Português: Francisco José Viegas
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quinta-feira, 24 de abril de 2025

Análise do poema "De Amor", de Francisco José Viegas

 
DE AMOR

 

despede-te de mim, bate devagar à porta:

tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,

ruínas, tarefas de pão e linho, não dar

nome às coisas senão o de um vago esquecimento

 

abandono. despede-te de mim como se a vida

recomeçasse agora, não me procures onde

a memória arde e o destino se ausenta.

 

tudo são banalidades, afinal, quando assim

se recomeça e a vida falha como um material

solar e ilhéu. levamos poucas coisas, basta

um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

 

os muros brancos de uma casa, o espaço

de uma mão. arrumo as malas e os sinais,

aquilo que nos adormece em plena tempestade.

 
    O poema abre com um tom de despedida íntima (atente-se no uso da segunda pessoa do singular quer de formas verbais, quer do pronome pessoal). Por outro lado, o recurso ao advérbio de modo «devagar», a caracterizar a forma como o «tu» bate à porta sugere delicadeza, quase como se a separação fosse feita com cautela e cuidado. A suavidade contrasta com a dor implícita no adeus.

    Os versos seguintes sugerem a ideia de recomeço e de reconstrução de algo que foi destruído, num desejo de recomeço a partir de escombros e ruínas. O nome «escombros» remete para um passado destruído – talvez uma relação amorosa, como indicia o título – que agora necessita de uma reconstrução.
    As “tarefas de pão e linho” parecem apontar para o quotidiano, gestos da vida doméstica, simples. Estamos perante atos que remetem para a nutrição e o vestuário, os quais fazem parte da vida, sendo que, no primeiro caso, sustenta até a existência.
    A primeira estrofe termina com a intenção de não nomear as coisas, antes as esquecer. Parece haver um desejo de apagar, de esquecer, de deixar para trás o peso / as coisas do passado, porém não se trata de um esquecimento violento, traumatizante, mas suave, como o dá a entender o adjetivo «vago», a qualificar o esquecimento.

    A segunda estrofe retoma a ideia do abandono e da partida, introduzindo a noção da despedida entre o sujeito poético e o «tu», através de uma comparação que a associa a um recomeço: “despede-te de mim como se a vida / recomeçasse agora”. Segue-se novamente a recusa do passado, traduzida pelo pedido do «eu» ao interlocutor no sentido de não o procurar onde a memória ainda vive, onde arde (metáfora hiperbólica). A memória arde, queima, causa, portanto, dor. Por sua vez, o destino ausenta-se, ou seja, não se faz sentir, perdeu a direção.

    A terceira estrofe – novamente uma quadra, à semelhança da primeira – retoma a dor, o sofrimento e os acontecimentos das anteriores: “tudo são banalidades”. Diante do recomeço, tudo se torna banal. Por outro lado, a vida é falha, frágil, visto que “falha como um material / solar e ilhéu”. A comparação quase torna a vida algo físico, tangível, e os adjetivos «solar» e «ilhéu» traduzem as ideias de luz e isolamento, solidão, sugerindo que a vida, embora sendo bela, comporta esses sentimentos. Afinal, quando uma relação termina, se desfaz, e os intervenientes se afastam, entram num mundo de solidão, de isolamento, mesmo que temporário. Perante este cenário, o importante é levar poucas coisas desse passado, dessa relação que terminou: “levamos poucas coisas”. São suficientes “um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso”, metáforas que indiciam que, no processo de recomeço, o essencial é o respirar, encontrar a estabilidade e o equilíbrio.

    A última estrofe – um terceto, tal como a segunda – abre com uma série de metáforas que prosseguem a enumeração daquilo que o sujeito poético leva do passado: a do muro branco evoca paz, pureza, ao passo que os muros e a casa traduzem uma imagem de produção e refúgio; a da mão pode simbolizar o afeto; o ato de arrumar as malas associa-se à partida, mas também à preparação para algo novo, enquanto os sinais remetem para memórias, vestígios de algo que existiu, todavia entretanto terminou, no fundo, “aquilo que nos adormece em plena tempestade”, isto é, que nos acalma durante momentos conturbados. Pode tratar-se do amor na sua forma mais serena ou da aceitação da perda.

    Em síntese, estamos na presença de um poema que reflete sobre o fim de uma relação amorosa e a resiliência necessária para enfrentar, bem como o processo de recomeço.

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