Português: Isabel Gouveia
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terça-feira, 29 de abril de 2025

"O vencedor vencido": análise do poema, de Isabel Gouveia

 
Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.
 
    O sujeito poético inicia o poema com uma constatação amarga: o vencedor não é facilmente amado (“Não é fácil amar o que venceu”). De certa forma, esta ideia de que o amor não se dirige ao vencedor contraria o senso comum. Pelo contrário, o amor é destinado ao derrotado (“ao que perdeu”), à figura fragilizada, mesmo que seja culpado de algo (da própria derrota?). Ou seja, ao invés do que é comum, afirma-se a preferência por amar o que falha e é derrotado, em vez daquele que triunfa. Deste modo, o vencedor, em lugar de ser celebrado, é marginalizado no que toca ao amor, pelo que a vitória, o triunfo, em vez de atrair o sentimento amoroso, repele-o.

    O quinto verso introduz uma ideia contrária, traduzida pelo recurso à conjunção coordenativa adversativa «todavia»: aquele que vence, mesmo tendo triunfado, não encontra paz, pelo contrário, “multiplica / sobre si as angústias de perder. Ele carrega uma angústia: sente o peso da derrota, não por ter perdido, mas por recear perder o que ganhou. A sequência de formas verbais presentes no verso 7 – “interroga, analisa e só complica” – denuncia o seu estado de inquietação natural. Assim sendo, pode concluir-se que a vitória não traz segurança e tranquilidade, mas fragilidade, dúvida, e ele carrega um conflito interno, dado que procura encontrar um sentido, mas não o consegue: “aquilo que não perceber”.
    Toda esta situação conduz o vencedor a um “esgotamento prematuro”, proveniente da dúvida, da incerteza e da solidão que acompanha o triunfo, cuja consequência é a aceitação não de uma paz real, mas meramente provisória. No entanto, esse momento não dura, não é respeitado, em virtude “os homens” agirem violentamente contra ele, lançando-o contra o muro “e lhe atiram ao rosto essa vitória”, isto é, aquilo que foi uma conquista sua é usada como arma contra ele. A vitória é-lhe atirada ao rosto como uma acusação, não como glória. Aquilo que permitiria que se destacasse acaba por se tornar motivo de punição. Os homens, que representarão a sociedade, não toleram ou não perdoam o êxito.

    O poema desconstrói a ideia da vitória como glória e clarifica os seus efeitos colaterais ou consequências: solidão, incerteza, dúvida, desgaste, angústia e até rejeição social. Deste modo, o vencedor constitui uma figura que, ao invés de herói, se revela mártir da própria vitória. O título do texto ilustra esta noção: a vitória externa esconde uma derrota interior (e social).
    
    O triunfador alcançou o triunfo, porém, em simultâneo, passou a carregar o fardo das expectativas: dos outros, de si mesmo, dos “homens”. A vitória, assim, não é um momento de glória e de libertação, mas de angústia e aprisionamento. Ao longo do poema, ele revela angústia existencial (“multiplica sobre si as angústias de perder”), autoquestionamento constante (“interroga, analisa e só complica”) e culpa por ter superado os outros. Tudo isto leva-o a viver num estado de vigilância e de desgaste mental e, quando procura a paz, mesmo que provisória, é castigado.

    Do ponto de vista simbólico, o vencedor é visto como alguém que faz uma afronta ao coletivo – os “homens” –, uma figura mítica que quebra a harmonia do grupo por se destacar, o que o transforma num alvo. Deste modo, podemos concluir que a sociedade não tolera o que escapa à norma, a uma certa mediania, nem mesmo o sucesso individual.
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