Português

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Exames nacionais de 12.º ano - Conteúdos

     O Ministério da Educação e Ciência alterou os conteúdos a avaliar nos exames nacionais das disciplinas.

     Assim, os exames nacionais de 12.º ano de Português (código 639), Matemática A (código 635), História A (código 623) e Desenho A (código 706), a partir do presente ano letivo, têm por referência os programas dos 10.º, 11.º e 12.º anos de escolaridade.

"Campo de Trigo com Corvos"

  • "Campo de Trigo com Corvos" é um quadro de 1890 (tela de 50 X 103 cm), da autoria do pintor holandês Vincente van Gogh (1853 - 1890) que se inscreve no contexto da pintura de paisagens.
  • Assunto: O quadro retrata uma revoada / um bando de corvos sobrevoando um campo de trigo, sob um céu carregado e ameaçador.
  • Elementos do quadro:
  • Campo de trigo:
  • O trigo dourado está pronto a ser colhido;
  • A luminosidade do amarelo revela indícios de alguns raios solares que rompem a densa camada de nuvens;
  • As linhas diagonais do trigal sugerem um efeito de movimento, efeito da ação do vento sobre o campo;
  • O trigal está ainda marcado por cercas verdes e três caminhos. 
  • Três caminhos:
  • São divergentes e perdem-se ao longe;
  • O primeiro, à esquerda, é escarpado, num terreno íngreme;
  • O do meio é sinuoso, perdendo-se no interior do trigal, mas conduz a algum lugar situado para além do campo;
  • O terceiro, à direita, está livre de obstáculos, seguindo para fora do trigal;
  • Estão pincelados sinuosamente em tons de verde e vermelho. 
  • Corvos:
  • O bando de corvos parece estar em debandada / fuga;
  • O preto das aves contrasta com o amarelo, com o azul e branco, acentuando a movimentação do seu voo, que indicia uma fuga em busca de um lugar seguro, na iminência de uma tempestade;
  • De facto, se a tradição encara a figura do corvo como símbolo de maus presságios e de morte, no Génesis é o símbolo da perspicácia: a ave vai verificar se a terra reaparecerá na superfície das águas depois do dilúvio.
  • Céu:
  • O céu escuro e ameaçador, conjuntamente com a presença dos corvos, reflete um ambiente profundamente negativo;
  • O contraste entre o amarelo do trigal, sugerindo volume e vivacidade, e o azul intenso do céu, misturado com o preto, sugere negatividade, tensão, inquietação, agitação;
  • O céu azul promove um efeito de profundidade;
  • As duas nuvens claras no céu, uma mais ao centro (encobrindo o sol?, dissimulando-o?) e outra mais à esquerda, fazendo contrastar o preto e o branco, realçam um céu tempestuoso.

Análise do poema "Gato que brincas na rua"

                À semelhança do que faz em "Autopsicografia", Pessoa parte de uma imagem, de uma cena do quotidiano, neste caso um gato a brincar na rua. Além disso, o poema recorda-nos "Tabacaria", nomeadamente o momento em que a sua atenção se centra na rapariga que come chocolates, absorta do resto do mundo. Ora, sucede que é esta ausência de preocupação que o espanta, intriga e lhe desperta a «inveja» que espelha no poema em análise.

 
                O assunto da composição poética é o seguinte: o sujeito poético interpela um gato e constata que este é feliz porque é inconsciente / irracional.

 
                O tema do poema é, mais uma vez, a dor de pensar, motivada pela intelectualização do sentir, do qual decorrem outras temáticas caras ao poeta: a felicidade de não pensar; o isolamento do «eu» face às «pedras e gentes»; a inveja sentida pelo sujeito poético relativamente à inconsciência do animal; o desconhecimento, a sensação de estranheza do «eu» em relação a si.

 
                O poema abre com a apresentação da referida situação de um gato que o sujeito poético observa a brincar na rua como se fosse na cama (comparação que enfatiza o à-vontade e o conforto que o gato sente na rua, a sua casa; salienta também o caráter intuitivo do animal, que não lhe permite ter consciência das inconveniências e dos perigos que corre). Esta circunstância coloca-nos desde logo na presença de um animal feliz (porque está a brincar) e ao mesmo tempo tranquilo, despreocupado, indiferente e inconsciente do perigo (novamente a comparação «como se brincasse na cama») por ser irracional, não pensar. Por outro lado, sugere-se que o gato age no exterior e no contacto com os outros («na rua» - v. 1) com a mesma naturalidade com que brinca na cama, na sua «intimidade». Assim, o sujeito poético sugere que o gato não age segundo quaisquer convenções, antes vive apenas de acordo com a sua vontade e os seus instintos próprios de animal irracional. Além disso, tem «sorte», a sorte de ser inconsciente dos perigos, de ser irracional e não pensar, por isso cumpre o seu destino sem se lhe opor minimamente, não o questionando (v. 5), cumprindo assim, no fundo, a ambição de Ricardo Reis, que é a de sentir o destino como algo inevitável.

                O verso 4 (“Porque nem sorte se chama”) sublinha a ausência de intelecto no gato: só o facto de atribuirmos um nome ou fazermos um juízo acerca de uma realidade pressupõe o uso do pensamento, capacidade que o gato não possui, logo “nem sorte se chama”.

                Como não pensa, é o «nada», mas é-o plenamente e é feliz, porque não se conhece, regendo-se pelos seus «instintos gerais». «Todo o nada» que o gato é, porque não pensa no que é, pertence-lhe, já que depende exclusivamente dos seus sentidos. Ao contrário do que sucede com o sujeito poético, no gato predomina o sentir sobre o pensar: o animal não tem consciência do que sente, limita-se a sentir (v. 8). Em suma, é feliz «porque [é] assim», isto é, irracional, inconsciente, porque age por instintos. De facto, o gato rege-se por “leis fatais”, tem “instintos gerais” e apenas usa os sentidos (“E sentes só o que sentes”). Assim, ao andar ao sabor do destino, orienta-se pelos seus ins>tintos, sem intervenção da razão.

                O gato aceita calmamente o destino (v. 5), age apenas por instintos gerais (v. 7), isto é, comandado apenas pelos sentidos (v. 8), assim conseguindo ser feliz (v. 9).

 
                Por seu lado e perante este quadro, o sujeito poético não esconde a sua admiração e inveja relativamente à sorte do gato, ou seja, da sua liberdade, da sua felicidade, da sua irracionalidade, de ser inconsciente, de viver sem preocupações e poder brincar sem pensar em (mais) nada, o que é equivalente a dizer que inveja o gato pela felicidade simples resultante da vivência plena das coisas sem pensar, isto é, por causa da sua irracionalidade. O sujeito poético inveja a sorte do gato que, na realidade, nem «sorte se chama», isto é, não se trata de sorte, dado que são as leis da natureza que permitem ao felino ser um ser inconsciente feliz. Pelo contrário, ele tem a consciência plena de que é infeliz, ideia que é acentuada pela observação do gato e do seu comportamento, pois pensa-se, ao contrário do animal, daí que revela também angústia, tristeza e desolação por não conseguir abolir o pensamento (= porque se rege pela consciência e pelo pensamento) e, dessa forma, ser igualmente feliz. De facto, ele é um ser dominado pela racionalização, em busca constante de autoconhecimento, tudo racionaliza, transforma as sensações em pensamentos, daí a sensação de estranheza face a si mesmo.

                Nos dois versos finais, o sujeito poético constata que se diferencia do gato por não se dominar completamente, uma vez que transforma permanentemente as suas emoções em pensamentos. Por isso, sente-se estranho face a si mesmo. O paradoxo neles presente remete para a complexidade e confusão interiores e para a despersonalização: ao ser muitos, o sujeito poético acaba por se desconhecer a si próprio. A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no à fragmentação e à despersonalização.

 
                Podemos, em suma, afirmar que o sujeito poético inveja o gato por três razões:

1.ª) Tem "instintos gerais" e sente só o que sente, ou seja, não pensa sobre o que está a sentir, limita-se a sentir;

2.ª) É "um bom servo das leis fatais", isto é, não tenta contrariar as etapas inevitáveis da existência: nascimento, crescimento e morte;

3.ª) "Todo o nada que és é teu", ou seja, ao contrário do sujeito poético, o gato não pensa, não se questiona.

                Assim, esta dor de pensar que o tortura leva-o a desejar ser inconsciente como a ceifeira e como o gato, que não pensam.

 
                Por outro lado, podemos sintetizar a caracterização do gato da seguinte forma:

▪ Age por instinto / é instintivo.

▪ É livre e feliz, vivendo despreocupado, porque se rege pelo instinto e pela inconsciência e irracionalidade.

▪ “Bom servo das leis fatais”, cumpre o seu destino sem se lhe opor minimamente, não o questionando.

▪ Vive só por viver, sem saber por que vive, limitando-se apenas a sentir.

▪ Vive de acordo com as leis da natureza.

▪ Não se questiona.

 
                Por sua vez, o sujeito poético:

▪ Admira e inveja a “sorte” do gato, isto é, a sua felicidade, a sua irracionalidade, a sua inconsciência.

▪ É infeliz, porque pensa, racionaliza, é consciente.

▪ Reflete sobre si mesmo e é vítima da dor de pensar, o que gera nele angústia.

▪ É dominado pela racionalização, em busca permanente de autoconhecimento.

▪ Por isso, sente-se estranho relativamente a si mesmo, acabando por afirmar que se desconhece.

▪ A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no à fragmentação e à despersonalização.

 
                O contraste entre o sujeito poético e o gato é claro: o animal é feliz porque é inconsciente e irracional (“Todo o nada que és é teu”), enquanto o «eu», devido à sua racionalidade e introspeção (“Eu vejo-me”; “Conheço-me”) mostra-se fragmentado, despersonalizado, revelando angústia, infelicidade e sofrimento. O pensamento, a racionalidade provoca dor e angústia, daí a inveja sentida pela vida do gato e o desejo desse evadir de si próprio.

 
                É possível relacionar (intertextualidade) este poema com “Ela canta, pobre ceifeira”. De facto, ambos os poemas possuem o mesmo tema: a dor de pensar. Por outro lado, tal como o sujeito poético gostaria de ser inconsciente como a ceifeira para poder ser feliz, também desejaria ser feliz como o gato, que apenas sente (“sentes só o que sentes”), ao contrário do que se passa consigo próprio, que racionaliza e, por isso, sofre.

 
                A nível formal, o poema é constituído por três quadras, num total de 12 versos de redondilha maior (versos de 7 sílabas métricas). A rima é cruzada, segundo o esquema ABAB.

                Morfologicamente, predominam o nome e o verbo no presente do indicativo (traduzindo a factualidade da situação apresentada), escasseando os adjetivos («fatais», «gerais», «feliz»).

                Estilisticamente, a apóstrofe e a comparação dos versos 1 e 2 («Gato que brincas na rua / Como se fosse na cama») traduzem a despreocupação do gato por se tratar de um animal irracional, que se comporta “na rua”, ou seja, no exterior e no contacto com os outros, com a mesma naturalidade com que procederia “na cama”, realçando-se assim a ausência de convenções na atuação do bicho, que vive apenas segundo a sua vontade e os instintos próprios de animal irracional. A personificação do gato acentua o contraste entre a inconsciência do animal e a consciência do sujeito poético, que lhe provoca dor – a dor de pensar. A metáfora «Bom servo das leis fatais» remete para a inconsciência do gato, o seu caráter instintivo e a aceitação calma do destino. As antíteses são diversas e giram todas em torno da oposição gato (guiado pelos instintos, livre e feliz) / sujeito poético (angustiado, infeliz e torturado pela dor de pensar, porque guiado pelo pensamento): consciência / inconsciência, pensar / sentir; prisão / liberdade, angústia / alegria, felicidade / infelicidade. Todas elas apontam para as diferenças entre o sujeito poético e o gato. O paradoxo que finaliza o poema («Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu.» - vv. 11-12  e vv. 9-12) sugere a procura do autoconhecimento, a racionalização e a estranheza face a si mesmo, porque despersonalizado e fragmentado, e realça a oposição entre a inconsciência do gato e a consciência do sujeito poético.

                O vocabulário é simples e com valor denotativo. Por último, nota para as orações subordinadas causais:

. «Porque nem sorte se chama» (v. 4): a justificação da inveja da sorte do gato, pelo facto de este desconhecer o significado de sorte;

. «Que tens instintos gerais» (v. 7): apresenta a razão de o gato ser um cumpridor do destino;

. «És feliz porque és assim» (v. 9): traduz a razão da felicidade do gato (sentir).

 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Benfica - Barcelona: Antevisão

"Porque", "por que", "porquê?", "porquê"

1. Escreve-se "por que" (preposição + pronome) quando o pronome («que») surge ligado a um nome pelo sentido, assumindo a função de pronome ou determinante relativo.
  • O João explicou-me a razão por que (= pela qual) emigrara. (preposição "por" + pronome relativo "que")
  • Jorge Jesus, pode dizer-me por que (= por qual) motivo inventa tanto? (preposição "por" + pronome interrogativo "que")
2. Usa-se "porque" quando:
  • se trata de uma conjunção subordinativa causal:
  • O Rui estava muito triste porque o avô morrera.
  • funciona como advérbio interrogativo, ligado a um verbo, em:
  • orações interrogativas diretas:
  • Porque faltaste à aula?
  • orações interrogativas indiretas:
  • O professor queria saber porque a aluna faltara à aula. 
  • títulos do tipo "Porque me viciei em bolas de Berlim.";
  • frases a seguir ao advérbios «eis»:
  • Eis porque nunca serás ninguém na vida.
 NOTAS:
  • 1.ª) Note-se que, se introduzirmos nestas frases um nome, a grafia passa a ser separada:
  • Eis a razão por que nunca serás ninguém na vida.
  • O professor queria saber a razão por que a aluna faltara à aula.
  • 2.ª) Em caso de dúvida acerca do modo correto de escrever, podemos tentar substituir a forma «porque» por «pelo qual» (ou suas variantes em género ou número). Se a substituição for possível, escrevemos separado: por que.
3. Escreve-se "porquê" como
  • advérbio de causa: "A sirene tocou, mas não sei porquê." (= por qual motivo);
  • advérbio interrogativo causal: "Fugiste de casa? Porquê?";
  • nome: "O Zé anulou a matrícula. Desconheço o porquê." (= o motivo, a razão).
     Note-se que "porque" e "porquê" constituem a mesma entidade gramatical. O ser ou não acentuado este advérbio interrogativo causal depende unicamente da sua posição:
  • enclítica: "Porque fugiste, cão?";
  • não enclítica: "Fugiste. Porquê?".

Trabalho sobre o Primeiro Modernismo

I. Índice

II. Introdução
          . Objeto do trabalho;
          . Alusão à sua estrutura;
          . ...

III. Corpo
          . Primeiro Modernismo:
                    - Definição de Modernismo;
                    - Delimitação cronológica do Primeiro Modernismo;
                    - Movimentos literários que o antecederam;
                    - Figuras fundadoras (autores e textos);
                    - Tendências estéticas e literárias («ismos» de vanguarda);
                    - Temas;
                    - Revistas:
                             - Revistas e sua importância;
                             - «Orpheu»:
                                       . Razões que estiveram na génese do seu aparecimento;
                                       . Ano de publicação;
                                       . Colaboradores;
                                       . Números publicados;
                                       . Objetivos;
                                       . Reações ao seu lançamento;
                                       . Crítica;
                                       . Fatores de convergência;
                                       . Papel / Importância de Fernando Pessoa.
          . Importância da revista "Presença" (para o 1.º Modernismo).

IV. Conclusão

V. Bibliografia


* * * * * * * * * * * * * * * *

Dados a observar:
          - Data de envio: 15 de novembro;
          - Envio via «e-mail»;
          - Tipo e tamanho de letra: Arial 10;
          - Espaçamento; 1,5.

Bibliografia aconselhada:
          - Dicionário da Literatura;
          - Número 1 de Orpheu;
          - Número 2 de Orpheu;
          - ...

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poetas-paranoicos

     Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o silêncio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar às singularidades literárias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu essa revista com artigos de duas colunas, - na primeira página. A imprensa fez a essa revista um tão extraordinário reclame, que a primeira edição esgotou-se e já se está a imprimir a segunda. Ora semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em primeiro lugar, consagra uma injustiça fundamental; em segundo lugar, favorece e prepara uma seleção invertida. Eu bem sei que o reclame a certas obras é às vezes feito à custa da veemente suspeita de alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas n'este caso, como em outros muitos, é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo, é quem os lê, quem os discute e e quem os compra.


Dantas, Júlio, "Poetas-paranoicos", in Ilustração Portuguesa

"Orpheu" e o Primeiro Modernismo

     O primeiro número de Orpheu, publicado em fins de março de 1915, foi largamente noticiado na imprensa, servindo de saboroso tema aos humoristas e sendo alvo das troças do senso comum. "Maluqueira literária", "Os poetas do Orpheu e os alienistas" e "Orpheu dos Infernos" eram títulos que encabeçavam os artigos - dezenas delas - publicados na capital e na província. "Somos o assunto do dia em Lisboa", escreveu Pessoa ao amigo e colaborador Cortes-Rodrigues, então nos Açores, donde era originário. "O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente - mesmo extraliterária - fala no Orpheu." Deste modo, a revista, comprada para ler ou para escarnecer, esgotou a sua tiragem de 450 exemplares.
     O segundo número saiu três meses depois, de acordo com o plano editorial anunciado, agora com Pessoa e Sá-Carneiro como codiretores. Não houve uma cisão entre ele e Montalvão, que colaborou no novo número com um poema, Narciso, dedicado a Pessoa, mas queriam garantir a orientação "intersecionista" da revista tão longamente planeada. A tiragem subiu para 600 e esgotou de novo, pois a imprensa voltou a destacar, chistosamente, os doidos "paúlicos", que facilitaram o trabalho aos jornalistas fornecendo-lhes provas da sua maluquice literária e até extraliterária. Com efeito, o número dois abria com poemas inéditos de Ângelo de Lima (1872 - 1921), então internado em Rilhafoles, onde viria a morrer seis anos mais tarde. (...)
     O Orpheu 2, à semelhança do número de estreia, contou com uma colaboração brasileira, de outro amigo de Montalvor. Em vez de uma ilustração na capa (a do primeiro número tinha um desenho de José Pacheco), optaram por inserir quatro hors-textes com "trabalhos futuristas" de Santa-Rita. Entre os restantes colaboradores do Orpheu incluíam-se, no primeiro número, Alfredo Guimarães e Almada Negreiros e, nos dois números, Cortes-Rodrigues e Sá-Carneiro. Mais de um terço de cada número era preenchido por obras - obras-primas, aliás - de Pessoa: O marinheiro, os seis poemas "intersecionistas" da Chuva Oblíqua, Opiário, Ode Triunfal e Ode Marítima. As três últimas foram assinadas por Álvaro de Campos, o heterónimo mais exuberante de Pessoa e o primeiro a ser revelado publicamente.
     (...)
     Pessoa, entretanto, procurava levar o projeto de Orpheu por diante. Em setembro de 1916, anuncia numa carta a Cortes-Rodrigues que Orpheu 3 "deve sair por fins do mês presente", com colaborações que incluem "dois poemas ingleses meus, muito indecentes", versos de Pessanha, poemas inéditos de Sá-Carneiro, A cena do Ódio de Almada Negreiros e quatro hors-textes "do mais célebre pintor avançado português - Amadeu de Souza-Cardoso". A revista não sai nem naquele mês nem nos meses seguintes, mas em julho de 1917, e com um conteúdo algo diferente, Orpheu 3 fica quase totalmente composto numa tipografia, faltando-lhe apenas a colaboração de Álvaro de Campos. O projeto entrará então, misteriosamente, numa dormência prolongada.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

«Moon River», Andy Williams


1927 - 2012

Novas tendências artísticas modernistas

     Um grupo de poetas  e literatos com afinidades muito especiais começou a definir-se em 1912: Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916), Luís da Silva Ramos (1891 - 1947) (condiscípulo de Sá-Carneiro no liceu e posteriormente conhecido como Luís de Montalvor), Armando Cortes-Rodrigues (1891 - 1971) e António Cobeira (1892 - 1959) (colegas do curso de Letras depois de Pessoa o ter abandonado), Alfredo Pedro Guisado (1891 - 1975) (filho do proprietário do restaurante Irmãos Unidos, um dos sítios onde os jovens se juntavam), Mário Beirão (1890 - 1965) e o ainda muito jovem António Ferro (1895 - 1956). Não é que formassem uma tertúlia propriamente dita, mas sentiam - no meio dos muitos outros habitués dos cafés - uma afinidade de gostos e um comum desejo de renovar e internacionalizar as letras portuguesas, a começar pelas suas próprias produções literárias.
     A Águia, revista saudosista ligada ao grupo Renascença Portuguesa, representava, para os jovens o que de mais novo e interessante havia em Portugal. Pessoa, porém, depressa superou a estética da "nova poesia portuguesa", tão longamente analisada e elogiada nos artigos por si publicados em A Águia, nos quais citava versos de Teixeira de Pascoaes e Beirão como modelos de "subtileza e complexidade ideativas" graças à sua maneira analítica de "desdobrar uma sensação em outras" e à sua feição espiritual de "encontrar em tudo um além".
     (...)
     [Pessoa] Chegou a definir o paulismo como "o culto da artificialidade", e preteriu-o em favor do "intersecionismo", que pretendia ser mais construtivista, uma espécie de cubismo aplicado à literatura - se bem que Pessoa, nas suas teorizações, imaginasse o novo "ismo" aplicado a todas as artes. À semelhança do movimento seu precursor, o intersecionismo (escreveu ele numa carta assinada por Álvaro de Campos em 4 de junho de 1915 e dirigida ao Diário de Notícias, embora provavelmente não enviada) caracterizava-se por uma "subjetividade excessiva" e um "exagero da atitude estática", mas procurava ser mais incisivo, justapondo, de forma bem nítida, diversos planos ou dimensões em simultâneo.
     Empenhados nestes esforços de inovação, Pessoa e os seus discípulos - pois ele, embora reservado por natureza, era o mestre incontestável que guiava os outros - estavam sozinhos, sem terem onde se inserir no meio literário português. Tornava-se urgente criar uma revista que lhe desse voz. A ideia nasceu, inevitavelmente, de um projeto de Pessoa. No início de 1913, ou talvez ainda em 1912, Pessoa elaborou planos para uma revista mensal intitulada Lusitânia, que se debruçaria principalmente sobre os problemas políticos que a jovem república enfrentava e o lugar por ela ocupado na cena internacional.
     (...)
     Se Pessoa, sem sair de Lisboa, se conseguia manter a par das últimas tendências nas artes e letras, e em particular das correntes vanguardistas, era em parte graças às viagens de alguns camaradas desse grupo. Em outubro de 1912, Sá-Carneiro fora para Paris, dando início a uma animada correspondência literária com Pessoa, e no final do mesmo ano Montalvor partiu para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar como secretário de Bernardino Machado, nomeado embaixador de Portugal.
     Em Paris, Sá-Carneiro convivia com Santa-Rita Pintor (1889 - 1918), um jovem artista português cheio de ideias e audácia mas de valor artístico controverso (a seu pedido, a família destruiu toda a sua obra quando morreu, em 1918). Em todo o caso, Santa-Rita conseguira impor-se ao ponto de Marinetti, que então vivia na capital francesa, o ter autorizado a traduzir e publicar manifestos futuristas em Portugal. Sá-Carneiro regressa a Lisboa em junho de 1913, volta para Paris um ano depois e regressa novamente no outono de 1914, altura em que a guerra também trouxe de volta Santa-Rita e o seu amigo Raul Leal, que, como ele, conhecera os futuristas. Os três estavam muito ao corrente das novidades artísticas (Picasso, o cubismo) e literárias (Max Jacob, Apollinaire) que se refletiam no modernismo português.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

"Orpheu"

     Por diferentes que sejam entre si, as vozes poéticas do grupo Orpheu identificam-se por uma série de fatores comuns: a fragmentação ou multiplicação do Eu; a transgressão dos tabus éticos; a nova consciência do mundo provocada pela velocidade / poder da Máquina; o poder criador da Palavra, como concretizadora da Vida vivida; a recusa do código linguístico convencional e a descoberta da criação literária, como a grande aventura da Vida; a busca de uma obra poética que, a par de seu valor estético, apresentasse uma conceção filosófica do Ser, e fosse ela mesma um ato, um elemento criador da vida autêntica; a consciência heraclitiana de que a realidade não é um ser, mas um devir; não é um estado durativo e persistente, mas um ocorrer; e ligada a isso está a busca da «portucalidade», da essência da raça portuguesa; o repúdio pelas ideias feitas, pelo convencional, daí, nessa produção órfica, a presença constante da Locura, do clima onírico, da incoerência, etc....; a atração pelo Mistério, pelo Exótico, pelo Esteticismo (também como modo de ser, de existir), ou ainda pelos excessos de qualquer natureza; a análise, como processo criativo, e não mais a síntese que fora procurada pela literatura anterior; a predominância da perceção sensorial da realidade (nervos excitados pelas impressões recebidas do mundo exterior) (...).

Nelly Novaes Coelho, Escritores Portugueses do século XX

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Uma leitura do poema "Isto" (II)

     Outra análise do poema «Isto», de Fernando Pessoa: AQUI.

Uma leitura do poema "Isto" (I)

1. O título causa uma certa estranheza no leitor pelo facto de «isto» ser um termo ambíguo (isto, o quê?). «Isto» é um pronome demonstrativo invariável e um deíctico que, neste caso, tem como referente o próprio poema, aqui apresentado pelo sujeito poético como realidade exterior, um «objecto» fabricado pela inteligência e relativamente ao qual o Eu pretende mostrar o distanciamento emocional próprio de um poeta-raciocinador que se orienta pelo intelecto e não pela emotividade.

2. No v.1, o sujeito nulo indeterminado sugere que quem «diz» é a generalidade dos outros poetas, aqueles que consideram o Eu fingidor ou mentiroso pelo facto de defender que a escrita do poema resulta de um acto de fingimento poético. No poema está implícita uma oposição Eu-eles, ou seja, uma oposição entre 2 concepções opostas de poetar: a que assenta na crença no poeta inspirado que se confessa no que escreve (a perspectiva tradicional na época em que o poema foi escrito) e aquela que Pessoa defende e que assenta numa visão do poema como produto do acto de pensar as emoções sentidas e que vê o poema como fruto de um trabalho intelectual.
3. No v. 2, o Eu rejeita categoricamente a acusação de que é alvo e explica, nos versos seguintes da 2ª estrofe, que «sente» com a inteligência, isto é, que analisa, disseca as emoções com a ajuda da inteligência e que não se deixa guiar pela emotividade: «Não uso o coração», v.5. O advérbio «simplesmente», v. 3, sugere que esta actividade intelectual é habitual para o sujeito poético e ainda que é acusado de «fingidor» por incapacidade por parte dos outros poetas em compreender como se deve «construir» um poema; assim, o advérbio «simplesmente» introduz no poema um tom levemente irónico e depreciativo no que respeita aos «outros», ao mesmo tempo que mostra a segurança do Eu no que toca à validade do poema concebido como objecto artístico produzido por um autor que se transforma num ser ficcional (o sujeito poético ou Eu ou sujeito lírico) que finge emoções e consegue impressionar os leitores como se elas fossem verdadeiras ou realmente sentidas no momento em que as expressa.
4. Na 2ª estrofe, o sujeito poético explicita o que afirmou na 1ª: as emoções negativas e positivas encontram-se nos alicerces do poema e delas fazem parte os sonhos e as vivências do poeta («o que sonho ou passo»), os falhanços, as decepções (o que falha) e a consciência da efemeridade de tudo na vida (o que finda). Mas esta matéria emocional e realmente sentida não passa de uma espécie de «terraço/ Sobre outra coisa ainda» (notar a comparação e a metáfora), ou seja, as emoções sentidas são a via de acesso a «outra coisa» que é «linda» e «essa coisa» bela é o poema perfeito que o poeta ambiciona escrever, racionalizando as emoções.
5. A 3ª estrofe coincide com a 2ª parte deste poema e é a conclusão do mesmo, tal como é indiciado pela locução coordenativa conclusiva «por isso». Como é que o poeta faz para aceder à «coisa linda» que deseja? Escreve distanciado das emoções que se encontram arquivadas na memória ou naquilo «que não está ao pé», conseguindo assim libertar-se das perturbações de carácter emocional («livre do meu enleio») e fingindo emoções que não sente («Sério do que não é»). O último verso diz respeito ao leitor e é a este, que tantas vezes se mostra ávido de emoções, que cabe emocionar-se, se quiser: «Sentir? Sinta quem lê!». Assim, não cabe ao poeta emocionar-se no momento da escrita do poema, isso é tarefa do leitor.

Fonte: Atena2010's Blog
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