Um dos
valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua
facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais.
As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo
narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes
(beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das
personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações.
Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em
que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas,
tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante
do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão
animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os
condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela
maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o
despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam
"objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres
humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de
animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga".
Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e
negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o
trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra
cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera"
(FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as
abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres
aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a
pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do
fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia,
condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO,
2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos,
realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações
de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável.
A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a
narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar,
onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos
instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela
como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como
o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o
indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de
interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são
estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico
representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua
preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência,
a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que
ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza,
"crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja
"subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua
liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E
segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo
ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada
por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão
tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
(op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma
Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela
passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no
dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta
falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão,
e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla
maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma
estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do
fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além
de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do
vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo.
Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi
fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração
tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos
empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de
fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda.
Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a
pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem
culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante
portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a
operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia
estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão
pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma
classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização"
de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em
sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano
e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no
pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de
ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica
quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço
também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele
representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo
dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao
tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de
alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua
liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado.
Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como
uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e
clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao
perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então,
erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém
conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de
lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda
numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações
e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência
dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se
"quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito"
abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar.
Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o
mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do
Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico
e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam
personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas,
miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são
descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços,
como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas
irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op.
cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do
homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha,
"a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa
homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava
a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de
espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía,
numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre
entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam
como a uma pessoa do mesmo sexo; [...].(op.
cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se
geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no
caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para
"crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida:
personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se
inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram
influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou
o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o
que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma
leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p..
102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas
nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito
livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração
diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença
de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica,
uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os
"bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida
em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças,
discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões
de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a
moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua
afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio
em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha
estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se
para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico
o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço,
era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a
encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira
de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção
da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa -
apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não
conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de
Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p.
129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal
que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do
meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como
determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância).
No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não
tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a
moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito
de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual
de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e
o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência
animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara
explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado,
apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista,
[...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a
comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e
o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu
Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a
fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça
vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro
valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...]
Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar
nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham
covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?...
[...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro
sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no
mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a
senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e
querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés
que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens!
homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p.
140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida
familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já,
prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição":
[...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício
como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da
estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego;
fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus
lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela
boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si.
(op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista,
segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo
ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração"
para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a
imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de
Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o
masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie,
os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em
diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis
[...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p.
218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se
repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo
vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava
preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia
mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois
sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado.
Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por
sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara
ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo
acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do
meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma
sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo
europeu.
(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo