade de prosperar e acumular
riqueza.
- Superioridade
Social:
- Miranda
tenta colocar-se como superior a João Romão, enfatizando a sua educação e
modos refinados. No entanto, o pragmatismo e a determinação de João
muitas vezes fazem Miranda sentir-se inferior e frustrado.
Relação com Estela (a esposa):
- Casamento
de conveniência:
- Miranda
casou-se com Estela não por amor, mas por interesse social, pois esperava
que o matrimónio consolidasse a sua posição como um homem respeitável.
Neste cenário, não é de estranhar que a relação seja marcada pela frieza
e infelicidade.
- Desprezo
e Infidelidade:
- Estela
despreza Miranda, considerando-o passivo e medíocre. Trai-o abertamente,
demonstrando a sua insatisfação com o casamento. Apesar disso, ele opta
por ignorar as infidelidades para preservar a imagem pública.
- Passividade
de Miranda:
- Como
se depreende do que já foi dito, evita confrontar Estela ou resolver os
problemas conjugais, preferindo manter as aparências. Assim, a relação entre
ambos reflete a hipocrisia e a falta de coragem moral de Miranda, que
prioriza a reputação acima da felicidade pessoal.
Relação com os moradores do cortiço:
- Distanciamento
social:
- Miranda
tenta manter distância dos moradores do cortiço, que representam a classe
trabalhadora e a "vulgaridade" que ele despreza. Ele vê essas
pessoas como inferiores, um retrato de tudo a que não deseja estar
associado.
- Apatia
e desprezo:
- Por
outro lado, não demonstra interesse genuíno pelos problemas dos
habitantes do cortiço e interage com eles apenas quando necessário,
reforçando a barreira social que os separa socialmente.
Relação com Firmo e Léonie:
- Indiferença
e Condescendência:
- Miranda,
embora não se envolva diretamente com essas personagens, considera
figuras como Firmo (um capoeirista) e Léonie (uma prostituta) como
representações da decadência e vulgaridade que procura evitar.
Relação com outros burgueses:
- Tentativa
de aceitação:
- Miranda
procura ser aceite pelos membros da alta burguesia e aristocracia,
tentando imitar os seus modos e valores. No entanto, frequentemente é olhado
como um aspirante sem o refinamento ou a origem necessária para ser
totalmente integrado.
- Falta
de identificação:
- Apesar
das suas aspirações, Miranda não consegue sentir-se confortável entre as
classes superiores, demonstrando a sua posição incómoda entre o cortiço e
a elite.
V. Representatividade social
1. Representação da burguesia em ascensão:
- Miranda
é o arquétipo do pequeno burguês, típico do Brasil do século XIX, que procura
firmar-se como respeitável e distinto, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta
as limitações impostas pela sua origem humilde e pela sua posição
intermediária na hierarquia social.
- Ele
reflete os valores da burguesia emergente: o apego às aparências, o
conservadorismo moral e o desejo de se distanciar das classes populares
enquanto almeja ser aceite pela elite.
2. Contraponto à ascensão bruta de João Romão:
- Miranda
é o oposto de João Romão, cuja ascensão está baseada na ambição desmedida,
no trabalho incansável e na falta de escrúpulos.
- Enquanto
Miranda tenta preservar uma imagem de decoro e civilidade, João Romão é
movido por pragmatismo e brutalidade.
- Essa
oposição ilustra duas faces da ascensão social no Brasil do período: a
tentativa de manter uma moralidade (ainda que hipócrita) e a conquista
sem limites éticos.
3. Crítica à hipocrisia social:
- Miranda
simboliza a hipocrisia da sociedade burguesa, que valoriza mais as
aparências do que a verdadeira moralidade:
- Ele
mantém um casamento de conveniência com Estela, ignorando a sua
infidelidade para não comprometer a imagem pública.
- Finge
desprezar João Romão, mas teme a sua capacidade de o superar
economicamente.
- Vive
uma vida de aparente ordem, mas internamente é inseguro, infeliz e cobarde.
4. Mediação entre classes:
- Miranda
situa-se entre o cortiço (classe trabalhadora) e a aristocracia (classe
alta), simbolizando uma classe intermediária que aspira à nobreza, mas
teme ser confundida com os pobres.
- Ele
tenta distanciar-se dos moradores do cortiço, mas, ao mesmo tempo, a sua
origem e posição tornam-no vulnerável às críticas da elite.
5. Função crítica no romance:
- Através
da figura de Miranda, Aluísio Azevedo critica:
- A
superficialidade das aspirações burguesas: o desejo de Miranda por
respeitabilidade não o torna mais feliz ou virtuoso, apenas reforça a sua
hipocrisia.
- A
ineficácia da rigidez moral: a tentativa de se alinhar com os valores
da alta sociedade fracassa, evidenciando a fragilidade da sua posição.
- A
ilusão da ascensão social pacífica: Enquanto João Romão usa métodos
brutais para subir na vida, Miranda, que adota uma abordagem passiva, é
engolido pelas circunstâncias e limitado pelas suas inseguranças.
6. Representatividade no contexto do Naturalismo:
- No
contexto do Naturalismo, Miranda é uma figura que ilustra como o
meio social e as condições históricas moldam o indivíduo. Ele é tanto
produto quanto prisioneiro da sua classe social, incapaz de transcender os
limites impostos pela hierarquia e pelos valores do seu tempo.
- A sua
posição social e as suas ações revelam como as forças externas (como a
economia e a moralidade burguesa) influenciam comportamentos e relações.
Conclusão:
Miranda
representa a mediocridade e a fragilidade da burguesia média em O Cortiço.
A sua existência é marcada pela busca incessante por respeitabilidade e por uma
rigidez que não consegue sustentar internamente. Ele é uma peça-chave para a
crítica social de Aluísio Azevedo, expondo as contradições e os conflitos de
uma classe que tenta ascender sem ter a força de caráter ou os recursos da
elite, e que teme profundamente ser confundida com os trabalhadores.