Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.
A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.
A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.
A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.
Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).
De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”
Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.
O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.
A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).
O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).