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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Retrato de Maria da Encarnação

MARIA da ENCARNAÇÃO:
- originária de uma família de gente trabalhadora e honesta;
- bela;
- de estatura e temperamento marcadamente femininos;
- dotada de grande força interior, esperança;
- generosa;
- boa dona de casa;
- séria e trabalhadora;
- paciente com as loucuras do marido;
- assume a condução da administração da casa e o trabalho, face à estroinice do marido;
- fiel, recusa sempre culpar  o marido pela vida de boémia e pela ruína a que conduz a casa da Vessada;
- autoritária, destina os trabalhos mais difíceis a Quina, nutrindo uma predileção especial por Estina;
- trata carinhosa e desveladamente Quina durante a doença desta;
- desaprova o casamento de João com uma mulher sem personalidade, que "nem é carne nem é peixe";
- com o envelhecimento, torna-se extremamente ríspida, mas age sempre de acordo com os seus princípios.

Retrato de Bernardo Sanches

           Bernardo opõe-se a Germa, oposição que resulta da diferença de mentalidades, com formações e contactos diferentes. Em Germa foi decisivo o contacto com a realidade do campo e as mulheres da Vessada, enquanto Bernardo permanece sempre o mesmo burguês intelectual. Eis, em síntese, a sua caracterização:
            - neto de Adriana, primo de Germa;
            - burguês intelectual auto-suficiente;
            - espírito fechado;
            - narcisista;
            - novo-rico;
            - snob;
            - gabarola;
            - loquacidade oca e balofa, medíocre;
-» representa o tipo do novo burguês que foge à terra, atraiçoando os ideais rurais.
            O facto de Germa e Bernardo aparecerem em diálogo no início e no fim da obra realça o contraste entre as duas personagens e chama a atenção para um dos vetores da crítica do romance: a negação dos valores autênticos, a desumanização burguesa, os falsos intelectuais. Quer dizer, este diálogo marca o contraste entre uma aristocracia rural prestes a morrer e a burguesia citadina que traiu os ideais da tradição rural.

Retrato de Germa

            Germa é uma personagem fundamental da narrativa, cumprindo uma dupla função: narradora testemunhal, caucionando, pela observação dos factos, grande parte dos acontecimentos narrados, e detentora temática pela sua complexa relação com Quina.
            Germa cresceu numa aprendizagem da vida e das coisas, num processo sob a forma de espiral: recuando no passado, quando regressa ao presente não é a mesma, porque se transformou num processo de aprendizagem em contacto sobretudo com a tia.
            Germa é a sobrinha e herdeira universal de Quina, sujeito virtual da enunciação endodiegética. Toda a obra constitui uma evocação nostálgica e compreensiva de Quina, resultante de uma grande admiração e carinho que se foram desenvolvendo ao longo do tempo.

As Misteriosas Cidades de Ouro - Episódio 7: "O segredo do Solaris"

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Por todos os motivos e mais alguns

"Por estes motivos e mais alguns retomam assim para o acontecimento final em relação à personagem Maria."

Retrato de Quina

            Esta personagem é apresentada em três fases sucessivas e contrastantes.
            Quina é a personagem central de uma família de uma aldeia do norte do país. Nascida numa família onde o relacionamento dos pais era conflituoso, dadas as frequentes aventuras extraconjugais do pai, teve uma infância pouco sadia. Obrigada pela mãe aos trabalhos mais difíceis e duros da casa e das terras, encontrava no pai o seu refúgio, com quem, aliás, estabeleceu mesmo uma espécie de aliança secreta.
            Uma misteriosa e prolongada doença aos 15 anos alterou por completo a sua vida. Rodeada de todas as atenções, de todos os cuidados, inclusive da própria mãe, Quina apercebe-se da alteração e decide tirar todo o partido da situação, desse facto. Por outro lado, o isolamento prolongado da doença permitiu-lhe descobrir as suas capacidades. Curada, é uma personalidade diferente, forte, decidida, empenhada numa dupla missão: reconstruir a casa da Vessada, destruída pelas estroinices do pai e conquistar o prestígio espiritual na sua aldeia. Interpretando a noção do povo sobre a propriedade, dedicou-se por inteiro à tarefa de refazer a casa da Vessada, usando, para tal, toda a sua habilidade, apanhando obliquamente a herança dos irmãos, feirando, comprando e vendendo, enriquecendo rapidamente.
            Não lhe foi difícil, numa aldeia simples, destacar-se e rapidamente alcançar o estatuto espiritual de vidente, conselheira e sibila. Dotada de uma vaidade insaciável, regozijava de satisfação ao ser convidada para a casa dos ricos ou recebendo em sua casa pessoas que lhe pediam conselhos.
            Aos 58 anos de idade, recebe em sua casa Custódio, um menino filho de um escudeiro de Elisa Aida, a personagem que a apelidou pela primeira vez de sibila e que a consultava frequentemente, e de uma prostituta. A adoção de Custódio desperta o seu lado afetivo, adormecido e recalcado. Dedica-se a essa criança, dá-lhe o carinho que não teve, mas rapidamente se deixa dominar por ela. O narrador desnuda-nos, então, a sua alma, os escaninhos da sua consciência, apresentando-nos uma pessoa vulnerável, interesseira, solitária, fiel à noção de propriedade. Continua com o seu forte poder intuitivo, comungando os segredos da natureza. Na sua lenta agonia, Quina vai ouvindo compreensivamente as súplicas de Custódio, apesar do seu primitivismo, rudeza, anormalidade, Revela-se muito tolerante para com a sua instintiva sinceridade, as suas súplicas desajeitadas, a sua caça ao dote. Várias razões se podem encontrar para este comportamento benévolo de Quina:
-» a sensação agradável de se sentir adorada, numa posição de mando, de ter alguém dependente da sua decisão, especialmente naqueles últimos dias de vida;
-» o prazer em sentir-se rogada por um homem, provável compensação para frustração que constituiu o facto de ter sido preterida por Adão em favor de outra rapariga com melhor dote.
            Todavia, as lágrimas e súplicas não a demovem nem a fazem perder a noção do "sangue".
            A sua morte é apresentada como uma entrada triunfal no cosmos. Morre serenamente, não obstante as lágrimas e rogos de Custódio, a insuficiência dos cuidados de Libória, da indiferença da família. Desprende-se do seu comportamento no leito de morte uma sugestão de humanidade, autossatisfação, consciência do dever cumprido e toda a sua vida foi um combate cheio de astúcias e mediocridades, mesquinhez e baixezas, sonhos e frustrações, algumas derrotas e muitas vitórias.

            Mas Quina não foi uma verdadeira sibila, apesar de possuir traços comuns com as sibilas de Apolo:
- o facto de ser a guardiã da sua casa;
- o facto de ter por herói o pai, o seu Apolo;
- o facto de possuir um discurso sentencioso e sibilino;
- o facto de possuir um poder medianeiro, interferindo na vida e ações das pessoas e captando os segredos da existência;
- o facto de entrar, por vezes, em êxtase.

            Mas porque é que não foi uma autêntica sibilina? O narrador apresenta-nos frequentemente as razões:
* o apego ao triunfo imediato, às coisas terrenas (o materialismo);
* a sua insaciável vaidade;
* as suas intrigas mesquinhas.

            Outra das questões interessantes é o facto de Quina não ter casado. As razões de tal ato são também claras:
- a ideia negativa dos homens, tomando como exemplo o comportamento do pai;
- reservando um intenso carinho e amor pelo pai, mantém com ele uma aliança secreta;
- gostava muito mais de ser admirada do que de servir;
- o casamento limitaria o seu desígnio de aumento do património e da riqueza;
- embora sendo uma mulher e ligada ao clã feminino da casa, age como um homem, recalcando a sua feminilidade;
- considera-se superior ao homem, um ser inferior, e, portanto, não poderia jamais submeter-se-lhe.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Delimitação da ação de A Sibila

            Narrativa fechada:
-» Quina, a protagonista, morreu;
-» Germa, encarregada de continuar as tradições familiares, pressente uma grande dificuldade, ou quase impossibilidade, de cumprir a sua missão, sobretudo no que ela tem de legado espiritual;
-» relativamente ao legado material, a casa da Vessada aparece, no final, já em ruínas após a morte de Quina;
-» os membros da família foram morrendo, restando apenas Germa e a sua difícil missão.

            Narrativa aberta:
-» ao concluir-se esta narrativa, podemos imaginar o início de uma nova narrativa, onde Germa e o seu tempo se revelarão: "Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila..." (p. 249).

Estacionamento para mortos


Ações secundárias de A Sibila

            A obra aparece-nos como um conjunto de histórias que se vão acumulando, narradas por alguém que só diz delas o que quer e quando quer. A ação central é continuamente interrompida por uma série de pequenas histórias narradas pelo narrador omnisciente, que servem para caracterizar ambientes e personagens. Estas pequenas histórias surgem desordenadamente, frequentemente fora da sequência lógica do tempo, não se vislumbrando uma estruturação lógica da intriga. A grande atenção da narradora está em transmitir o pormenor quer da paisagem, quer do aspeto e atuação das personagens (seu vestuário, seu modo de vida, suas reações somáticas) de modo a captar o seu universo psicológico. Daí o facto de muitas delas serem interrompidas para voltarem a ser retomadas posteriormente.

            Uma das formas de agrupar as várias ações secundárias é com base na sua funcionalidade.

            a) Ações que se relacionam com Quina, personagem central, desvendando as suas características psicológicas e as suas relações com os outros:

            "Quina tornou-se, então, dum grande interesse para ela, e mandou chamá-la. (...)
            - Ora viva a Sibila! - disse, com mais riso na voz do que nos lábios. (...) Dirigiu-se a Quina como se se tratasse duma velha amiga perante a qual as cerimónias nem lembram e são supérfluas.
            - É maluquice minha, mas eu queria que me dissesse uma coisa: se alguém a ofendesse muito, perdoava, retribuía ou esquecia?
            - Perdoava a uma criança, retribuía a uma mulher; tratando-se de um homem, esquecia.
            - Ah! - Com um certo pasmo, a condessa fitou Quina. Começava a respeitá-la, antes mesmo de a ter entendido.
            - Acha então?! (...)
            - Ah, Joaquina Augusta - disse ela dando-se à canseira de se fingir pensativa -, haverá muita gente assim, pelo mundo? É que diz palavras de iluminada, como se só contasse um chiste.
            - Doutra maneira, quem me ouvia?" (pp. 76-77)


            b) Ações que se relacionam com as personagens secundárias, mostrando a sua caracterização psicológica e o seu comportamento e relacionamento:

            "- Ela já morreu - dizia. - Antes de hoje e há muito tempo que ela estava morta. Já a pariste morta, porque as tuas entranhas são amaldiçoadas. Quando viste os teus filhos estendidos numa tábua em cima da cama, não choraste uma lágrima que enchesse um dedal; porque também tu estás morta, e os teus frutos são uma desgraça. (...)
            Tossia e gritava, e as patadas das tuas botas reboavam pela casa. - Se a menina não aparecer, se ela não vier ter aqui, trazida pelos anjos e pelos diabos, e sem que um pico de tojo lhe tenha arranhado a pele, abro uma cova no quinteiro e enterro-te lá. Ouves?
            - Ela não torna a aparecer - disse Estina, debilmente. (...)
            - Não? - E ele vacilou na sua cólera." (p. 117)


            c) Ações que nos fornecem imagens do ambiente social onde se insere a protagonista:

            " Porque acontecera ser o sétimo rapaz duma família, fora batizado com o nome de Adão, para evitar assim o correr do fado, ou seja, ficar condenado a vadiar de noite, transformado em bácoro, ou cavalo, ou bode, ou toiro, em cujo rasto espolinhado se espojasse. Ah, e então apenas uma labareda, à meia-noite, consumindo-lhe as roupas que abandonou, um espinho ou um chuço ferindo o bicho que corre desabaladamente pelos atalhos, podem quebrar o encanto! Melhor é chamar, pois, Eva às quintas ou sétimas filhas e que Adão sejam os infantes todos que venham perfazer esses fatídicos números." (p. 40)


            d) Ações que contêm elementos temáticos que constituem o substrato ideológico da obra:

            "- Olha que o teu homem dorme com essa moça - prevenira Narcisa Soqueira, avisada como era em intrigas de harém provinciano. (...)
            - Cantês! - disse Maria, com a sua secura habitual. (...)
            Uma tarde, não muito depois disto, quando a merenda já fora servida e a moça se preparava para arrumar as camas que às vezes até à noite se faziam, Maria despediu-a também para o campo. Fazia muito calor. A sala, que era ao mesmo tempo quarto de dormir, tinha aberta as portadas da varanda. Da eira subiam cepas que tinham ganho corcovas, o jeito dos ferros que enlaçavam. Foi um desses pés de videira, cuja casca, já velha, desfibrava, que Francisco usou para trepar, disposto a representar com rigor a cena do balcão. Maria que, inclinada sobre a cama, lançava a ponta da coberta contra a parede, sentiu-se abraçada pela cintura; umas suíças loiras roçavam-lhe o rosto. Ela endireitou-se sem muita pressa, disse, com uma indiferença que era como uma chicotada:
            - Como te enganaste!" (pp. 34-35)

Ação central de 'A Sibilia'

            A ação central é constituída pela longa retrospetiva da vida de Quina, tia de Germa, a partir do momento em que, baloiçando-se na velha "rocking-chair", a recorda com saudade e alguma nostalgia, e começa e termina no mesmo espaço (a casa da Vessada), com as mesmas personagens em diálogo (Germa e Bernardo Sanches).
            A ação central gira, pois, à volta de Quina, iniciando-se no momento em que se dá origem à sua evocação por Germa e termina na altura em que, cerca de oitenta anos depois, se regressa ao tempo da evocação. Por arrastamento, dela fazem parte os membros de sua família. O primeiro plano da intriga é ocupado pela protagonista e sua família. A história de Quina é, logo de início, substituída pelo relato das vidas de Maria da Encarnação e Francisco Teixeira, suas aventuras e desventuras, com inúmeras divagações e comentários sobre o lugar da mulher na família e na sociedade e os efeitos nefastos da existência do homem. E a história das relações de Maria e Francisco Teixeira é muito importante para a compreensão do comportamento de Quina: o seu desprezo pelos homens, a sua frustração amorosa e compensação psicológica pelo poder económico e domínio dos outros. As relações da família ocupam, pois, um lugar determinante na obra. Mas também o peso do dinheiro e da propriedade têm grande relevo.
            O narrador dá saltos no tempo, utiliza o resumo, não se preocupa com a estruturação sólida da intriga, pois o importante é o contar e a atenção ao pormenor (da paisagem, do vestuário, da aparência física ou duma reação somática). Há, ocasionalmente, alusões ao envelhecimento progressivo de Quina, mas o leitor não assiste ao processo de evolução da protagonista). A inexistência de uma intriga bem estruturada permite um discurso digressivo. Ainda assim, é possível distinguirem-se alguns núcleos de ação que se organizam em torno de dois eixos: o da conquista do poder material e espiritual e o da análise introspetiva da sua alma, na relação com os outros e com os objetos:
            A recordação da vida de Quina é frequentemente interrompida por cortes e digressões suscitadas pela necessidade de recriação de ambientes e costumes e enquadramento de figuras e controlada por um narrador omnisciente, cujo ponto de vista profundamente irónico e devastador confere a todas as personagens e aos ambientes evocados uma feição negativa. Esta tendência para a digressão e reconstituição de ambientes faz com que a protagonista seja muitas vezes substituída por personagens e acontecimentos secundários relacionados com ela e com o grupo e o modo de vida em que ela se move. De tal modo que poderíamos dizer que o romance é, antes de mais, a história de uma família rural desde, pelo menos, o último quartel do século XIX. A partir da segunda metade deste século, começa a notar-se uma evolução da sociedade rural, no sentido de uma culturização da sua burguesia que, pela ameaça ao equilíbrio de um cosmos restrito, merece a reação conservadora de Quina, representativa de um superior estado de espiritualidade, de poder e prestígio sociais.

As Misteriosas Cidades de Ouro - Episódio 6: "O navio Solaris"

O título A Sibila

            As sibilas eram videntes antigas, provenientes da Ásia Menor e existentes na Grécia desde a época arcaica. A princípio existiria só uma, que se foi multiplicando e recebendo nomes conforme os lugares.
            Na Grécia, a mais célebre é a do templo de Apolo, em Delfos. Este santuário torna-se importante a partir do século VIII a.C. Os escritores e filósofos importantes da Grécia antiga falam dos oráculos de Apolo. As respostas eram dadas pela Pétia; depois de ter feito fumigações de louro e de cevada e bebido água da fonte de Cassótis, recebia as emanações sulfurosas provindas de uma fenda existente no coração do templo, entrava em delírio, proferindo assim as palavras enigmáticas que iriam orientar as ações dos que as consultavam. Vivia só e em castidade. Guardava a casa do seu deus, mantendo acesa a chama do seu culto. Na sua solidão, recebia a inquietação dos homens e transmitia o recado dos deuses. Ouvindo as preocupações, os problemas, as angústias, os segredos da vida humana, alcançava a capacidade de entender o mistério da existência.
            Na Itália, a mais famosa é a Sibila de Cumas. É esta que acompanha Eneias aos infernos, no canto VI da Eneida, e lhe prediz o futuro. A Sibila de Cumas é uma das cinco, pintadas por Miguel Ângelo em alternância com os Profetas, no teto da Capela Sistina.
            O título do romance terá sido escolhido, tendo como ponto de referência a vida da Sibila de Delfos e os seus oráculos.
            Esse título não está exatamente em conformidade com o desenrolar da intriga. Com efeito, o signo "sibila" aponta para as capacidades espirituais da protagonista, quando, afinal, o que a intriga nos revela é uma Quina excecionalmente dotada para manter e aumentar o património familiar. São raras e débeis as suas demonstrações sobrenaturais e as suas capacidades divinatórias. Por exemplo, no caso do desaparecimento da filha louca de Estina, a sua concentração e as rezas são impotentes para resolver a situação que vem a ter um trágico desenlace. De facto, o que se destaca em Quina é a forma como conquista um certo poder material, o importante é manter ou aumentar o património, que só pode ser transmitido a outro membro da família. Daí ela ter constituído Germa sua herdeira universal, sem atender aos pedidos insistentes de Custódio. O dote é como o sangue: só pertence à família, só pode ficar dentro dela, vence a morte.
            No desenvolvimento da ação, é importante considerar o título, pois ele, nesta obra, poderá ter uma intenção irónica, servindo para desmascarar uma ambiência rural onde proliferam a crendice, a superstição, o instinto de sobrevivência, o sentimento arreigado da propriedade e a obsessão do dote que é preciso levar aos vindouros intacto e, se possível, alargado. Procurar-se-ia, deste modo, reconstituir um modo de vida provinciano que, em Portugal, nos anos 50, começava a desaparecer ou, pelo menos, a ser ameaçado pela modernização e pela industrialização.


Obras de Agustina Bessa-Luís

            A sua obra é muito vasta, da qual se destacam os seguintes títulos: Mundo Fechado (1948), Os Super-Homens (1959), Contos Impopulares (1951 e 1953), A Muralha (1957), A Sibila (1954), O Sermão de Fogo (1962), Homens e Mulheres (1967), As Categorias (1970), As Pessoas Felizes (1975), As Fúrias (1977), Crónica do Cruzado Osb (1976), Fanny Owen (1979), Os Meninos de Ouro (1983), Um Bicho das Terras (1984), Eugénia e Silvina (1989).

Biografia de Agustina Bessa-Luís

            Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de outubro de 1922, em Vila Meã, concelho de Amarante. Apenas com seis anos de idade, entrega-se com prazer à leitura de As Mil e Uma Noites, obra que lhe despertou curiosidade.
            Depois dos estudos da Escola Primária, frequentou o colégio das Doroteias, na Póvoa de Varzim, lendo apaixonadamente a Bíblia, sobretudo o Velho Testamento. Passou as férias e parte da adolescência no Douro, em Godim. Aos dezasseis anos, disse para si: «Também escreverei um livro; em breve escrevo um livro.»
            Em entrevista ao Jornal de Notícias, em 1955, dirá: "Num Inverno monótono duma província magnífica de mais para ser justamente interpretado aos dezasseis anos, ou se namora um primo, ou se come demasiado, ou se escreve um romance. Foi uma longa história esse primeiro idílio com as letras. Chovia muito num pátio, a água das caleiras batia nas folhas das hidrângeas, que brilhavam como faróis do outro lado da janela. O outro lado da janela e a chuva são para todo o espírito criador uma oportunidade – eu aproveitei-a rigorosamente, escrevi um romance.»
            E escreveu mesmo o primeiro romance ainda não publicado. Continua a ler apaixonadamente autores portugueses e estrangeiros.
            Em 1945, casa com Alberto de Oliveira Luís e vai viver para Coimbra, onde o marido estuda direito na Faculdade de Direito, mostrando-se muito interessado pela literatura e pela arte. Em 1946, nasce a filha, Laura Mónica, que virá a tirar o curso de pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto.
            Concluído o curso de Direito, o casal fixa-se, em definitivo, no Porto, onde ainda reside. O Porto está presente em muitos dos seus romances, assim como Coimbra em dois, o que comprova uma personalidade muito atenta ao meio que a rodeia.
            Tem um intenso convívio literário com vários escritores e artistas. Viaja por vários países, colabora em muitos encontros internacionais, ganha inúmeros prémios literários, escreve para a televisão, é condecorada, em 1980, pelo Presidente da República, no dia de Portugal, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.
            Continua a publicar quase anualmente um ou mais romances e biografias, sendo já bastante extensa a sua obra.
            Faleceu a 3 de junho de 2019, na cidade do Porto.


domingo, 11 de agosto de 2019

A originalidade de Agustina Bessa-Luís


* A criação de um universo romanesco próprio, pela fusão de experiências anteriores.
* O regionalismo – universalismo.
* A conceção do tempo romanesco (elíptico): desvalorização da cronologia de forma a sugerir a intemporalidade.
* A densidade e ambiguidade da linguagem também elíptica.
* A dialética imanente/transcendente.
* A captação das mínimas variações do real perpetuamente em fuga (factos, gestos, comportamentos) em busca do invisível, do oculto ou misterioso.
* A sinuosidade da ação: a secundarização da intriga e a valorização das personagens e seus "problemas".


A recusa da cronologia linear

            A recusa da cronologia linear e a introdução no romance de múltiplos planos temporais que se interpenetram e se confundem, constituem a fundamental linha de rumo do romance coetâneo, magistralmente explorada por William Faulkner, por exemplo. A confusão da cronologia e a multiplicidade dos planos temporais estão intimamente relacionadas com o uso do monólogo interior e com o facto de o romance moderno ser frequentemente construído com base numa memória que evoca e reconstitui o acontecido.
            O chamado nouveau roman, designação imposta pelos jornalistas a um certo tipo de romance aparecido em França depois de 1950, é a última expressão desta já longa aventura que o romance empreendeu na ânsia de se libertar dos padrões tradicionais do enredo romanesco. Nas teorias e nas obras dos seus propugnadores, convergem a lição e o exemplo dos impressionistas, sobretudo James Joyce e Virgínia Woolf, do romance americano de Faulkner e Dos Passos, etc.
            Na conceção de Alain Robbe-Grillet, o romance deve desembaraçar-se da intriga e abolir a motivação psicológica ou sociológica das personagens, devendo conceder, em contrapartida, uma atenção absorvente aos objetos, despojados de qualquer cumplicidade afetiva com o homem. O próprio Robbe Grillet classificou um dos seus romances, O Ciúme, como «uma narrativa sem intriga», onde só existem «minutos sem dias, janelas sem vidros, uma casa sem mistério, uma paixão sem ninguém».

Vítor Aguiar e Silva, Teoria da Literatura

O monólogo interior no romance moderno

            O monólogo interior, que desposa fielmente o fluir caótico da corrente de consciência das personagens e que traduz, por conseguinte, em toda a sua integridade, o tempo interior, permite a James Joyce devassar a confusão labiríntica e desesperante da alma humana.
            (...) A obra de Marcel Proust, À procura do tempo perdido, insere-se igualmente nesta moderna tradição romanesca, pela ausência de um «enredo uniforme e sistemático, com toda a urdidura do episódio que atrai outro episódio até um final contundente», e pela absorvente atenção concedida à vida psicológica das personagens, uma vida psicológica extremamente densa e complexa. Marcel Proust participa da mesma repulsa de Valéry pela demasiada aproximação do romance relativamente à realidade informe e trivial e por isso observa que «nem sequer uma única vez uma das minhas personagens fecha uma janela, lava as mãos, veste um sobretudo, diz uma fórmula de apresentação. A haver alguma coisa de novo neste livro [À procura do Tempo Perdido], seria isto mesmo».
            Ao nome de Marcel Proust, poderíamos agregar os de Frank Kafka, de William Faulkner, de Hermann Broch, de Lawrence Durrell, as tentativas dos surrealistas no campo do romance, etc. O romance afasta-se cada vez mais do tradicional modelo balzaquiano, transforma-se num enigma que não raro cansa o leitor, num «romance aberto» de perspetivas e limites incertos, com personagens estranhas e anormais. A narrativa romanesca dissolve-se numa espécie de reflexão filosófica e metafísica, os contornos das coisas e dos seres adquirem dimensões irreais, as significações ocultas de carácter alegórico ou esotérico impõem-se muitas vezes como valores dominantes do romance. O propósito primário e tradicional da literatura romanesca - contar uma história - oblitera-se e desfigura--se.
            Por outro lado, o enredo do romance moderno torna-se muitas vezes caótico e confuso, pois o romancista quer exprimir com autenticidade a vida e o destino humano, e estes aparecem como o reino do absurdo, do incongruente e do fragmentário. O enredo balzaquiano, a composição do romance defendida por Bourget, falsificavam a densidade e a pluridimensionalidade da vida, e por isso o romance contemporâneo situa-se muito longe do romance balzaquiano, sem que tal facto implique, aliás, qualquer desvalorização de Balzac.

A crise de identidade de Maria

"Essa crise de identidade faz com que Maria morra de tristeza."
     Perante tamanhos absurdos construídos pelos alunos sobre a sua vida, como não haveria Maria de enfrentar crises de identidade? 

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Na aula (XXXVI): Vasxinou

     O que significa a 'palavra' vasxinou?




     Resposta: fascinou.

Almeida Garrett foi o introdutor do incesto na literatura portuguesa

"Maria afasta-se do que a familia espera dela no momento em que, mesmo na incerteza da sobrevivência de D. João, esta se junta com Manuel de Sousa Coutinho...".
     Maria casou com D. João (um clássico entre os alunos mais desatentos) e «juntou-se» a Manuel de Sousa, seu pai. Note-se para a modernidade da temática do incesto introduzida em pleno Romantismo, bem como da antecipação das relações amorosas não formalizadas: «juntar».  

O aprofundamento da análise psicológica

            A psicologia de William James, difundindo o conceito de corrente da consciência, revelando a existência de recordações, pensamentos e sentimentos fora da «consciência primária», e a psicanálise de Freud, fazendo emergir da sombra as estruturas ocultas do psiquismo humano, impulsionaram poderosamente essa nova espécie de romance - o romance das profundidades do eu.
            A desvalorização da diegese, acompanhada de um singular aprofundamento da análise psicológica da personagem, caracteriza particularmente o chamado romance impressionista de James Joyce e de Virgínia Woolf. É muito possível que, no romance impressionista, tenha atuado como poderoso estímulo o desejo de reagir contra o cinema mudo, semelhantemente ao que sucedera na pintura, onde o impressionismo representara uma reação contra a fotografia. O cinema, na verdade, podia traduzir um enredo movimentado e rico de peripécias, mas não conseguia apreender a vida secreta e profunda das consciências. É esta vida recôndita que o romance impressionista procura devassar, através do ritmo narrativo extremamente lento, tão peculiar de Virgínia Woolf, e através da técnica do monólogo interior, tão cultivada por James Joyce. Virgínia Woolf esforça-se cuidadosamente por exprimir, de modo subtil, minudente e não deformador, os estados e as reações da consciência, embora tais conteúdos subjetivos, muitas vezes, pareçam e sejam absurdamente fragmentários e incoerentes. O homem não se preocupa apenas com as suas relações pessoais, com a maneira de ganhar dinheiro ou de adquirir um lugar na sociedade: «uma larga e importante parte da vida consiste nas nossas emoções perante as rosas e os rouxinóis, as árvores, o pôr do sol, a vida, a morte, e o destino». O romancista tem de se ocupar destes estados fluidos, nostálgicos e iridescentes, razão por que, segundo Virgínia Woolf, os romances «que se escreverem no futuro, hão de assumir algumas das funções da poesia. Dar-nos-ão as relações do homem com a natureza, com o destino, as suas imagens, os seus sonhos. Mas o romance dar-nos-á também o riso escarninho, o contraste, a dúvida, a intimidade e a complexidade da vida».
            O Ulisses de James Joyce constitui uma das tentativas mais audaciosas até hoje realizadas no domínio romanesco para apreender a «intimidade e a complexidade da vida» de que fala Woolf. O seu enredo, no sentido tradicional do vocábulo, é mínimo: limita-se a ser a história de tudo o que acontece, no dia 16 de junho de 1904, a Leopold Bloom, um judeu de Dublin. E tudo o que acontece a Bloom não sai fora dos limites habituais da vida estereotipada de um burguês daquela época - acompanhar um enterro, passar pela redação de um jornal, entrar numa taberna, frequentar um prostíbulo... O Ulisses é o romance destes acontecimentos anódinos e de todas as reminiscências caóticas, das reflexões, das frustrações e das raivas de Leopold Bloom, mas faz ascender este trivial acervo de matéria romanesca a um plano de significações simbólicas e esotéricas, pois o romance está modelado segundo a Odisseia, existindo um paralelismo estrito entre as figuras e os acontecimentos do Ulisses e daquele poema homérico.

O romance contemporâneo e a desvalorização da diegese

            Com o Simbolismo, o romance aproximou-se dos domínios da poesia e esta aproximação implicou não só a fuga da realidade quotidiana, física ou social, mas também uma nítida desvalorização da diegese. As descrições da realidade trivial, o estudo minucioso e atento dos meios, a representação dos pequenos atos da vida humana, etc., constituíam para os simbolistas uma tarefa tediosa e desprovida de interesse artístico. Os aspetos evanescentes, subtilmente imprecisos e incoercíveis da realidade, idealmente traduzíveis através da poesia ou da música, não podem ser expressos, segundo a estética simbolista, mediante a estrutura narrativa e discursiva do romance.
            (...) São numerosos, com efeito, os indícios de que germinava já na penúltima década do século XIX uma nova conceção do romance - um romance fundamentalmente preocupado com o desvelamento da subtil complexidade do eu, intentando criar uma nova linguagem capaz de traduzir as contradições e o ilogismo do mundo interior do homem. Parece-nos que, numa história do romance moderno, merece muita atenção o convite que Bergson, no seu Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), dirigiu aos romancistas para que estes criassem um romance de análise dos conteúdos ondeantes, evanescentes e absurdos da consciência: «Se agora algum romancista ousado, despedaçando a teia habilmente tecida do nosso eu convencional, nos mostra sob esta lógica  aparente um absurdo fundamental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração infinita de mil impressões diversas que já deixaram de existir no momento em que as designamos, louvamo-lo por nos ter conhecido melhor do que nós nos conhecemos a nós próprios. [...] ele [o romancista] convidou-nos à reflexão, pondo na expressão exterior alguma coisa dessa contradição, dessa penetração mútua, que constitui a própria essência dos elementos expressos. Encorajados por ele, afastámos por um instante o véu que tínhamos interposto entre a nossa consciência e nós. Voltou a pôr-nos em presença de nós próprios». A voz do mais representativo pensador europeu do final do século XIX proclamava assim a necessidade de o romancista romper com a herança naturalística e realista, ao mesmo tempo que apontava um novo caminho a seguir: a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

As Misteriosas Cidades de Ouro - Episódio 4: "À deriva no mar infernal"

Conjugação do verbo "abster"

     "Abster" é um verbo composto pelo prefixo "abs-" e pelo verbo "ter".
     Os verbos compostos conjugam-se de acordo com o paradigma de flexão do verbo que está na sua base (neste caso, ter), mantendo-se o resto da forma inalterado.
     Assim:
          . eu abstenho (presente do indicativo)
          . eu abstive (pretérito perfeito do indicativo)
          . eu abstinha (pretérito mais-que-perfeito do indicativo)
          . vós abstereis (futuro do indicativo)
          . tu absterias (condicional)
          . etc.

Agradar a gregos e a troianos

     A expressão agradar a gregos e a troianos quer dizer agradar a todos, incluindo pessoas com características distintas; agradar a dois partidos opostos.
     Páris, príncipe troiano, raptou Helena, rainha grega, esposa de Menelau, o que deu origem à famosa Guerra de Troia entre gregos e troianos, conflito que teve a duração de 10 anos e terminou com a destruição da cidade de Príamo. O facto decisivo que esteve na base da vitória grega foi a construção do célebre cavalo de Troia, uma ideia de Ulisses (Odisseu).

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O casamento de Maria de Noronha e D. João de Portugal

"Maria afasta-se completamente do que a família quer para si porque ela acha que cometeu um pecado a gostar doutro homem enquanto ainda era casada com D. João. E por isso vai para um convento o que a leva a afastar-se mais ainda da opinião da sua família."
     Estas versões alternativas das obras literárias são sempre um poço de criatividade. 

terça-feira, 6 de agosto de 2019

"Entra e sai de amor", Altay Veloso

Análise de "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade


            O poema “No meio do caminho”, composto por uma quadra e uma sextilha, num total de 10 versos, alternando versos rimados (ABAA) com brancos (o sexto, por exemplo), foi publicado pela primeira vez no número 3 da “Revista de Antropofagia”, em julho de 1928. Posteriormente, integrou o livro Alguma Poesia, datado de 1930.
            Começando pelo título, este remete para um espaço (“No meio do caminho”), antecipando o imprevisto: a pedra.
            O texto é caracterizado pela redundância e pela repetição. De facto, se as eliminássemos, a composição seria a seguinte: “No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. As pedras simbolizam os obstáculos ou problemas com que as pessoas se confrontam durante a sua vida, descrita, metaforicamente, como um “caminho”. Por outro lado, as pedras, enquanto obstáculos, podem impedir o indivíduo de prosseguir o seu percurso, isto é, os problemas podem impedi-lo de avançar na vida.
            Os versos 5 e 6 transmitem uma sensação de cansaço por parte do sujeito poético e do acontecimento que ficará sempre na sua memória. Assim, as pedras também podem indicar um acontecimento relevante e marcante para a vida de uma pessoa.
            Há autores que fazem uma interpretação biográfica do poema, associando-a a um drama familiar do poeta. De facto, em 1927, Drummond de Andrade foi pai de um menino que sobreviveu apenas meia hora. Entre janeiro e fevereiro desse ano, foi-lhe encomendada a escrita de um poema para o número 1 da “Revista de Antropofagia”. Imerso na sua tragédia pessoal, o escritor enviou este poema.
            O crítico Gilberto Mendonça Teles sublinha o facto de a palavra “pedra” conter as mesmas letras do vocábulo “perda”, um fenómeno de hipértese. Mera coincidência ou recurso intencional?


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Ser ou não ser

     «Maria [de Noronha] não sabe o que quer, ela acha que só é o que a família quer que ela não seja.»

     Brilhante!

quarta-feira, 31 de julho de 2019

"Fim", de Mário de Sá Carneiro

            Este poema, constituído por duas quadras de rima interpolada e emparelhada (abba / cddc), data de 1916 e foi escrito na capital francesa.

            O texto gira em torno de um tema que se pode sintetizar do seguinte modo: encontrar sentido apenas na morte e através dela. O sujeito poético confere à sua morte e ao seu funeral o tom grotesco que lhe rira a dignidade, como para mais achincalhar-se.

            Começando a análise pelo título, nota-se nele uma espécie de humor satânico que se estende a toda a composição. O sujeito poético expressa o desejo de o seu post-mortem, o seu funeral, a sua morte, ser celebrado com grande euforia e espetáculo: marcado pelo bater de latas, berros, pinotes e palhaços, desejo esse que sugere uma autorridicularização. É uma sugestão irreverente que deixa escapar um profundo autodesprezo. Por outro lado, a performance circense de palhaços e acrobatas conota uma alegria no encontro com a morte.

            As ideias de teatralidade e representação são conferidas pela presença precisamente dos palhaços e acrobatas, típicas figuras do espetáculo circense, que resume a faceta de clandestinidade, de transgressão incutida na excentricidade do último desejo, o de um funeral à moda andaluza. Esta arte de rua, marginal, constitui também o tema de “Partida de Emigrantes”, um triplico de Almada Negreiros. Num dos quadros, os saltimbancos de rua dominam a cena do cais representado. A sua presença representa a transgressão, a marginalidade que pode ser ignorada, desprezada e ostracizada, mas não suprimida, porque existe. No poema em análise, o sujeito lírico, na última jornada da sua existência, transforma o que deveria ser um cerimonial triste e pesaroso, de acordo com as convenções ocidentais, numa festa de rua, dominada pelo clima de festa, provocatória. O fim é celebrado e transformado numa comemoração de vida, a pretexto da morte, e acompanhado por artistas marginais com quem comunga o mesmo sentido transgressor. Isto significa que o conceito tradicional de funeral não é o enunciado no texto: um funeral é uma cerimónia caracterizada por uma atmosfera grave e de pesar, mas neste caso é manifesto o desejo do «eu» de que o seu seja um momento de festa e de folia.

            O ato caricato de transportar o caixão sobre um burro sugere a irreverência diante da morte e traduz também uma ideia de escárnio pelo próprio fim. Além disso, tem os enfeites à moda da Andaluzia, que devem ser vibrantes, vistosos.

            Quanto ao burro, no texto simboliza a obscuridade. Note-se que, na Índia, o animal serve de montaria para divindades funestas, como Nairrita, guardião da região dos mortos, o que só confirma a ideia de que o poema aponta para a figura do fim.

            A figura do palhaço, para Chevalier e Gheerbrant, é a representação do rei assassinado. Simboliza a inversão da compostura régia nas suas palavras e atitudes. A majestade é substituída pela irreverência; a soberania pela ausência de toda a autoridade; o temor pelo riso; a vitória pela derrota; as cerimónias sagradas pelo ridículo; a morte pela zombaria. O palhaço é como o reverso da medalha, o contrário da realeza, a paródia encarnada.

            Por um lado, a composição remete para um deboche numa ocasião cercada de solenidade; por outro, as atitudes a que ele incita traduzem uma celebração pela sua morte, como se se tratasse de um benefício para o mundo, talvez para si mesmo. O corolário do cortejo reside na sua exigência de que o caixão seja transportado sobre um burro, um claro menosprezo do seu próprio funeral, revelando, deste modo, a pouca importância atribuída a si mesmo e à sua vida. Deste modo, ele revela-se uma pessoa excêntrica, caprichosa e determinada, sendo que, no momento em que manifesta o seu desejo, o seu estado de espírito é exaltado e quase febril.

            Em suma, a estruturação mental do poema é clara. De facto, o sujeito poético deixa um conjunto de indicações bastante precisas sobre:
● o tipo de funeral: à andaluza;
● o meio de transporte para o levar à sua última morada: um burro;
● as ações a desempenhar pelos acompanhantes da sua cerimónia fúnebre: bater em latas, romper aos berros e aos pinotes, fazer estalar chicotes no ar;
● os participantes e responsáveis pela animação do evento: palhaços e acrobatas.

A nota final é clara: esta é a sua vontade expressa, pois a um morto nada se recusa.


Bibliografia:
- Neusa Sorrenti, “Mário de Sá Carneiro, poeta: um Narciso entre Eros e Tânatos”;
- Carlos Ferreira, Mário de Sá Carneiro: Do Percurso do Poeta às Práticas no Programa de Português do Ensino Secundário.

"As Misteriosas Cidades de Ouro": capítulo I


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