Português: Análise de Os Lusíadas: Canto IX, estâncias 88-95

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Análise de Os Lusíadas: Canto IX, estâncias 88-95


Contextualização
 
            Após a narração das dificuldades vividas em Calecute, o Poeta conta o regresso dos marinheiros à pátria. A meio da viagem, Vénus prepara-lhes uma recompensa, a Ilha dos Amores, onde serão recebidos pelas ninfas amorosas. Este episódio começa no canto IX e prolonga-se pelo X, quase até ao final do poema, e constitui uma alegoria, representando o prémio que, em local ameno e harmonioso, é atribuído aos homens pelo seu esforço, heroísmo e feitos.
            A armada avista a Ilha dos Amores e, depois de os marinheiros desembarcarem para caçar e abastecer as naus de água fresca, Camões descreve o contacto com as ninfas.
            Tétis explica a Vasco da Gama que a Ilha é o prémio merecido pelas façanhas realizadas, indicando, também, as glórias futuras que estão reservadas ao povo português.

 
Análise da reflexão
 
1.ª parte (estância 88) – Transição do plano amoroso para o da reflexão sobre o significado da Ilha dos Amores – o Poeta explica o significado da Ilha dos Amores: ela representa a imortalidade só atingida por quem realiza feitos sublimes.
 
Como serão os marinheiros recompensados pelo feito de terem chegado à Índia?
- na companhia das ninfas;
- num ambiente alegre e de prazer;
- usufruindo das maravilhas da Ilha.
 
Significado da Ilha dos Amores: a Ilha é uma alegoria da fama e da imortalidade.

A Ilha constitui o prémio (“O prémio lá no fim, bem merecido” – est. 88, v. 7) pelos “feitos grandes” e pela ousadia (“Porque dos feitos grandes, da ousadia” – est. 88, v. 5) da “forte e famosa” (est. 88, v. 6) gente portuguesa e o reconhecimento pelos “trabalhos tão longos” (“Os trabalhos tão longos compensando” – est. 88, v. 4), que garantirão aos heróis lusitanos “fama grande e nome alto e subido” (est. 88, v. 8), honra, fama e glória (“Aquelas preminencias gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha: / Estes são os deleites desta Ilha.”).

 
 
2.ª parte (estâncias 89 a 91) – Explicitação, em pormenor, do significado da Ilha.
 
Em que consiste essa recompensa?

A fama: “Com fama grande…” (est. 88, v. 8).

A mitificação: “nome alto e subido” (est. 88, v. 8).

A imortalidade: o contacto dos humanos com as ninfas confere-lhes um estatuto divino.

Os prazeres da Ilha são os sucessos, as vitórias alcançadas por mérito próprio (estância 89).

 
Trata-se, em suma, do reconhecimento pelos “feitos grandes”, pela “ousadia” e pelo esforço. Esta simbologia significa que a fama e a glória estão ao alcance de qualquer ser humano que se destaque pelos seus feitos e conduta virtuosa.
 
• Já na Antiguidade se atribuíam prémios e recompensas aos heróis.
 

• Que prémio era esse?

A imortalidade: os homens subiam ao Olimpo, tornavam-se, assim, deuses, imortais: “Que as imortalidades que fingia / A antiguidade, que os Ilustres ama, / Lá no estelante Olimpo, aquém subia / Sobre as asas ínclitas da Fama”.

Os dois versos iniciais da estância 90 são muito expressivos, pois significam que, à semelhança do que sucede com a Ilha dos Amores, os deuses da Antiguidade eram apenas representações simbólicas do prémio que é sempre atribuído àqueles que norteiam a sua existência pela virtude – a possibilidade de serem imortalizados pela fama.

 
Quem era premiado?

Os homens que realizavam feitos ilustres, grandes ações; aqueles que percorriam um caminho árduo, difícil, cheio de perigos: “Por obras valerosas que fazia, / Pelo trabalho imenso que se chama / Caminho da virtude, alto e fragoso…”. Assim, encontravam o prazer, o deleite, a satisfação: “Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso”.

 
A personificação do verso 4 da estância 90 significa que a Antiguidade fazia subir os homens ilustres ao Olimpo nas asas da Fama.
 
Qual é o papel da Fama?

Atribuir a imortalidade.

A estância 91 serve como confirmação desta ideia: a imortalidade era um prémio dado aos homens, devido aos “feitos imortais e soberanos” (“Não eram senão prémios que reparte, / Por feitos imortais e soberanos, / O mundo cos varões que esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos”). Por isso, obtiveram nomes divinos: “Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, / Eneas e Quirino e os dous Tebanos, / Ceres, Palas e Juno com Diana, / Todos foram de fraca carne humana.”.

 
Qual é o objetivo do Poeta com a referência à Antiguidade?

É uma estratégia para convencer os homens do seu tempo a seguirem o exemplo dos clássicos. De facto, as figuras da Antiguidade citadas (Júpiter, Mercúrio, etc.) surgem como argumento do Poeta para convencer os contemporâneos a alterar a sua atitude, combatendo os vícios, bem como para conferir importância ao caminho a percorrer para atingir a imortalidade.

A enumeração de nomes próprios dos versos 5 a 8 da estância 91 indica-nos que antes de serem deuses, logo imortais, todos foram humanos e mortais. De facto, as divindades começaram por ser humanos, tendo ascendido ao patamar divino por “esforço e arte” e “feitos imortais e soberanos”, o que lhes valeu a imortalidade. Assim, o Poeta sugere que os Portugueses podem e merecem passar pelo mesmo processo de mitificação.

 
Expressividade da conjunção «Que» (estância 89, v. 1 e est. 90,v. 1): a conjunção possui, neste caso, um valor de causa. A finalidade do Poeta é justificar a razão pela qual o episódio da Ilha dos Amores e a relação entre as ninfas e os marinheiros portugueses são simbólicos, visto que não existiram. De facto, constituem uma mera representação alegórica da fama e do reconhecimento dos feitos dos marinheiros, elevando-os à condição de deuses.
 
 
3.ª parte (estâncias 92 a 95) – Alargamento da reflexão a questões políticas, sociais e religiosas.
 
Os quatro versos iniciais da estância 92 apontam outro papel da Fama: divulgar os feitos do herói e conferir-lhe atributos (atente-se na expressividade da metáfora e da personificação “Mas a Fama, trombeta de obras tais…”: na Antiguidade, cabia à Fama o papel de dar a conhecer por toda a parte o herói e os seus feitos. A Fama anuncia os feitos realizados como se fosse uma trombeta, para que todos possam ouvir, isto é, reconhecer o mérito dos seus autores. A trombeta é tradicionalmente usada como instrumento para anunciar o início de uma batalha ou a chegada de uma figura importante.
 
Desta forma, prepara a exortação que se segue: o Poeta (através de uma apóstrofe e de formas verbais no imperativo – «Despertai» –, da adjetivação – «ignavo», «livre» – e do uso da segunda pessoa do plural – «vós», «estimais») dirige-se a todos os que estimam a Fama, que querem ser famosos e incentiva-os a mudar o seu comportamento, a abandonar o ócio.
 
Valor expressivo da apóstrofe «ó vós» (est. 92, v. 5): o Poeta dirige-se aos que desejam ser famosos como os deuses da Antiguidade Clássica (“Se quiserdes no mundo ser tamanhos”). A Ilha dos Amores é uma alegoria para a fama, para a honra, para a mitificação.
 
Conselhos do Poeta àqueles que querem alcançar a fama e a imortalidade – vícios a evitar:

Combater a preguiça: “Despertai já do sono do ócio ignavo” (est.92, v. 7).

Evitar a cobiça e a ambição: “E ponde na cobiça um freio duro, / E na ambição também…”.

Evitar a tirania: “… e no torpe e escuro / Vício da tirania infame e urgente.”.

Promover a igualdade perante a lei, garantindo a imparcialidade e a justiça: “Ou dai na paz as leis iguais, constantes”.

Impedir a exploração dos mais fracos: “Que aos grandes não deem o dos pequenos” (antítese).

Combater contra os muçulmanos: “Ou vos vesti nas armas rutilantes, / Contra a lei dos imigos Sarracenos”.

 
Comentários do Poeta:

i) As “honras vãs, esse ouro puro”, obtidas sem espaço e sem mérito, não dão “Verdadeiro valor” às pessoas.

ii) É melhor merecer a honra e os bens materiais sem os ter, do que tê-los e não os merecer.

 
Quais são os ideais a perseguir, segundo o Poeta?

- Justiça;

- Igualdade;

- Fraternidade;

- Lealdade;

- Vontade;

- Honestidade.

 
Recursos expressivos:
- Hipérbole: “Tomais mil vezes”.
- Imperativo: “ponde”.
- Vocabulário com pendor crítico: “torpe”, “vício”, “infame”, etc.
 
Efeitos dos conselhos do Poeta, se forem seguidos:

i) O reino será maior e poderoso: “Fareis os Reinos grandes e possantes”;

ii) Haverá igualdade na distribuição dos bens: “E todos tereis mais e nenhum menos”;

iii) Todos terão honra e fama: “Possuireis riquezas merecidas, / Com as honras que ilustram tanto as vidas.”;

iv) O Rei será mais ilustre e esclarecido, devido ao apoio, aos conselhos sensatos e à lealdade: “E fareis claro o Rei que tanto amais, / Agora cos conselhos bem cuidados, / Agora co as espadas, que imortais”;

v) Tornar-se-ão imortais como os seus antepassados: “Vos farão, como os vossos já passados”;

vi) Serão eternamente reconhecidos como heróis: “Sereis entre os Heróis esclarecidos / E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.”

 
Advertência do Poeta: não há limites para o ser humano, pois quem quis sempre conseguiu. Só com a força de vontade se alcança a glória: “Impossibilidades não façais, / Que quem quis, sempre pôde”.
 
Expressividade da metáfora “E nesta ilha de Vénus recebidos” (est. 95, v. 8): neste verso, o Poeta retoma a ideia apresentada na estância 89 (“Ilha angélica pintada.”). A Ilha simboliza as honras, sendo que, para as alcançar, para se ser recebido na “Ilha de Vénus”, é necessário adotar os comportamentos e as atitudes que o Poeta sugere.
 
 
Síntese

            O Professor Carlos Reis, in Rimas e Os Lusíadas (pp. 98 e 99), Leituras Orientadas, Porto Editora, considera que há a reter desta reflexão as seguintes conclusões gerais:

1.ª) O episódio da Ilha dos Amores representa a vida sublimada (isto é, exaltada e engrandecida; est. 89). O homem que se distinguiu pelo seu esforço e pelas suas obras tem direito a uma existência que, sendo terrena, não se limita (como se pensava na Idade Média) ao sacrifício para se alcançar a salvação. A vivência amorosa não é, então, moralmente condenada; aliás, por causa do amor, a condição humana ganha novo vigor e os homens são elevados ao nível dos deuses.
 
2.ª) O estatuto sobre-humano a conceder aos marinheiros manifesta-se do seguinte modo:

Através da submissão das Ninfas aos navegantes, juntamente com o tratamento concedido a Vasco da Gama, incluindo as revelações que lhe são feitas acerca das consequências da viagem (est. 10 e seguintes).

Pela comparação dos «varões» (incluindo os nautas) com os deuses (Júpiter, Mercúrio, etc.) que, antes de serem divindades, foram também humanos. Isto significa que também os homens podem ascender ao estatuto de deuses, desde que o mereçam.

Assim, é legítimo aspirar à Fama, se ela for conseguida pelo esforço e pela superação do «ócio ignavo» (est. 92, v. 7).

A procura da Fama não se coaduna com determinados comportamentos, nomeadamente a ambição desmedida, a tirania, o culto da injustiça, etc., e que caracterizam os homens do tempo do Poeta.

O serviço prestado ao Rei (“fareis claro o Rei que tanto amais”, est. 95, v. 1) tem de ser, então, a preocupação daqueles que, na paz ou na guerra santa contra os infiéis, merecem ser recebidos na Ilha dos Amores.

 
            Um exemplo deste serviço desinteressado, que Camões não invoca aqui, mas que surgirá mais adiante, é a escrita do poema épico como ato patriótico.

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