Português: 01/04/25

terça-feira, 1 de abril de 2025

Análise do poema "Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes

1
De um amante
uma vez
faço mil amantes
 
2
Porque o meu amante
tão pobre, Juan Yepes
foi o pão o peixe a água
das minhas bodas de Caná
 
3
Ó mulher inspirada
que desperdiças o caríssimo
unguento de Bethânia,
ensinas-me a gerir
a escassez de recursos
 
4
Os amantes não se contam, Don Juan
ó contabilista dos contabilistas
 
5
Sangue que foi vinho que foi água
onde nadam mil peixes
que foram um peixe só
alimentado por pão partido em pequeninos
o amor não se conta, ó escritoras de escritos
 
6
Não contem comigo para usar
o jargão da Marie Claire
e a jaqueta de Courrèges
 
7
O mártir pede o pano da Verónica emprestado
autorretrato dos autorretratos alta-costura
e assim misturo Cristo com isto
 
8
De que me serve que esse homem
tenha sofrido se eu sofro agora?
 
9
Marta & Maria acopladas fundam
uma firma no firmamento
 
10
Eu louvo o meu tempo de santos
Computadores, ó 70! X 7!
(o meu martírio branco consiste em louvar
o que não interessa nem ao Menino Jesus)
 
    Este poema pertence ao livro Clube da Poetisa Morta, datado de 1997. O título do texto (tal como a nona estrofe) alude ao tema musical “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, o qual se crê fazer referência à sigla LSD e aos efeitos alucinogénios do ácido lisérgico e que faz parte do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
    Na composição poética, Adília Lopes, aparentemente, estabelece um diálogo inspirado entre experiências pessoais e acontecimentos bíblicos. O Saldanha refere-se à Praça Duque de Saldanha, em Lisboa, usada sobretudo como ponto de passagem, intercâmbio ou encontro. Por seu turno, a expressão “estar em pulgas” indica expectativa, mas também pode ser lida em sentido literal (há pulgas na praça).
    A primeira estrofe parece apontar para a multiplicação do amor ou dos amantes, o que pode querer dizer que o sentimento amoroso, uma vez experimentado, pode expandir-se e desdobrar-se em múltiplas experiências.
    Por sua vez, a segunda estrofe alude ao episódio bíblico da multiplicação dos alimentos, concretamente a dos pães e dos peixes. O amante do «eu» poético era pobre, Juan Yepes. Trata-se de Juan Yepes Álvarez (1542-1591), nome de nascimento, que depois ficou conhecido como San Juan de la Cruz, um religioso e poeta místico do Renascimento espanhol e um dos grandes nomes da literatura mística cristã, conhecido pela sua poesia espiritual e pela ideia do amor divino. Juan Yepes foi ainda reformador da Ordem dos Carmelitas e cofundador da Ordem das Carmelitas Descalças de Santa Teresa de Jesus. Desde 1952, tornou-se o patrono dos poetas em língua espanhola. Os nomes comuns «pão», «peixe» e «água» remetem para o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes e da transformação da água em vinho nas Bodas de Caná. De facto, trata-se do primeiro milagre de Jesus: de acordo com o Evangelho de S. João, ele estava, juntamente com Maria, sua mãe, presente num casamento quando o vinho acabou. A Virgem, mal se apercebeu da situação, informou o filho, que ordena aos servos que encham seis talhas com água e, ao servi-la, os convidados percebem que a água foi transformada no melhor vinho da festa. Deste modo, no contexto do poema, a menção às Bodas de Caná parece indiciar um amor que se multiplica ou que possui um fundo milagroso. Por outro lado, o amor do «eu» pelo amante não era material, mas espiritual e essencial como os elementos básicos da vida. Note-se, ainda, que o vinho, na tradição cristã, representa a alegria, a comunhão, tendo acabado por se tornar um símbolo eucarístico.
    A terceira estrofe remete novamente para a Bíblia, especificamente a receção de Jesus por Maria e Marta. Ela abre com uma apóstrofe dirigida a uma “mulher inspirada”, chamada Maria, que ungiu Jesus Cristo. Perante as críticas dirigidas a esse comportamento perdulário dessa figura feminina, que poderia ter vendido o perfume e dado o dinheiro aos pobres, Jesus recorda que esta será a preparação para o dia do seu sepultamento. Ainda de acordo com o texto bíblico, a mulher derramou o dito unguento muito caro nos pés de Jesus, enxaguando-os depois com os seus cabelos. O adjetivo «inspirada», presente no verso inicial da estrofe, pode ser entendido como um elogio à ação da mulher por ter agido movida por um impulso nobre, ou, em alternativa, como uma ironia, sugerindo que a inspiração pode ser mal interpretada ou desperdiçada. Por sua vez, a forma verbal «desperdiças» traduz a crítica presente na Bíblia e feita pelos discípulos, nomeadamente Judas Iscariotes, que questionaram a razão de o perfume não ter sido vendido para ajudar os pobres. Os dois versos finais parecem possuir uma contradição irónica, dado que a mulher referenciada desperdiçou um recurso valioso (o unguento), mas o «eu» declara que a ensina a lidar com a escassez de recursos, num jogo claro entre generosidade e escassez.
    Na quarta estrofe, o sujeito lírico defende a singularidade da experiência num registo imprecativo, dirigido a Don Juan, tratado, de forma irónica, como o “contabilista dos contabilistas”, referindo-se aos inúmeros amores que a tradição lhe aponta. D. Juan é uma personagem mítica do teatro espanhole, por extensão, da literatura universal, que constitui o protótipo do libertino impenitente. Da autoria discutida, atribui-se tradicionalmente a sua criação a Tirso de Molina, na sua obra El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra, de 1630. D. Juan personificaria uma lenda sevilhana que inspirou vários autores, como, por exemplo, Molière, Lorenzo da Ponte, Lord Byron, etc. No fundo, não passa de um libertino que crê na justiça divina, mas acredita igualmente que poderá arrepender-se e ser perdoado antes de comparecer perante Deus.
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera os símbolos já referidos: na Última Ceia, o vinho foi transformado em sangue de Cristo (símbolo da redenção); nas bodas de Caná, a água foi transformada em vinho (símbolo da alegria e da celebração, água essa em que, metaforicamente, “nadam mil peixes / que foram um peixe só”, metáfora essa que reivindica um amante que vale por muitos. Há aqui a ideia da continuidade nos processos de transformação: algo muda ao longo do tempo, mas mantém conexões com as suas «versões» anteriores. No caso do poema, estamos perante algo que se transforma em qualquer coisa maior, mais significativa, quase uma ascensão simbólica: o que hoje é sangue (símbolo da vida) já foi antes vinho (alegria, celebração, comunhão) e, previamente, água (a matéria-prima básica, a origem de tudo). A progressão sugerida por Adília Lopes parece apontar para o percurso da vida e da espiritualidade: primeiro, há a origem e a simplicidade (a água, elemento primário associado à pureza, ao batismo); depois, dá-se a transformação e a celebração (o vinho; no fim, chega a consagração e o sacrifício (o sangue, o sacrifício máximo, a redenção, como no sacrifício de Cristo). Ou seja, o amor tem início como água (algo puro, básico, essencial), transforma-se, de seguida, em vinho (algo mais intenso, que dá prazer, é embriagante, como a paixão), para se tornar, no final, sangue (um estado extremo, talvez de sacrifício, dor e/ou entrega total). O amor não se mede, não se quantifica, mas cresce e intensifica-se com o tempo, ainda que implique também sofrimento ou sacrifício. Por sua vez, a imagem do pão partido remete tanto para o milagre da multiplicação dos pães quanto para a Eucaristia, na qual Cristo se oferece em pedaços – a hóstia – aos fiéis. No verso final, o «eu» dirige-se às “escritoras de escritos”, parecendo criticá-las por procurarem definir o amor, alertando-as que o mesmo não pode ser medido, calculado ou explicado por meio de palavras, lembrando o célebre soneto de Camões (“Amor é um fogo que arde sem se ver”), no qual o poeta procura definir o amor, para concluir que, afinal, é indefinível e contraditório.
    A sexta estrofe contém referências ao mundo contemporâneo da moda. “Marie Claire” é uma revista feminina de caráter mensal, iniciada em França em 1937, que posteriormente começou a ser publicada também noutros países, nos respetivos idiomas. O seu lema era “Mais do que uma cara bonita”. Por seu turno, André Courrèges foi um estilista francês nascido em 1923, reconhecido sobretudo pelos seus desenhos ultramodernos. Courrèges associou à indumentária feminina uma maior simplicidade, com traços que permitiam uma maior liberdade e comodidade. Os seus desenhos caracterizavam-se por formas geométricas, baseando-se em quadrados, trapézios e triângulos. Em 1965, lançou uma campanha chamada “Era espacial”, a qual revolucionou o mundo da moda, sendo considerado um visionário, criador de um universo radical, pessoal e polimorfo no universo da moda. O verso inicial contém uma negação categórica (“Não contem comigo”), deixando claro que não faz parte de um determinado grupo ou estilo, numa espécie de posicionamento pessoal contra algo que parece imposto ou esperado. Neste caso, trata-se da negação do «jargão» da referida revista de moda, beleza e comportamento feminino. Poderemos estar, neste passo, perante uma crítica ao discurso comercial e superficial, a recusa de modas, bem como a rejeição de um tipo de imagem e empoderamento feminino, ligado ao consumismo e à estética, numa visão superficial da mulher. Por outro lado, o «jargão» indicia uma maneira de falar comum a uma atividade ou grupo específico, comumente usada em grupos profissionais ou socioculturais. Quanto à «jaqueta», pode simbolizar o consumismo e a moda como imposição que o «eu» poético recusa enquanto algo que representa um padrão estético pré-definido. Além disso, o mundo da moda, nomeadamente de grifes famosas, frequentemente dita como as mulheres se devem apresentar socialmente, algo que o sujeito lírico recusa seguir. Deste modo, Adília Lopes estaria a colocar-se fora do discurso da moda e das revistas femininas, por não se encaixar nesse universo de futilidade e convenções sociais.
    A sétima estrofe mistura referências religiosas, arte e moda, com ironia e em tom provocatório. O verso inicial faz alusão à lenda do véu de Verónica, um dos episódios inscritos na Via Sacra. Assim, de acordo com a tradição cristã, Verónica enxugou o suor e o sangue do rosto de Cristo quando ia a caminho do Calvário, tendo o seu rosto ficado impresso no pano (esta cena não consta da Bíblia). Note-se que o complexo verbal «pede emprestado» quebra o tom sagrado da referência bíblica. Por outro lado, quem é o «mártir»? Um narcisista? O autorretrato dos autorretratos constituirá uma denúncia da obsessão pela autoimagem, do culto da imagem? O conceito do autorretrato surge associado à moda, ao luxo e ao consumismo. A alta costura remete para a sofisticação, mas, no caso do poema, parece apontar para uma certa artificialidade. O último verso reconhece claramente a associação irreverente entre o sagrado (Cristo) e o profano, o mundano («isto»). Cristo é o símbolo da espiritualidade, do sacrifício, do sofrimento em prol da humanidade, enquanto o pronome demonstrativo invariável «isto» parece apontar para o que foi citado antes: a moda (o próprio poema?). De acordo com uma interpretação livre, a estrofe parece questionar o modo como a dor e a imagem são manipuladas na sociedade atual. Deste modo, a figura do mártir moderno que pede o pano de Verónica emprestado pode indiciar a imagem de alguém obcecado pela exibição do sofrimento ou da busca de validação através dele.
    A oitava estrofe reproduz os versos finais do poema “Cristo na cruz”, inscrito na derradeira obra poética de Jorge Luís Borges, intitulada Os conjurados. São perguntas sem resposta de um Borges cego, perto do final da sua vida. O sofrimento de Jesus (ou do mártir) não tem qualquer valor real para o «eu» poético, que sofre no presente. De acordo com o cristianismo, a paixão de Cristo é vista como redentora, como um sacrifício que dá sentido à dor do ser humano. No entanto, o sujeito poético rejeita essa ideia: o sofrimento de Cristo no passado não alivia a dor no presente, ou seja, o sofrimento não possui um sentido transcendente. O sofrimento do «outro» (de Cristo ou de qualquer outro mártir) pertence ao passado, mas “eu sofro agora” – o que importa, para quem sofre, é o momento presente. O sofrimento não é transferível, não é algo que pode ser substituído ou compensado por uma dor anterior. Deste modo, o «eu» poético rejeita a ideia de consolo religioso, de que o refúgio na religião traz conforto, alivia a dor.
    Tendo em conta que o poema contém diversas referências a Cristo e ao pano de Verónica, descrito como “autorretrato dos autorretratos alta costura”, Marta e Maria podem ser identificadas como as duas irmãs de Lázaro. Deste modo, os nomes «firma» e «firmamento» remetem também para a origem bíblica das duas figuras. Por outro lado, esta estrofe exemplifica o gosto de Adília Lopes pelas dualidades. De acordo com a professora Rosa Maria Martelo, a poetisa reúne as identidades diferenciadas da diligente Marta e da contemplativa Maria; a dualidade Marta e Maria é equivalente à dupla que reúne Adília e Maria José, que, também graças à máquina de coser, fundaram juntas uma firma no firmamento (in poema “Op-Art”) – no caso, entre as estrelas da escrita contemporânea. Note-se que o verbo «ligar» significa, neste caso, ligar, combinar, unir tessituras, pedaços de discurso, fazer roupas novas com vestidos velhos.
    A estrofe final – uma quadra – mistura elementos religiosos («santos») com elementos modernos, do domínio da tecnologia («computadores»), indiciando um contraste entre o domínio do espiritual e o do profano. O sujeito poético afirma louvar o tempo atual, o da tecnologia, da modernidade, representado(a) pelos computadores, o que parece constituir uma crítica irónica sobre o que é venerado hoje em dia. O segundo verso contém uma referência bíblica, nomeadamente ao Evangelho de S. Mateus (18, 21-19, 1), onde Jesus responde a uma pergunta feita pelo apóstolo Pedro (“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes tenho de o perdoar? Até sete vezes?”. Jesus responde-lhe: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.”). Ora, esta resposta sublinha a necessidade de perdoar verdadeiramente.
    O dístico derradeiro surge entre parênteses e traduz o sarcasmo do «eu» lírico, ao demonstrar que se sente martirizado por dar valor a coisas que ele próprio considera sem valor. O que louva (ou escreve ou pensa) não tem qualquer importância nem para o Menino Jesus. Trata-se de uma expressão idiomática que aponta para algo desinteressante, maçador, banal. O que o sujeito poético louva não tem interesse, é fútil ou irrelevante.
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