Português: 24/12/24

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A primeira árvore de Natal


A rainha Vitória, o príncipe Alberto e os filhos
reúnem-se à volta de uma árvore de Natal, em Dezembro de 1848.
Museu Webster. Domínio público

    O primeiro registo escrito de uma árvore de Natal decorada vem de Riga, na Letónia, em 1510. Os homens do grémio dos comerciantes locais decoraram uma árvore com rosas artificiais, dançaram à volta dela no mercado e depois atearam-lhe fogo. A rosa foi utilizada durante muitos anos e é considerada um símbolo da Virgem Maria.
    Há outra lenda que diz que foi Martinho Lutero, o reformador religioso alemão, quem inventou a árvore de Natal. Segundo a história, numa noite de inverno de 1536, Lutero passeava por um pinhal perto da sua casa em Wittenberg quando, de repente, olhou para cima e viu milhares de estrelas a brilhar como jóias entre os ramos das árvores. Esta visão maravilhosa inspirou-o a montar um abeto à luz de velas em sua casa nesse Natal, para lembrar aos seus filhos o céu estrelado de onde veio o seu Salvador.
    Em 1605, as árvores de Natal decoradas já tinham aparecido no Sul da Alemanha. Nesse ano, um escritor anónimo escreveu que, no Natal, os habitantes de Estrasburgo “montavam pinheiros nas salas de estar (...) e penduravam neles rosas cortadas em papel de várias cores, maçãs, bolachas, papel dourado, doces, etc.”.
    Noutras partes da Alemanha, os buxos ou os teixos eram levados para dentro de casa no Natal, em vez dos abetos. E no ducado de Mecklenburg-Strelitz, onde a Rainha Charlotte cresceu, era costume enfeitar um único ramo de teixo. 
    O poeta Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) visitou Mecklenburg-Strelitz em dezembro de 1798, e ficou muito impressionado com a cerimónia do ramo de teixo que aí presenciou, cujo relato seguinte escreveu numa carta à sua mulher, datada de 23 de abril de 1799: 
Na véspera do dia de Natal, uma das salas, na qual os pais não podem entrar, é iluminada pelas crianças; um grande ramo de teixo é fixado sobre uma mesa a uma pequena distância da parede, uma multidão de pequenas velas é fixada no ramo ... e papel colorido, etc., pende e esvoaça dos ramos. Sob este ramo, as crianças colocam os presentes que pretendem oferecer aos pais, escondendo ainda nos bolsos os que pretendem oferecer uns aos outros. Depois, os pais são apresentados e cada um apresenta o seu presentinho; em seguida, tiram os restantes presentes dos bolsos, um a um e entregam-nos com beijos e abraços.
    Quando a jovem Charlotte deixou Mecklenburg-Strelitz em 1761 e foi para Inglaterra para casar com o Rei George III, levou consigo muitos dos costumes que tinha praticado em criança, incluindo o ramo de teixo no Natal. No entanto, na corte inglesa, a Rainha transformou o ritual essencialmente privado do ramo de teixo da sua terra natal numa celebração mais pública que podia ser desfrutada pela sua família, pelos seus amigos e por todos os membros da Casa Real.
    A Rainha Charlotte colocou o seu ramo de teixo não numa pequena sala de estar, mas numa das maiores salas do Palácio de Kew ou do Castelo de Windsor. Assistida pelas suas damas de companhia, foi ela própria a vestir o ramo. E quando todas as velas de cera estavam acesas, toda a corte se juntava e cantava canções de Natal. A festa terminou com a distribuição de presentes do ramo, que incluía artigos como roupas, jóias, pratos, brinquedos e doces.
    Estes ramos de teixo reais causaram grande alarido entre a nobreza, que nunca tinha visto nada do género. Mas não foi nada comparado com a sensação criada em 1800, quando a primeira verdadeira árvore de Natal inglesa apareceu na corte.
    Nesse ano, a Rainha Charlotte planeou organizar uma grande festa de Natal para as crianças de todas as famílias principais de Windsor. E, pensando num mimo especial para oferecer aos mais novos, decidiu subitamente que, em vez do habitual ramo de teixo, iria envasar um teixo inteiro, cobri-lo com enfeites e frutos, enchê-lo de presentes e colocá-lo no meio do chão da sala de visitas do Queen's Lodge. Uma árvore assim, pensou ela, daria um espetáculo encantador para os mais pequenos contemplarem. E foi o que aconteceu. 
    Quando as crianças chegaram à casa, na noite do dia de Natal, e viram aquela árvore mágica, toda enfeitada com enfeites e vidros, acreditaram que tinham sido transportadas diretamente para o país das fadas e a sua felicidade não tinha limites.
    O Dr. John Watkins, um dos biógrafos da Rainha Charlotte, que assistiu à festa, fornece-nos uma descrição vívida desta árvore cativante “dos ramos da qual pendiam cachos de doces, amêndoas e passas em papéis, frutas e brinquedos, dispostos com muito bom gosto; tudo iluminado por pequenas velas de cera”. Acrescenta ainda que “depois de a companhia ter passeado e admirado a árvore, cada criança recebeu uma porção dos doces que ela continha, juntamente com um brinquedo, e todos regressaram a casa muito satisfeitos”.
    As árvores de Natal passaram a ser o centro das atenções nos círculos da classe alta inglesa, onde constituíam o ponto focal de inúmeras reuniões de crianças. Tal como na Alemanha, qualquer árvore de folha perene podia ser arrancada para o efeito: teixos, buxo, pinheiros ou abetos. Mas eram invariavelmente iluminadas por velas, adornadas com bugigangas e rodeadas por pilhas de presentes. As árvores colocadas em cima das mesas tinham também, normalmente, uma Arca de Noé ou uma quinta modelo e numerosos animais de madeira pintados a dourado dispostos entre os presentes, por baixo dos ramos, para dar um encanto suplementar ao cenário. 
    Aquando da morte da Rainha Charlotte, em 1818, a tradição da árvore de Natal estava firmemente estabelecida na sociedade e continuou a florescer durante as décadas de 1820 e 30. A descrição mais completa destas primeiras árvores de Natal inglesas encontra-se no diário de Charles Greville, o espirituoso e culto funcionário do Conselho Privado, que em 1829 passou as férias de Natal em Panshanger, Hertfordshire, casa de Peter, 5º Conde Cowper, e da sua mulher Lady Emily.
    Quando, em dezembro de 1840, o Príncipe Alberto importou vários abetos de Coburgo, a sua terra natal, estes não eram, portanto, uma novidade para a aristocracia. Mas foi só quando periódicos como o Illustrated London News, Cassell's Magazine e The Graphic começaram a retratar e a descrever minuciosamente as árvores de Natal reais todos os anos, de 1845 até ao final da década de 1850, que o costume de montar tais árvores nas suas próprias casas se generalizou em Inglaterra.
    Em 1860, porém, não havia praticamente nenhuma família abastada no país que não ostentasse uma árvore de Natal na sala de estar ou no salão. E todas as festas de Dezembro organizadas para crianças pobres nesta data tinham como principal atração as árvores de Natal carregadas de presentes. O abeto era agora geralmente aceite como a árvore festiva por excelência, mas os ramos destes abetos já não eram cortados em camadas artificiais, como na Alemanha, mas podiam permanecer intactos, com velas e ornamentos dispostos aleatoriamente sobre eles, como atualmente. 

    A primeira árvore de Natal em Portugal foi instalada no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, por D. Fernando II, duque de Saxe-Coburgo-Gotha, o marido de D. Maria II, em meados do século XIX, para recordar a tradição de Natal da sua infância passada na Alemanha. Por volta de 1844, o monarca, nascido em Viena, na Áustria, colocou, no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, uma árvore e enfeitou-a para festejar com os sete filhos e com a rainha, D. Maria II, com quem casou a 9 de abril de 1836.
    Originalmente, a árvore era decorada com rosas feitas a partir de papel colorido, maçãs e fios prateados. Já desde o séc. XVIII que a árvore era decorada com velas. As maçãs representavam o episódio bíblico de Adão e Eva. Hoje em dia, as maçãs foram substituídas pelas bolas coloridas, as velas foram trocadas pelas luzes. Só os fios prateados se mantêm.
    O abeto, que era colocado numa sala privada da família real no Palácio das Necessidades, era decorado com velas, laços e bolas de vidro transparente. Também era comum colocar guloseimas na árvore já decorada, como frutas cristalizadas e chocolates. O marido de D. Maria II chegava mesmo a vestir-se de verde e a imitar São Nicolau, o santo que deu origem ao Pai Natal, para entreter os seus sete filhos. O rei consorte entrava na sala com um saco às costas e distribuía presentes pelos príncipes e outras crianças do palácio.
    A árvore de Natal original era mais bonita e mágica que a actual. Tinha os pequenos presentinhos pendurados nos próprios ramos ao lado das velinhas. Nos dias de hoje, como todos os dias são Natal em termos de consumo e presentes, a magia da árvore de Natal decorada com doces e presentes perdeu-se muito.

Análise do poema "Cinco galinhas e meia", de Camões

    Este poema breve de tom irónico, da autoria de Luís Vaz de Camões, escrito em redondilha maior, com características de repentismo, nas palavras da professora Rita Marnoto, é, de acordo com a epígrafe inicial, dirigido a D. António, Senhor de Cascais. Convém recordar que, por vezes, as epígrafes eram acrescentadas a um poema por um copista que sentia necessidade de o contextualizar. Trata-se, por outro lado, de uma quadra em redondilha maior, na esteira da Corrente Tradicional, precedida de uma epígrafe, e com um esquema rimático abab, ou seja, rima cruzada. As duas rimas, em -eia e -ais, contém uma aliteração em /i/, que nos versos 1 e 3 se estende ao interior do verso. Além disso, a rima em /a/ é reforçada pela repetição da primeira palavra rimante no interior do terceiro verso – «meia». Relativamente ao ritmo, este é rápido, tendo em conta o uso do verso curto, e ganha vivacidade com a divisão de cada um em dous segmentos paralelos, ligados através do encavalgamento. O primeiro apresenta a situação, enquanto o segundo a comenta e explicita.
    O D. António, senhor de Cascais, referido na epígrafe e no segundo verso, é D. António de Castro, um aristocrata muito poderoso, filho primogénito de D. Luís de Castro e D. Violante de Ataíde. Casou com D. Inês Pimentel, uma senhora que era aparentada com os Távora, e foi IV Conde de Monsanto por designação de Filipe II de Espanha em carta datada de 23 de outubro de 1582. O seu nome esteve envolvido na agitada vida que caracterizou a época que assistiu aos derradeiros anos de vida de Camões. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, D. Luís de Ataíde, vice-rei da Índia, regressou do Oriente envolto em triunfos e glória, ao mesmo tempo que a forte e dispendiosa armada formada para apoiar a liga entre o Papado, a Espanha e a França contra o inimigo turco não passava a barra do Tejo, em virtude de a aliança ter sido dificultada por diversas convulsões políticas. Em agosto desse ano, D. Sebastião ordenou a prisão de D. António de Castro nos subterrâneos do Castelo de Lisboa, enquanto a sua família e os seus criados foram encarcerados na prisão do Limoeiro. A razão para tal relacionava-se com a acusação de que tinha sido alvo por parte de um criado de apoiar os luteranos e de estar a organizar a entrega do Forte de São João da Barra aos franceses. No entanto, a denúncia era falsa, pelo que todos foram libertados. Posteriormente, D. António de Castro apoiou Filipe II de Espanha aquando da união dos tronos de Portugal e Castela, tendo ordenado o arvorar da bandeira castelhana no Castelo de São Jorge, no entanto acabou por ser vítima de nova acusação, desta vez de se preparar para entregar Cascais a D. António Prior do Crato, por isso foi desterrado para Espanha, juntamente com a família.
    Poderá parecer estranho, à primeira vista, que um poeta que cultiva um estilo elevado e que escreve uma obra monumental como Os Lusíadas aborde, nesta quadra humorística, uma questão menor como a alimentação, mas a verdade é que o tema da alimentação remonta às origens da literatura europeia, desde logo por se tratar de um bem essencial à sobrevivência dos seres vivos. Uma das estratégias indutoras doo cómico num texto é o contraste entre a superioridade de um sujeito em relação a uma vítima e a desilusão das suas expectativas. Neste caso, as duas figuras que preenchem a composição prestam-se ao referido contraste: de um lado, temos um destinatário de estatuto elevado, o poderoso D. António de Castro, enquanto no outro encontramos um poeta simples e modesto que se diminui fazendo uma cópia. A vida do primeiro caracteriza-se pelo bem-estar, ao passo que o segundo vive ansioso por confortar o seu estômago e satisfazer o seu palato. À promessa de seis galinhas feita pelo homem todo poderoso, segue-se a desilusão do poeta humilde pela receção de mera meia galinha, o que equivale a dizer que, novamente nas palavras da professora Rita Marnoto, “Às expectativas geradas pela plenitude de um delicioso recheio, corresponde uma ausência, como se a pulsão do corpo fosse remetida para o vazio material da concavidade da meia ave.”
    Retornando à análise da epígrafe, ficamos a saber que D. António, um homem poderoso, prometeu a Camões seis galinhas recheadas como pagamento por uma cópia que este lhe fizera, porém apenas lhe enviara meia. Note-se que, semanticamente, a meia dúzia é uma quantidade ligada à banalização, à indeterminação e até à escassez nos seus vários planos. Por sua vez, o verso inicial da quadra enuncia uma quantidade, a do débito, como se de um deficit se tratasse, que mensura uma substância alimentar: a galinha. As cinco galinhas e meia são antecipadas e postas em relevo pelo anacoluto, pois há uma inversão da ordem dos seus elementos, que seria “O senhor de Cascais deve cinco galinhas e meia”. O segundo verso identifica o débito (“deve” cinco galinhas e meia) e a figura histórica que corresponde ao devedor: D. António de Castro. Feita a substração, resta o que Camões efetivamente recebeu: meia galinha (“e a meia”), que vem cheia (adjetivo que se liga a outro – “recheadas” –, presente na epígrafe, por paronomásia a partir do mesmo étimo). Estamos perante uma espécie de eufemismo que aponta para o oposto daquilo a que se está a aludir: uma ausência. O registo das quantidades numéricas processa-se em decréscimo: de seis galinhas (epígrafe), passa-se a cinco galinhas e meia (v. 1), a seguir a meia (v. 3) e daí ao vazio (v. 4). Deste modo, é possível concluir que o adjetivo que aponta para a plenitude (“cheia”, do latim “plena”, que sugere exatamente a noção de plenitude) indicia, afinal, uma sucessão de faltas: do Senhor de Cascais, ao prometido; de comida, para o poeta; do recheio da meia galinha (sugerido pela ironia). Outra conclusão a que se pode chegar é que a “diminuição do quantitativo (em galinhas) é inversamente proporcional ao aumento dos apetites. (v. 4)”.
    O último verso assenta num jogo de palavras: o que preenche a galinha não corresponde à substância material do recheio, mas, por oposição, um apetite não satisfeito., o que, metaforicamente, pode ser interpretado como o vazio que se apodera do poeta. As suas expectativas foram traídas e a concavidade da meia galinha (personificada, ao ser dotada de apetites – não satisfeitos – a satisfazer) simboliza o seu desejo de comer. Deste modo, os apetites do poeta são transferidos para a meia galinha por hipálage. A metade do animal que Camões recebeu carrega consigo não um recheio material, mas o vazio onde se aloja o desejo em toda a sua plenitude, simbolicamente: é lá que se nutrem todos os anseios, todas as esperanças e todas as promessas que simbolizam “quanto de insaciável carrega a existência e com ela a escrita.” Note-se, por último, que, seguindo a tradição segundo a qual a redondilha deve apresentar uma estrutura circular, esta composição poética obedece a esse preceito, pois o último verso retoma o primeiro: “Cinco galinhas e meia” (v. 1); “de apetites para as mais” [cinco galinhas e meia].

Análise da cantiga "A la fé, Deus, se nom por Vossa Madre"

    Esta cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe), apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
    O «eu» poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”, ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
    Através do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda, neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”. O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”, ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da «senhor».
    No primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina, desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se “filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
    A terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”), deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
    Assim, chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora, completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
    Em suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval, vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um casamento arranjado pelas famílias.

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