Português

segunda-feira, 14 de março de 2022

Análise da cena da Alcoviteira da Farsa de Inês Pereira

  Visita de Lianor Vaz
 
1. Caracterização de Lianor
 
▪ É uma alcoviteira / casamenteira: arranja casamentos.
 
▪ Apresenta-se como amiga e confidente de Inês Pereira.
 
▪ Na questão da apresentação de Pero Marques a Inês, mostra-se uma mulher persuasiva, sensata, experiente e prática.
 
▪ Entra em cena aflita, agitada e desorientada, «benzendo-se» e mostrando assim a sua aflição e esconjurando as más influências do clérigo que a tinha atacado.
 
▪ Foi atacada/assediada por um clérigo.
 
 
2. Episódio de Lianor Vaz
 
2.1. Resumo
 
            Lianor Vaz relata que, no caminho para a casa de Inês, um clérigo a atacou, sob o pretexto de saber se ela “era macho ou fêmea”.
            A Mãe confessa que...

Ver a restante análise aqui: [cena da Alcoviteira]

terça-feira, 1 de março de 2022

Análise da cena 1 da Farsa de Inês Pereira

  Cantiga entoada por Inês

 
            Na cantiga que abre o monólogo inicial [de uma das duas versões da peça que chegaram até nós], Inês questiona-se sobre o que acontecerá quando não se vê a pessoa amada, se, vendo-a, só se sofre e morre de amor. Deste modo, ela exprime o sofrimento de amor associado à morte de amor, traços característicos da ...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Análise da cena 2 da Farsa de Inês Pereira

 
Continuação do quadro de costumes: apresentação de um regime matriarcal, representado por uma mãe de bom senso a quem cabe a educação da filha (a mãe tenta convencer Inês, utilizando, muitas vezes, ditados populares), com os maridos ausentes nas “partes d’além”.
 
 
Caracterização da Mãe
 
• Quando regressa a casa da missa, é irónica: demonstra que conhece bem a filha e que, portanto, já sabia que Inês, sendo preguiçosa, durante a sua ausência não estaria a trabalhar (vv. 37 a 40). Considera-a...

Continuação do post: [cena 2].
 

Análise da cena 1 da Farsa de Inês Pereira

Cantiga entoada por Inês
 
            Na cantiga que abre o monólogo inicial [de uma das duas versões da peça que chegaram até nós], Inês questiona-se sobre o que acontecerá quando não se vê a pessoa amada, se, vendo-a, só se sofre e morre de amor. Deste modo, ela exprime o sofrimento de amor associado à morte de amor, traços característicos da poesia trovadoresca, nomeadamente das cantigas de amor.
            Tendo em conta o estado de espírito que patenteia ao longo da primeira cena, a cantiga – cuja temática é o sentimento amoroso – indicia que Inês está pronta e desejosa de ter uma relação amorosa, o que, considerando o tom queixoso do seu monólogo, lhe parece impossível naquele momento.


Caracterização de Inês Pereira

• Inês canta e finge que trabalha num bordado, mas logo começa a reclamar do tédio que essa tarefa lhe causa e da vida que leva, sempre fechada em casa. Está cansada das tarefas domésticas; é preguiçosa – detesta a costura (vv. 3-4).

• Mostra-se aborrecida com a vida que leva (“enfadamento”), enraivecida, furiosa e revoltada por ter de realizar tarefas de que não gosta (“Renego deste lavrar” – v. 1; “e que raiva” – v. 6).

• Rejeita a vida que leva (“Renego deste lavrar” – v. 3).

• Revela-se compadecida, compassiva, piedosa em relação a si própria (“Coitada, assi hei de estar” – v. 10).

• Mostra-se determinada a encontrar maneira de se ver livre das suas tarefas e da vida que leva (“hei de buscar maneira / dalgum outro aviamento” – vv. 10-11).

• Sente-se prisioneira em casa da Mãe (“Coitada assi hei d’estar / encerrada nesta casa.” – vv. 12-13) e sem horizontes.

• Queixa-se de que nunca se diverte (“Todas folgam e eu não / todas vem e todas vão / onde querem senão eu” – vv. 25-27) e inveja as outras moças da sua idade, que são livres de sair de casa e de se divertir.

• Sente que a sua vida é vazia (“Esta vida é mais que morta” – v. 30).

• Em suma, Inês queixa-se pelo facto de:
- ter de desempenhar tarefas domésticas;
- estar sempre fechada em casa;
- não se divertir;
- não ter liberdade.


Linguagem

Comparações:

- “assim hei d’estar encerrada nesta casa / como panela sem asa / que está sempre num lugar” (vv. 12-15): a comparação estabelece-se entre a casa, considerada uma prisão, e uma panela sem asa, ou seja, a um objeto a que falta um elemento, a asa, para ter utilidade. Deste modo, Inês mostra que não está satisfeita com a vida que leva, considerando-a inútil.

- “Sam eu coruja ou corujo, / ou sam algum caramujo”: a comparação com animais notívagos e dependentes de outros seres, presos ou que vivem dentro de um casulo, como entende ser o seu caso (dependente da Mãe), privada das saídas de casa durante o dia e vivendo sob a alçada da progenitora, indiciam o seu estado emocional.

Enumeração: “Oh Jesu que enfadamento, / e que raiva, e que tormento, / que cegueira, e que canseira” (vv. 7-9) – traduz a indignação que sente pela vida a que está sujeita e de que não gosta.

Interrogações retóricas – destacam a insatisfação e a revolta de Inês relativamente à vida que tem:

- questiona a inutilidade da sua vida: “Coitada, assi hei de estar / encerrada nesta casa / como panela sem asa, / que sempre está num lugar?” (vv. 10-13);

- lamenta-se por considerar a sua vida um desperdício: “E assi hão de ser logrados, / dous dias amargurados, / que eu possa durar viva?” (vv. 14-16);

- questiona-se sobre a sua condição: “Hii! E que pecado é o meu, / ou que dor de coração?” (vv. 26-27);

- enfatiza o seu lamento, o seu desespero e a sua revolta por estar fechada em casa: “Sam eu coruja ou corujo, / ou sam algum caramujo / que não sai senão à porta” (vv. 29-31).
Anáfora (vv. 25-26).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Texto dramático: finalidade, características e estrutura

 1. Finalidade
 
            O texto dramático tradicionalmente não tem narrador e o desenvolvimento da ação processa-se através das falas ou réplicas das personagens, predominando o discurso direto.
            O texto dramático tem como finalidade a representação, momento em que se torna verdadeiramente completo.


2. Intervenientes
 
Atores: representam o papel das várias personagens, emprestando-lhes voz e corpo.
Encenador: é o responsável por todos os aspetos respeitantes à representação teatral (atribuir os papéis aos atores, dirigir os ensaios, etc.).
Cenógrafo: trata dos cenários.
Figurinista: desenha os figurinos, isto é, o guarda-roupa usado pelas personagens.
Sonoplasta: é o responsável pelos efeitos sonoros durante a representação.
Luminotécnico: assegura os efeitos luminosos necessários ao espetáculo.


3. Características / Categorias
 
            O texto dramático pode estar escrito em prosa (Frei Luís de Sousa) ou em verso (Farsa de Inês Pereira). Em qualquer dos casos, apresenta características específicas.
 





            As indicações cénicas ou didascálias compreendem um conjunto de informações que contribuem decisivamente para que a leitura e/ou representação da peça seja o mais semelhante possível ao modo como o dramaturgo a idealizou.
 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Análise do poema "Nihil Sibi", de Miguel Torga

    “Nihil Sibi” é um poema da autoria de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, um escritor e médico natural de S. Martinho de Anta em 1907. A sua obra poética em particular aborda temas sociais, como a natureza, a justiça e a liberdade, o amor e a angústia da morte, a condição humana, o papel do poeta na sociedade, e deixam transparecer um sentimento de telurismo permanente entre o ser humano e a terra.
    O título do poema é constituído por uma expressão latina que significa «nada para si» e, neste caso, sugere a ideia de que o poeta é uma figura altruísta, alguém que, tal como uma fonte, não guarda nada para si, antes se entrega inteiramente através da sua arte. Ou seja, indicia que o poeta é alguém cuja obra e produção se destinam ao «outro». A palavra «nihil» significa «nada», enquanto o termo «sibi» é o pronome reflexivo próximo de «se». Deste modo, a expressão completa seria algo próximo de «nada em si» ou «nada para si».
    A epígrafe, entre parênteses, reforça o sentido do título, enfatizando a ideia de que nada retém para si, antes compartilha tudo o que tem através da sua poesia, que constitui um ato de generosidade e altruísmo. Segue-se à epígrafe uma singela quadra de versos brancos e métrica irregular, o que, juntamente com a linguagem simples e clara, aproxima o poema do leitor.
    Este texto abre com uma metáfora que define o poeta como uma fonte: “O Poeta é uma fonte:”. Uma fonte é algo que jorra água incessantemente, símbolo de vida, pureza e renovação. Ao associar a figura do poeta a uma fonte, o sujeito poético sugere que o papel daquele é «dar-se», fazer nascer poesia e originar, de forma espontânea, o canto, partilhando com os outros os seus sentimentos, pensamentos, etc. Ou seja, o poeta é uma fonte de poesia, faz nascer poesia. O verso inicial termina com dois pontos, o que indicia que no(s) seguinte(s) irá explicar / desenvolver a ideia nele expressa.
    De facto, o segundo verso “esclarece” a metáfora inicial, enfatizando o caráter altruísta do poeta, já que ele “Nada reserva para a sua sede”, ou seja, nada guarda para si mesmo. O seguinte confirma claramente que o papel do poeta é dar-se: ele, qual fonte, faz nascer a poesia e origina, desse modo espontâneo, o canto. Claramente, está aqui presente a noção de que o canto é o reflexo da sua abnegação e do seu altruísmo: ele não canta por cantar, antes se entrega e partilha o seu canto.
    O último verso não deixa dúvidas: o poeta está sempre vigilante (“E não dorme”), tem uma postura interventiva e atenta ao que o rodeia e é um ser que se dá ao outro, infatigável (“nem para”). Retomando a metáfora inicial, o poeta é uma fonte que nunca para de jorrar poesia, não dorme, nem para, está em constante processo criativo. A sua atividade – a criação poética – tem, em suma, um caráter permanente e imutável.
    O poema apresenta, pois, o poeta como alguém altruísta e abnegado, isto é, um ser que se dá completamente, nada guarda para si. Esses traços, essa espécie de sacrifício, são necessários para a criação poética, através da qual exprime e partilha as suas emoções, pensamentos e preocupações. O vocabulário usado sugere exatamente essa entrega permanente: «reserva», «dar-se», «não dorme».
    O Mosteiro de Rendufe, mais concretamente o seu terreiro, possui uma fonte granítica de espaldar que ostenta a inscrição latina «Nihil sibi». A Bíblia inicia-se com a referência a uma fonte ou rio no paraíso terrestre que logo se desdobra em quatro (Génesis 2, 0) e encerra no Apocalipse (22, 1) com a fonte originária da vida eterna no quadro da cidade celeste da Nova Jerusalém. No texto bíblico, encontramos também a fonte aberta por Moisés no rochedo do deserto, bem como o encontro de Jesus Cristo com a mulher samaritana junto à fonte de Jacob.
    Miguel Torga, não se sabe se inspirado nessa fonte de Rendufe, usou a expressão latina «nihil sibi» para dar título a este poema, o primeiro de uma obra intitulada igualmente Nihil Sibi, publicada em Coimbra, em 1948. Regra geral, o simbolismo da fonte está associado ao da água: aquela é o símbolo da vida, dado que dela jorra a água sempre necessária à vida. No entanto, a expressão que podemos encontrar no Mosteiro de Rendufe centra o simbolismo na disponibilidade da essência de fonte para dar e não tanto naquilo que dá. A fonte dá e nada guarda para si, pelo que o mais importante é a própria fonte, que está sempre à disposição, humildemente, do «caminhante», não tanto o conteúdo da doação, isto é, a água que dá. A fonte nada guarda para si e nada pede em troca do que dá. O ato desinteressado de dar é a natureza da fonte.
    A obra foi publicada, como já referido, em 1948, apenas três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, uma fase em que a Europa estava em fase de recuperação de uma ferida tremenda. O horror descoberto nos campos de concentração nazis, a denominada Solução Final, deixou repleto de sofrimento e de incredulidade o ser humano e suscitou duas grandes questões: 1.ª) como pôde Deus permitir tamanha violência ao Homem; 2.ª) como pôde a humanidade ser capaz de tal atrocidade com o seu semelhante?
    A imagem do poeta metaforizada numa fonte tem uma intenção clara: associá-lo àquele que no mundo tem a função de não deixar morrer a grande mensagem e verdade da vida, presente em toda a obra – existir humanamente. O poeta pode morrer fisicamente, porém permanece vivo através da sua poesia, que não tem fim e vive eternamente.
    Em suma, o assunto do poema, em termos de figurações do poeta, aponta para o seu papel abnegado (enquanto criador de poesia).

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Análise de "Poema em Linha Reta"

            “Poema em linha reta” é um texto da autoria de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, um engenheiro de influência britânica, cuja obra enquanto poeta evolui do Decadentismo até à abulia e tédio, passando pelo Futurismo sensacionista.
            Neste poema, o sujeito poético começa por fazer uma afirmação confessional impactante: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Este dístico coloca-nos desde logo perante o tema que vai ser desenvolvido nos versos seguintes: a crítica às relações sociais e à falsidade e hipocrisia que as caracteriza. O «eu» observa que todas as pessoas suas conhecidas procuram passar uma imagem de perfeição, de triunfo e sucesso permanente, recusando qualquer hipótese de fracasso, derrota ou humilhação. De facto, essa gente nunca levou porrada, isto é, nunca foi “agredido” pelos outros ou pela vida, e não perde, é campeã em tudo; transmite uma imagem de triunfo e de sucesso. Note-se que o «eu» não afirma ter amigos, apenas conhecidos, o que justifica ao longo do texto pela dificuldade em se relacionar com as pessoas, porque são falsas e hipócritas. Ele socorre-se de adjetivação pejorativa para se autocaracterizar como um ser imperfeito, desde logo porque não se adequa às regras de etiqueta e às normas sociais e, por isso, é desprezado pelos outros. Ele assume-se como ridículo e cómico aos olhos dos demais, como um parasita, arrogante e mesquinho cobarde.
            Depois de denunciar, ironicamente, esta falsa imagem de perfeição dos outros, o sujeito poético, através de um registo coloquial, já anunciado no dístico inicial (“porrada”), enumera os seus defeitos e falhas e discorre sobre a sua condição de inferioridade social, ao assumir uma «persona» que não corresponde ao que a sociedade esperava. Assim, assume-se como alguém reles, porco, vil, parasita e sujo, o que significa que não procura dar de si uma imagem de homem perfeito, sério, bom; pelo contrário, chega ao ponto de assumir que não cumpre sequer as regras básicas de higiene que são esperadas: “porco”, “sujo”, sem “paciência para tomar banho”.
            E prossegue, afirmando-se como “ridículo”, “absurdo”, “grotesco” e “mesquinho” e que “tem enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta”, ou seja, que se sente humilhado por não saber como agir em público; é um socialmente inapto, questionando regras de etiqueta. A metáfora do verso 8 (“Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”) destaca o facto de o sujeito poético mostrar inaptidão no cumprimento das regras de etiqueta, o que o torna ridículo aos olhos da sociedade. Ele não é capaz de se relacionar com os outros e é maltratado por eles, não sendo capaz de os enfrentar, o que revela cobardia da sua parte (“tenho sido enxovalhado e calado”). Quando tenta responder, sente-se mais ridículo ainda: “Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda”. Por outro lado, o seu comportamento social inadequado é percecionado pelas criadas de hotel e pelos moços de fretes, que o desprezam quando deveriam trata-lo com algum respeito e deferência. A referência às criadas de hotel e aos moços de fretes acentua a dimensão irrisória do «eu» aos olhos da sociedade. Porquê? Estes indivíduos situam-se no nível mais baixo da hierarquia social, contudo eles mesmos consideram o sujeito poético um indivíduo ridículo.
            A sua vergonha acentua-se ao confessar a sua desonestidade, referindo-se às suas “vergonhas financeiras”, motivadas por pedir emprestado e não pagar, numa confissão de admissão de insucesso e ruína financeira. A seguir assume, de novo, a sua cobardia, a sua incapacidade de se defender e de lutar pela própria honra, preferindo “fugir” e desviar-se dos golpes/ataques alheios: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado”. Tudo isto o leva a confessar o seu comportamento estúpido e ridículo no contexto de uma sociedade pautada pelo sucesso, pelo cavalheirismo e pela cortesia, o isolamento e a solidão (por não estar à altura das expectativas e das normas sociais e reconhecer as suas falhas e insuficiências), o sentir-se excluído e à parte dos demais: “Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. Ele constata que não tem par no mundo, pois, quando revela todos os seus defeitos e imperfeições, diferencia-se do resto da sociedade, que apenas aparenta virtudes e sucessos, daí o seu isolamento e solidão, num mundo onde predomina o fingimento, até porque é o único a reconhecer referidos defeitos e imperfeições.
            Esta estrofe coloca-nos perante alguém inadequado à convivência social, incompreendido até pelo seu fracasso. Recorrendo à enumeração e, sobretudo, à ironia, o «eu» destaca o contraste entre os indivíduos que sentem a necessidade de existir uma aparência de grandeza e sucesso pessoal e o sujeito lírico e os seus fracassos, insucessos e defeitos.
            Fazendo uso de um esquema elaborado pela editora Santillana, podemos sintetizar o conflito entre o «eu» poético e as demais pessoas da seguinte forma:


            Estilisticamente, além da enumeração e da ironia, há a realçar o recurso à anáfora, que enfatiza a postura do «eu», e a repetição da expressão “tantas vezes”, que acentua o contraste entre o sujeito poético e os outros. De facto, ao contrário dos seus conhecidos (não amigos), o «eu» reconhece que frequentemente assume comportamentos que o tornam ridículo e até desprezível. Além disso, a presença dos advérbios de modo (“irrespondivelmente”, “indesculpavelmente”) salientam a recusa do sujeito lírico em procurar razões que justifiquem as suas atitudes indignas: ao contrário dos outros, não busca encontrar pretextos que justifiquem ou tornem o seu comportamento aceitável, optando antes por se assumir plenamente como é.
            A partir da estrofe seguinte, o sujeito poético deixa de lado a ironia e expõe o seu conflito de identidade e denuncia a falta de sinceridade e a hipocrisia reinantes: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”. Deste modo, o «eu» volta a destacar o facto de os «outros» procurarem transmitir uma imagem de triunfo e sucesso. Esta postura dos demais acentua a sua dificuldade em comunicar com eles, em virtude de fingirem ser perfeitos e só transmitirem o que lhes é conveniente.
            Perante este panorama, exprime o desejo de encontrar alguém, uma «voz humana», que se expresse como ele faz, revelando todos os seus defeitos e falhas. Mesmo quando assumem um ou outro fracasso, jamais o fazem com as suas grandes falhas, “são todos o Ideal”. Desta forna, o «eu» denuncia a sociedade por cultivar as aparências, por não admitir ou tolerar o fracasso, razão pela qual as pessoas sentem a necessidade de adotar uma postura infalível, bem marcada pelo recurso ao nome «príncipe», que traduz a tal postura inquestionável de alguém que ocupa a posição mais destacada entre os seus pares. O «eu» aproveita para ir mais além e proceder à distinção entre o erro humano – o pecado – e a miséria humana que transparece de uma vida caracterizada pelo ridículo de um fracasso recorrente que acarreta o desprezo da sociedade. Em suma, o «eu» manifesta o desejo de que os outros se libertem dessa necessidade de passar uma imagem ideal e perfeita e mostrem a sua dimensão humana. Para o sujeito, a perfeição dos outros associa-se não tanto a um caráter irrepreensível a nível ético, mas a uma imagem de virilidade que exclui todos os comportamentos considerados desonrosos, como, por exemplo, a cobardia. É por isso que os pecados e as atitudes violentas são inaceitáveis.
            A falsidade e a hipocrisia daqueles que, mesmo quando cometem erros ou sofrem adversidades, mantêm a dignidade, as aparências não comprometendo jamais a sua imagem pública. O sujeito poético recusa assumir o comportamento social adequado, que se espera de si, pois não acredita nele, e, assim, denuncia a hipocrisia que está na base deste comportamento e que tem como consequência a sua exclusão de uma sociedade que prima pelo sucesso aparente. Por outro lado, o poema permite-nos entrever alguns dos costumes sociais da época em que foi escrito (primeiras décadas do século XX), nomeadamente certas normas e etiquetas em consonância com o desenvolvimento da indústria e a ascensão do capitalismo, que trouxeram consigo alguns valores menos humanos e mais orientados para o luxo e o consumismo.
            A sociedade atual, em pleno 2022, mantém estes traços denunciados por Campos no poema. Por exemplo, a vaidade, a falsidade ou a hipocrisia são traços que encontramos todos os dias nas mais diferentes situações. De igual modo, a solidão, o isolamento ou o ostracismo a que é votado quem não pensa ou não se comporta como “é suposto” são bem comuns, com fenómenos como o «bullying» a atingir níveis inusitados, muito também graças à explosão das chamadas redes sociais. A vaidade, o culto da personalidade, o egocentrismo, a multiplicação de heróis são recorrentes: toda a gente quer aparecer, ser «famosa», mesmo que recorrendo a métodos ou adotando comportamentos questionáveis, como, por exemplo, a exposição exaustiva da vida privada; atores, modelos, cantores, em suma, artistas em geral apresentam-se muitas vezes como seres superiores aos comuns mortais em termos financeiros, de poder ou força, de tal forma que parecem pairar como os deuses do Olimpo.
            O poema prossegue com uma interrogação do sujeito lírico: “Onde há gente neste mundo?” Esta interrogação retórica encerra a denúncia da profunda solidão que persegue o indivíduo no contexto da vida moderna, já então marcada pelos avanços sociais e tecnológicos. Porém, a realidade é que não é apenas o «eu» que é humano; os outros também têm comportamentos menos dignos (“Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”), só que não são sinceros nem honestos em relação aos seus fracassos, falhanços e vulnerabilidades: “Poderão as mulheres não os terem amado, / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!” O importante é sempre o culto das aparências, de uma imagem de sucesso, e não parecer ridículo.
            Já o «eu» assume ser ridículo, mas, ao contrário dos outros, não foi traído, e só é ridículo exatamente porque não esconde, antes confessa os seus fracassos e reconhece as suas debilidades. Esta postura diferente tem como consequência a impossibilidade de comunicar com os demais indivíduos, que designa como seres «superiores» devido à imagem irreal e falsa: “Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?”
            Socorrendo-nos novamente do trabalho da editora Santillana, podemos sintetizar a questão da crítica social da seguinte forma:


            Através deste poema, Álvaro de Campos critica o vazio, a falsidade e a hipocrisia de uma sociedade que vive de aparências, bem como a ausência de espírito crítico das pessoas em geral, a quase obsessão de certas pessoas de granjear o respeito dos outros e o receio ou a incapacidade de assumir as suas falhas e os seus defeitos. Por outro lado, há uma clara tentativa de suscitar nos outros o culto da sinceridade, da honestidade, da transparência e combater as ilusões de grandeza, destinadas a alimentar o seu ego. É claro que a intenção de Álvaro de Campos passa por denunciar a hipocrisia da sociedade do seu tempo, nomeadamente das pessoas que escondem os seus defeitos e falhas, mostrando-se como seres imaculados, de sucesso e perfeitas.
 
            O título do poema é irónico e antecipa a feição crítica do texto, que visa os indivíduos que vivem sempre em “linha reta”, isto é, que vivem como se a vida não tivesse qualquer tipo de fracassos ou humilhações e fosse marcada por vitórias constantes. A existência não é uma “linha reta”, antes é torta, feita de altos e baixos, de erros e acertos, de imperfeições e contradições. Ao longo do texto, o «eu» procura desconstruir a imagem de triunfo constante, mostrando que, na realidade, não passa de uma imagem falsa e hipócrita.

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