Português: Tomaz Kim
Mostrar mensagens com a etiqueta Tomaz Kim. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Tomaz Kim. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Paz": análise do poema de Tomaz Kim

 
PAZ
 

Aqui foi a casa:

Alva a toalha e o pão,

O berço além.

 

Breve a canção:

Bater de asa

O sorriso de mãe.

 

Veloz a hora:

Agora,

Só o coaxar noturno e certo

Das rãs,

Enche o campo deserto.

 
    Tomaz Kim foi um poeta, tradutor e ensaísta literário angolano, de nome completo Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo. Nasceu no Lobito, Angola, em 2 de fevereiro de 1915, e faleceu em Lisboa, a 24 de janeiro de 1967.

    Neste poema, constituído por dois tercetos e uma quintilha, de versos livres, curtos e sem pontuação, aborda a temática da passagem do tempo e da efemeridade da vida. O verso inicial remete para o passado, como se pode comprovar pela presença da forma verbal «foi», no pretérito perfeito do indicativo, situado num espaço, indiciado pelo advérbio de lugar «aqui» e pelo grupo nominal «a casa». Ou seja, o «eu» poético exprime a lembrança de um lar que existiu, mas já não existe, ou, pelo menos, já não existe como antes. Agora, resta apenas uma lembrança. A toalha, o pão e o berço remetem para o universo doméstico: é uma imagem de simplicidade, segurança e acolhimento – trata-se de elementos do quotidiano que representam a vida familiar, acentuado pela referência ao “berço além”, sinónimo da existência de crianças, de filhos, naquela casa, o que constitui uma referência à infância, um tempo de inocência e ternura.

    A segunda estrofe é constituída por imagens que sugerem o domínio do passageiro, como o exemplifica a alusão à canção breve, símbolo da transitoriedade. Essa ideia é reforçada pela imagem do “Bater de asa”, que indicia o efémero, o fugaz, como o tempo e a infância que passam. Também o sorriso da mãe constitui uma imagem forte que transmite s noções de calor humano, carinho, afeto, proteção, bem como um sentimento quase sagrado, ligado ao cuidado e à memória afetiva. Esse sorriso e tudo o que ele simbolizava foi um bater de asa, não foi duradouro; pelo contrário, foi passageiro – pelo menos, é essa a sensação do sujeito lírico – e já não existe mais, pois pertence a um passado que já passou e não voltará. Tudo passou muito rápido, como o bater de asas de uma ave.

    A terceira e última estrofe abre com um verso que retoma o tema central do texto: a passagem do tempo e a brevidade da vida – “Veloz a hora”. O passado a que se referiu anteriormente passou depressa. De seguida, através do advérbio de tempo «agora», salta para o presente, que é um tempo que contrasta com o passado. De facto, atualmente, não há mais risos, alegria, carinho, proteção, nem vida doméstica e familiar, que foram substituídos pelo “coaxar noturno e certo das rãs”. A noite é uma parte do dia propícia à solidão e à reflexão. Essa solidão, agora, é preenchida apenas pelo som do coaxar das rãs. O ambiente, que outrora era pautado pela presença humana, hoje é ocupado unicamente pelo elemento animal. Por outro lado, a alusão ao coaxar dos batráquios remete para um som constante, repetitivo, monótono, que preenche o silêncio, mas não traz alegria ou felicidade ao sujeito poético. Em suma, do passado restam apenas as lembranças, pois agora tudo é solidão, tristeza, monotonia e melancolia.

    O poema fecha com a imagem do “campo deserto”, o que remete para uma imagem de solidão. Agora, o tempo passou e só resta o som das rãs, num lugar vazio, apenas preenchido pelas lembranças. Deste modo, o “campo deserto” constituirá uma metáfora da ausência, do presente esvaziado da presença humana e do afeto, carinho e amor que antes caracterizava aquele espaço, o que contrasta intensamente com a imagem da casa evocada nos versos anteriores. Note-se que um campo pode ser associado a um lugar fértil, aberto à vida, à natureza, porém, quando é adjetivado como «deserto», passa a significar abandono, silêncio e solidão. O campo, que antes era habitado, sinónimo de família, amor e intimidade, preenchido por sons humanos, agora é dominado pelo silêncio humano. O tempo passou, a vida desapareceu daquela casa, e, presentemente, sobra unicamente o eco da memória. O adjetivo «noturno», além do já referido, remete para a noite, para o fim do dia, o que, simbolicamente, simboliza o fim de um ciclo, a morte e o esquecimento. O adjetivo «certo» significa que o som das rãs é constante, inaceitável, repetido – ele substitui os sons humanos do passado, como a voz da música, o som da canção, o riso.

    Nesse contexto, as imagens da “toalha alva”, do “pão”, do “berço” e do “sorriso de mãe” contrastam com o “coaxar noturno e certo / Das rãs” e o “campo deserto”, desde logo porque as imagens dos dois tercetos carregam valores simbólicos de acolhimento, alegria, calor humano, afeto, memória afetiva e pureza. A “toalha alva” simboliza as ideias de limpeza, ordem, cuidado, enquanto o “pão” remete para a nutrição, a vida e a comunhão familiares. O “berço” associa-se claramente ao tempo da infância, da origem da vida e do amor protetor. Por seu turno, o “sorriso de mãe” representa ternura, proteção, ideias sugeridas pela figura materna. Tudo isto trabalha para construir uma imagem de aconchego, proteção e vida familiar e íntima, onde há afeto e relações humanas. Pelo contrário, o “coaxar noturno e certo das rãs” e o “campo deserto” associam-se a outro universo simbólico. De facto, esses elementos representam a natureza impessoal, que continua o seu percurso após a partida dos seres humanos, levados pela morte. O som das rãs é repetitivo, monótono, quase mecânico, opondo-se ao da canção, alegre, e à espontaneidade do sorriso materno. Por sua vez, o campo deserto é um espaço aberto, sem limites e sem proteção, silencioso e solitário, contrastando com o lar fechado, íntimo, familiar e seguro que constituía a casa da infância. Este contraste traduz a passagem do tempo – desde logo sugerida pela estrutura fragmentada do poema (os versos curtos e a ausência de pontuação) – que tem como consequência a perda de uma presença afetiva e a transformação do espaço vivido em espaço de memória.

    O título do poema, tendo em conta que o texto evoca tanto a memória de um passado alegre e afetuoso quanto o vazio e a desolação do presente, pode parecer curioso. Por um lado, pode representar a paz que surge como a solidão e o silêncio após as mudanças ocorridas por efeito da passagem do tempo, ou seja, o presente é desolador, mas, ao mesmo tempo, é silencioso, calmo. Tratar-se-á da paz de um espaço desabitado, hoje de contemplação após a passagem do tempo, ou a paz num sentido fúnebre ou espiritual, quer dizer, a que surge com a morte, com o fim de um tempo, de um ciclo. Por outro lado, o título pode ser entendido com a memória de um passado bom. Neste sentido, a casa do passado simboliza uma forma de paz vivida: havia comida, amor, segurança e proteção. Esta paz vem associada à simplicidade da vida familiar e quotidiana, ao pequeno e singelo gesto que perdura na memória. Em suma, o título constitui uma espécie de síntese do poema: um trajeto do afeto ao silêncio, da vida à lembrança, da presença à ausência.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...