Português: 17/03/25

segunda-feira, 17 de março de 2025

Análise da cantiga "Vosso pai na rua", de João de Gaia

    Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.

    A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.

    A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.

    A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.

    Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).

    De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”

    Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.

    O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.

    A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).

    O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).

    As duas estrofes seguintes colocam a figura satirizada “Ant’a sa pousada / em saia / pertada” e “Em meio da praça, / em saia de baraça”, isto é, à porta de casa e num local público. Em ambos os casos, o foco da sátira centra-se no vestuário que enverga uma saia apertada, ridicularizando-se, assim, a sua aparência (e sexualidade?). O alvo é criticado por estar inadequada e ridiculamente vestido, sendo visado o seu comportamento, que não estaria à altura do comportamento esperado de alguém da sua condição.

NOTAS
 
1. As cantigas de vilão não foram compiladas nos cancioneiros da poesia trovadoresca que conhecemos. Porém, a rubrica desta cantiga atesta a sua existência, bem como o trânsito de motivos poéticos entre a rua e o paço. João de Gaia “segue a cantiga de vilão” aproveitando-se de parte do que parece ser os eu refrão. A segunda rubrica esclarece o sucedido: um alfaiate feito cavaleiro em resposta a um pedido do bispo de Lisboa. Com isso, até muda de nome. O acontecimento e o remoque revelam a possibilidade de mobilidade social e a reação jocosa do segmento social “inchado”, o dos cavaleiros.
 
2. Excluindo-se o refrão, porém, a cantiga só reporta as circunstâncias de exercício de um ofício: o de alfaiate. Ele confeciona e conserta roupas em frente à sua casa, diante ou no meio da praça. É o refrão (seguido da cantiga de vilão) que promove a sátira na medida em que aproxima mundos que apareciam separados. Nascida na rua, a cantiga migra para o paço para reportar de forma jocosa uma alteração social promovida pelo rei. Mas não ri do rei, ri de quem, mesmo mudado, não pode esconder a própria origem.
 
3. João de Gaia incorpora na sua cantiga o refrão da cantiga de vilão, embora com um sentido diferente.
 
4. A cantiga original cujos versos a rubrica que antecede o texto de João de Gaia transcreve parece ser dita em voz feminina (ou, pelo menos, o seu refrão), que se dirige a um cavaleiro (“Vedes o cós, ai, cavaleiro”). Pelo que nos mostra este fragmento da cantiga, haveria, pois, cantigas populares (de vilãos ou vilãs) ditas em voz feminina.
 
5. A Arte de Trovar apresenta a seguinte definição geral das cantigas de seguir: “Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou em p[alav]ras ou em todo.” Assim, segundo esta definição, temos “dois homens”, os quais “seguem” «cada um outra cantiga». “Seguir outra cantiga” significa o seguinte: os trovadores servem-se de uma cantiga anterior para fazer uma nova cantiga.
 
6. Esta cantiga é uma sátira contra um vilão, antigo alfaiate elevado pelo rei (e por interferência do bispo) à categoria de cavaleiro. João de Gaia retoma, pois, uma anterior cantiga de vilãos, conservando não só a música e as imas (ao que se supõe), mas também o refrão, e modificando, ao mesmo tempo, o corpo das estrofes. Do conjunto resulta que, do sentido mais ou menos erótico que esse refrão teria na primitiva cantiga, se passa para uma alusão clara tanto à antiga profissão do visado (“Vedes o cós”), como à sua recente promoção (“ai, cavaleiro!”). Ou seja, como diz a Arte de Trovar, o refrão ganha “outro entendimento por aquelas palavras mesmas”.

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