Desenvolvimento:
. Tema
. Assunto
. Estrutura externa
. Estrutura interna
– 1.ª parte
– 2.ª parte
–
Articulação dos
dois momentos
. Sentimentos
. Formação arcádica
. Elementos neoclássicos e pré-român-ticos
. Recursos poético-es-tilísticos
|
Neste
soneto, como noutros, é abordado o tema do desejo da morte, fruto da angústia
existencial de um sujeito poético que se revê num cenário que se costuma
denominar “locus horrendus”: um ambiente
nocturno, triste e solitário. De facto, a Noite já vai alta e o silêncio é
total, não se ouvindo qualquer ruído nem de pessoas nem de aves nem de
coisas: tudo adormeceu. Apenas ele está acordado e, consolado com o ambiente
fúnebre que o rodeia, pede ao Destino que lhe dê a morte.
O texto é constituído por duas quadras e dois tercetos
(um soneto), sendo doze versos decassílabos heróicos (acentos
dominantes nas 6.ª e 10.ª sílabas) e dois decassílabos sáficos (versos
7 e 12, com acentos dominantes nas 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas) e apresentando o
seguinte esquema rimático: ABBA / ABBA / CDC / DCD. A rima é toda grave
ou feminina, toante nos versos 2 e 3, 6 e 7 (“feia”/”rodeia”),
consoante nos restantes (“estrelado”/”vedado”), rica nos versos 2
e 3, 6 e 7, 9 e 11, 10 e 12, 11 e 13 (“feia”/”rodeia”), pobre nos
outros (“estrelado”/”vedado”).
Trata-se portanto de uma forma clássica que, pela sua rigidez, condiciona o
tratamento do tema em poucos momentos, articulados com lógica rigorosa. Ainda
neste parâmetro da análise, destaque para o encavalgamento ou transporte
nos versos 1 e 2, 3 e 4, 9, 10 e 11, 13 e 14, e para o ritmo, mais
lento nas quadras e mais movimentado nos tercetos.
O soneto pode dividir-se em duas partes. A primeira, correspondente
às duas quadras, é descritiva: apresenta o cenário que rodeia o sujeito. A
Natureza está imersa em profundo silêncio; por outro lado, temos a Noite,
caracterizada como “escura
e feia”, entidade mitológica que conduz uma carruagem negra, um “coche de ébano
estrelado”, elemento dominante porque condicionante de todos os
outros. Com efeito, o silêncio profundo que reina na Natureza acontece porque
a Noite vai alta e tudo dorme. Não é, pois, difícil justificar a presença dos
outros elementos do cenário como o Zéfiro, vento brando e agradável, que não
exerce a sua função, o Tejo, cujas águas adormecem, o rouxinol, ave do canto
perfeito, que não tem espaço para cantar, o mocho, ave nocturna, cortesão da
Noite, como é denominada noutros textos, até essa não faz ouvir seus pios
agourentos. Nem era preciso, pois tudo é tão solitário e silencioso que faz
lembrar a própria morte. Compreende-se por que razão a Natureza se encontra personificada:
é que o sujeito poético revê nela o seu estado de espírito, numa atitude
romântica, construindo-a à sua imagem e semelhança. A nível estilístico, é
notável o paralelismo de construção na 1.ª quadra: o verso 1 transporta-se
sobre o verso 2 e o verso 3 sobre o verso 4, criando dois segmentos
melodiosos, reforçando o paralelismo a anáfora “Nem (...) Nem (...)”. As
duas quadras formam o momento descritivo estático, salientando-se nele a
presença de grande quantidade de adjectivos, ora antepostos, ora
pospostos. De todos, deve salientar-se aquele que tem uma carga semântica
maior: profundo (silêncio). Na verdade, o silêncio é o elemento que melhor
caracteriza o ambiente físico e o ambiente psicológico. Não é sem razão que
este nome aparece repetido e domina todo o texto. A tonalidade nasal
(frequência de consoante nasais /m/ e /n/), as repetições de fonemas
consonânticos sugestivos de ausência de ruído (/s/ e /ch/), tudo se conjuga
para evidenciar de forma exemplar o estado em que se encontra o sujeito.
A 2.ª parte, correspondente aos tercetos, é
“narrativa”: acordado, o sujeito poético pede a morte, que vê prefigurada no
silêncio da Natureza. Silêncio e solidão são palavras-chave deste soneto. Esta 2.ª parte inicia-se pelo advérbio
de exclusão Só, repetido com o pronome pessoal de primeira
pessoa: “Só
eu velo, só eu”. Está justificada a localização do sujeito poético: “Neste deserto
bosque”. Deserto exterior e deserto interior, porque só assim se
compreende o seu comportamento: “... pedindo à Sorte / Que o fio, com que está
minh’alma presa / À vil matéria lânguida, me corte”. Deserto interior
reforçado com a aliteração do fonema /s/: “Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte”.
Está, pois, evidenciada a solidariedade entre os dois momentos
do soneto, que pode caracterizar-se por afinidade e por contraste. Afinidade,
porque cenário e estado psicológico se casam perfeitamente; contraste, porque
enquanto tudo dorme, o sujeito poético vigia. O cenário favorece a reflexão,
a interiorização, a expressão espontânea de sentimentos.
Enquanto a morte não chega, o sujeito poético tem ao menos
o cenário fúnebre que o consola, pois é o retrato da Morte, que é prefigurada
pela Noite. À maneira clássica, esta é uma entidade que cobre com um manto os
seres que atinge. Destacam-se dois sentimentos: horror e tristeza. O uso do determinante
demonstrativo este, esta e da aliteração do fonema
/t/ apontam o sofrimento, a mágoa e o desespero do sujeito lírico. Bem se
quer iludir afirmando que lhe dá consolação “o silêncio total da Natureza”, mas
o que ressalta no final é a expressão de um forte masoquismo, o que mascara
uma profunda angústia existencial.
Este soneto volta a manifestar a formação arcádica de Bocage,
pois o recurso a mitologia é revelador desse facto. A “Sorte” é
sinónimo de Destino, Fado, entidade que superintende, quer aos deuses, quer
aos humanos. É ele que concede às irmãs Parcas o poder de dar ou tirar a
vida. Átropos tinha nas mãos uma tesoura e entretinha-se a cortar os fios da
existência humana. Além disso, a construção perifrástica e o uso do eufemismo
são elementos exemplificadores do Neoclassicismo. A imagem do fio que
prende a existência do corpo à alma é recorrente na poesia clássica e na
sabedoria popular. O sujeito não tem nenhum gosto pela vida, caracterizando o
corpo como “vil
matéria lânguida”. À sua volta, tudo é silêncio; dentro de si, tudo é
escuridão, solidão; não pode, pois, estar sossegado como as coisas: sofre. O verbo
velar sugere sofrimento, lembrando as vigílias nocturnas e fúnebres.
Só lhe resta a morte, que resolveria todos os seus conflitos.
O texto apresenta elementos neoclássicos e
pré-român-ticos. Por um lado, a forma poética (soneto), o verso decassílabo,
a presença da mitologia (Noite, Zéfiro, Sorte), as várias perífrases
(vv. 1 e 2, 5, 10 e 11) e as personificações são os elementos
clássicos. Por outro, o tema do desejo da morte como solução para os
conflitos, o “locus horrendus”, a subjectividade, a afirmação
do indivíduo (egotismo), os sentimentos de terror e solidão
são as características românticas dominantes. Integra-se, pois, na estética
de transição denominada Pré-Romantismo. Confirma-se também a ideia de Bocage
se constituir um poeta de transição.
No que diz respeito aos recursos linguísticos, são de
considerar os seguintes, além dos que já foram tratados. A nível fónico, a rima entre Sorte e corte,
tristeza e Natureza é bastante expressiva. No primeiro caso,
aproxima palavras que traduzem o desejo do sujeito poético: a Sorte
(Destino/Fado) é quem tem nas mãos o poder de tirar a vida, através de uma
Parca; no segundo, a Natureza apresentada é necessariamente triste. Por isso,
a rima não é um mero artifício sonoro, mas aproxima palavras, fazendo a comunhão
do sentido. As aliterações existentes nos verso 5 (/ch/), 9 (/s/) e 12
(/t/) sugerem, respectivamente, a ausência do vento, a solidão do sujeito e a
acentuação da mensagem, o que comprova que houve um investimento sonoro
bastante expressivo. Além disso, ainda é nítida a tonalidade nasal que percorre
o texto e traduz a temática da tristeza. O ritmo, predominantemente
binário, casa perfeitamente com os dois pólos do discurso: o cenário e o EU;
lento nas quadras, devido ao estatismo da descrição, mais rápido nos
tercetos, devido ao comportamento do sujeito poético.
Relativamente aos aspectos morfossintácticos, como é natural, na descrição predominam os adjectivos,
que, antepostos aos nomes, adquirem cariz subjectivo; pospostos, mantêm a
objectividade. O vocabulário de índole clássica e as perífrases
(“coche de
ébano estrelado”, “Zéfiro
abafado”, “me
corte o fio”) indicam a formação arcádica de Bocage. Por outro lado,
com esse vocabulário podemos formar dois conjuntos lexicais: um ligado à
ausência de luz, outro ligado ao silêncio, realizando o “locus horrendus”. Os
verbos encontram-se no pretérito perfeito e no presente
nas quadras e no presente nos tercetos. No primeiro caso, indicam
estados passados que permanecem inalteráveis, observados pelo sujeito; no
segundo, traduzem a expressão da vontade e dos sentimentos no momento da
interiorização. De referir ainda que, na 1.ª parte, descritiva, domina a
coordenação e, na 2.ª, subjectiva, domina a subordinação, de acordo com os
dois tipos de enunciado. A anáfora nos versos 7 e 8 intensifica o silêncio
da Natureza.
A nível semântico,
comecemos por destacar as perífrases longas, de sabor clássico, em que
assentam as duas quadras e o primeiro terceto. A personificação da
Noite, do Tejo, do Zéfiro e da Sorte permitem a construção do cenário de
acordo com o estado de alma do sujeito poético, à maneira romântica. A personificação
da Morte faz lembrar a entidade que cobre com um manto os seres vivos,
roubando-lhes a luz (vestígio clássico). O eufemismo no primeiro
terceto (“...
o fio... me corte...”), recurso clássico, traduz de maneira mais suave
o desejo de morte do sujeito poético e mostra uma vez mais a formação árcade
de Bocage.
|