Português: 14/04/25

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

    V.1. Caracterização

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana

        5. Estela

        6. Léonie

        7. Pombinha

        8. Jerónimo

        9. Piedade

        10. Leandra

        11. Ana das Dores

        12. Dona Isabel

        13. Leocádia

        14. Zulmirinha

        15. Augusta Carne-Mole

        16. Neném

        17. Velho Botelho

        18. Henrique

        19. Agostinho

        20. Alexandre

        21. Paula

        22. Albino

        23. Firmo

        24. Senhorinha

    V.2. O percurso existencial das personagens femininas

    V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço

    Um dos valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais. As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes (beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações. Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas, tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam "objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga". Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera" (FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO, 2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos, realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável. A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar, onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência, a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza, "crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja "subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro  (op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda. Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização" de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado. Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se "quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito" abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar. Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas, miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu. Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op. cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha, "a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo;  [...].(op. cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para "crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida: personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p.. 102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica, uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os "bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço, era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa - apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p. 129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância). No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista, [...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...] Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?... [...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p. 140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já, prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição": [...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si. (op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração" para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie, os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis [...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p. 218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado. Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo europeu.

(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo

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