Logo nas páginas inicias do romance, o narrador procede a uma descrição pormenorizada do Ramalhete. Essa descrição, de acordo com a estética naturalista, tem um objetivo bem definido: permitir o enquadramento das personagens e a definição dos carateres, enquanto espaço de convergência e harmonia entre o ambiente e os seus anfitriões e frequentadores habituais.
Na atualidade (outono de 1875), o Ramalhete, situado na Rua de São Francisco, às Janelas Verdes, é a residência da família Maia em Lisboa. O seu nome tivera origem num painel de azulejos representando um ramo de girassóis e substituindo o escudo heráldico da família. Atente-se, desde já, no simbolismo destas referências. Por um lado, o nome da habitação evidencia a ligação da família à terra e à província. Por outro lado, o emblema (o ramo de girassóis) associa-se ao simbolismo do girassol, planta que representa a atitude daquele que ama e que se vira continuamente para contemplar o seu amado e a incapacidade de dominar a paixão. No entanto, esta atitude de submissão e de fidelidade com o ser amado associa (o girassol) à incapacidade de ultrapassar a paixão amorosa e a eventual não correspondência da pessoa amada. Aplicando estas ideias à relação de Pedro da Maia e Maria Monforte, constatamos que aquele assume uma postura de absoluta fidelidade e submissão relativamente ao objeto do seu amor, o que o torna incapaz de enfrentar e prosseguir a vida após a traição e fuga da mulher, optando pelo suicídio. É como se tivesse perdido a vontade própria e se tivesse tornado num duplo dela, sem cuja presença se sente incompleto, incapaz de reagir à perda e de viver. Algo de semelhante parece acontecer com seus filhos. Com efeito, no início, após a primeira visão fugaz de Maria Eduarda, Carlos parece viver apenas para a (voltar a) olhar e contemplar. Após a consumação da paixão, ambos a vivem inebriados e eufóricos até ao seu desenlace, ou seja, até ao momento em que ele, tardiamente, revela a sua repulsa por aquela relação incestuosa e decide afastar-se da irmã.
No início, o Ramalhete é descrito de forma disfórica: «sombrio casarão de paredes severas», «com um renque de estreitas varandas de ferro», «uma tímida fila de janelinhas», «o aspeto tristonho de residência eclesiástica». Ora, o vocabulário utilizado conota-o com o fechamento, o isolamento e a tristeza, a que se acrescentam as aproximações aos espaços religiosos, que, por um lado, evidenciam a importância e a influência do clero e da mentalidade clerical no passado da família e, por extensão metafórica, em Portugal, e, por outro, reenviam também para a ideia de clausura e pressão. Desabitado durante largos anos, ganhara tons de degradação e ruína; no entanto, o seu interior manifesta o bom gosto, o requinte e a riqueza da família: «disposição apalaçada», «tetos apainelados», «paredes cobertas de 'frescos'», etc. Note-se que a sua arquitetura evoca o último reinado absolutista, o de D. Maria I. Além disso, é de registar a referência de Vilaça à crença/lenda funesta, segundo a qual «eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete.», o que constitui o primeiro indício trágico da obra.
Subitamente, Afonso decide retornar ao Ramalhete, sacrificando-se pelo neto, Carlos, que, culto, viajado e «com propósitos de trabalho», não gostaria de se «enterrar» na aldeia, decisão em que sofre a oposição de Vilaça, que argumenta com a necessidade de muitas obras e despesas, a falta de um jardim e a lenda funesta. E assim se inicia o seu restauro. Inicialmente, fica encarregado das obras Esteves, «arquiteto, político e compadre de Vilaça», de cuja ação se destaca o aparato grosseiro dos ornatos, que acaba substituído por um «arquiteto londrino» trazido por Carlos, que introduz na residência o conforto, o «luxo inteligente», o bom gosto, a sobriedade e a elegância (traços do protagonista) e que contrastam com a vulgaridade e a ostentação tão apreciadas pela sociedade lisboeta (representada, ironicamente, pelo dito Esteves, entretanto promovido a governador civil). E, assim, o espaço é transformado de acordo com o gosto europeu: introduzindo inovações nos hábitos portugueses (sala de música, bilhar, fumoir), em analogia com os intuitos de renovação da mentalidade portuguesa, empreendidos pela Geração de 70 (característica comum a Eça e a Carlos da Maia).
Vejamos, em pormenor, a reformulação operada no interior da casa. Desde logo destaca-se o pátio de mármore quadrilhado e com plantas e vasos decorativos e bancos de talha; segue-se a antecâmara com estofos do Oriente, divãs cobertos de tapetes persas e largos pratos mouriscos de cobre; o amplo corredor transformado em rica galeria com arcas góticas, jarrões da Índia, quadros devotos para onde abriam várias salas do Ramalhete - o salão nobre, a sala de música com o seu ar rico de século XVIII, o bilhar defronte, o fumoir, a sala mais cómoda com a fofa vastidão das otomanas. No escritório de Afonso, destacam-se os damascos vermelhos, a mesa de pau-preto, as estantes, as encadernações luxuosas, um quadro de Rubens representando um Cristo na cruz (presságio de tragédia: Jesus morreu para expiar os pecados dos homens <-> Afonso morre por causa dos pecados do neto), o biombo japonês bordado a ouro, a pele de urso e uma venerável cadeira de braços «cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda» (novo indício trágico). Os quartos de Afonso , no segundo andar, dão para o corredor guarnecido com os retratos da família, enquanto os de Carlos merecem a apreciação de Vilaça de «aposentos não de médico mas de dançarina», pelo seu luxo e requinte. Não obstante a modernização do espaço, note-se que a imagem do passado perdura na «fachada tristonha».
Esta descrição representa, simbolicamente, uma nova oportunidade de modernização ou reforma da habitação (metaforicamente, do país) para uma nova etapa de ressurgimento e abertura; o reflexo do ideal reformista da geração de Carlos; um reflexo da reforma e europeização do país; o dandismo, o gosto pelo luxo, o dandismo e a formação britânica de Carlos. Por outro lado, é clara a intenção crítica de Eça de Queirós: por um lado, critica a importação de modelos estrangeiros e, por outro, caricaturalmente, a mentalidade portuguesa, caracterizada pelo seu atraso, incultura, megalomania e compadrio (o episódio da escolha de Esteves por ser compadre de Vilaça).
Ao longo do romance, o Ramalhete constitui um marco de referência e acompanha o percurso da família. Símbolo desse percurso é o quintal / jardim, que é apresentado em três momentos diferentes, coincidentes com três momentos vividos pelos Maias.
Num primeiro momento (cap. I, pág. 6), o jardim tem um aspeto de abandono, degradação, ruína e morte (pobre, inculto e abandonado, cheio de ervas bravas, a cascatazinha seca, o tanque cheio de entulho e a estátua de Vénus enferrujada), que se poderá associar ao desgosto e sofrimento de Afonso, resultantes do suicídio de Pedro (relembre-se o estado da estátua de Vénus, deusa do amor). Sobressaem, nesta primeira descrição, a estátua, «enegrecendo a um canto», sugerindo a indiferença pela estética clássica, repudiada pelo Romantismo, o cipreste, símbolo da imortalidade, e o cedro, símbolo da nobreza e da força, que permanecem eretos, contrariando o abandono e a decadência a que fora votado o Ramalhete.
Num segundo momento (cap. I, pág. 10), o jardim fica irreconhecível, após as obras de remodelação do Ramalhete. De facto, a estátua reaparece em todo o seu esplendor, simbolizando a ressurreição da família para uma vida feliz e harmónica. Atente-se na sua ligação às personagens femininas do romance: Maria Monforte surge quase sempre como uma estátua, de face «grave e pura como um mármore grego», enquanto Maria Eduarda é apresentada como uma deusa pisando a terra. Porém, após o incesto e o desenlace trágico, a estátua cobre-se de ferrugem. Por seu turno, a cascata, símbolo de regeneração e purificação na tradição judaico-cristã, surge associada ao choro («... esfiado gota a gota na bacia de mármore...»), numa imagem marcada pela água que flui gota a gota, marcando a passagem inexorável do tempo e acentuando, melancolicamente, o destino inexorável da família, condenada ao desaparecimento após um breve momento de ilusão. No entanto, até neste momento se encontram notas dissonantes. Por um lado, o encanto que Afonso encontra no terraço é perturbado pelos prédios de cinco andares que lhe cortam a visão e os horizontes vastos e lhe permitem apenas vislumbrar pormenores que lobriga por entre as filas das ruas. Por outro lado, a tela marinha» que a referida personagem avista de sua casa parece refletir algum desencanto e pessimismo: o movimento dos barcos acentua, por contraste, a quietação e tristeza do moinho e das raras casas, como imagem do isolamento e estagnação da vida portuguesa: «durante dias... o vulto negro de um couraçado inglês» evoca as crises do Constitucionalismo e a dependência do poder da Inglaterra.
Num terceiro momento
Em atualização...
No início, o Ramalhete é descrito de forma disfórica: «sombrio casarão de paredes severas», «com um renque de estreitas varandas de ferro», «uma tímida fila de janelinhas», «o aspeto tristonho de residência eclesiástica». Ora, o vocabulário utilizado conota-o com o fechamento, o isolamento e a tristeza, a que se acrescentam as aproximações aos espaços religiosos, que, por um lado, evidenciam a importância e a influência do clero e da mentalidade clerical no passado da família e, por extensão metafórica, em Portugal, e, por outro, reenviam também para a ideia de clausura e pressão. Desabitado durante largos anos, ganhara tons de degradação e ruína; no entanto, o seu interior manifesta o bom gosto, o requinte e a riqueza da família: «disposição apalaçada», «tetos apainelados», «paredes cobertas de 'frescos'», etc. Note-se que a sua arquitetura evoca o último reinado absolutista, o de D. Maria I. Além disso, é de registar a referência de Vilaça à crença/lenda funesta, segundo a qual «eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete.», o que constitui o primeiro indício trágico da obra.
Subitamente, Afonso decide retornar ao Ramalhete, sacrificando-se pelo neto, Carlos, que, culto, viajado e «com propósitos de trabalho», não gostaria de se «enterrar» na aldeia, decisão em que sofre a oposição de Vilaça, que argumenta com a necessidade de muitas obras e despesas, a falta de um jardim e a lenda funesta. E assim se inicia o seu restauro. Inicialmente, fica encarregado das obras Esteves, «arquiteto, político e compadre de Vilaça», de cuja ação se destaca o aparato grosseiro dos ornatos, que acaba substituído por um «arquiteto londrino» trazido por Carlos, que introduz na residência o conforto, o «luxo inteligente», o bom gosto, a sobriedade e a elegância (traços do protagonista) e que contrastam com a vulgaridade e a ostentação tão apreciadas pela sociedade lisboeta (representada, ironicamente, pelo dito Esteves, entretanto promovido a governador civil). E, assim, o espaço é transformado de acordo com o gosto europeu: introduzindo inovações nos hábitos portugueses (sala de música, bilhar, fumoir), em analogia com os intuitos de renovação da mentalidade portuguesa, empreendidos pela Geração de 70 (característica comum a Eça e a Carlos da Maia).
Vejamos, em pormenor, a reformulação operada no interior da casa. Desde logo destaca-se o pátio de mármore quadrilhado e com plantas e vasos decorativos e bancos de talha; segue-se a antecâmara com estofos do Oriente, divãs cobertos de tapetes persas e largos pratos mouriscos de cobre; o amplo corredor transformado em rica galeria com arcas góticas, jarrões da Índia, quadros devotos para onde abriam várias salas do Ramalhete - o salão nobre, a sala de música com o seu ar rico de século XVIII, o bilhar defronte, o fumoir, a sala mais cómoda com a fofa vastidão das otomanas. No escritório de Afonso, destacam-se os damascos vermelhos, a mesa de pau-preto, as estantes, as encadernações luxuosas, um quadro de Rubens representando um Cristo na cruz (presságio de tragédia: Jesus morreu para expiar os pecados dos homens <-> Afonso morre por causa dos pecados do neto), o biombo japonês bordado a ouro, a pele de urso e uma venerável cadeira de braços «cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda» (novo indício trágico). Os quartos de Afonso , no segundo andar, dão para o corredor guarnecido com os retratos da família, enquanto os de Carlos merecem a apreciação de Vilaça de «aposentos não de médico mas de dançarina», pelo seu luxo e requinte. Não obstante a modernização do espaço, note-se que a imagem do passado perdura na «fachada tristonha».
Esta descrição representa, simbolicamente, uma nova oportunidade de modernização ou reforma da habitação (metaforicamente, do país) para uma nova etapa de ressurgimento e abertura; o reflexo do ideal reformista da geração de Carlos; um reflexo da reforma e europeização do país; o dandismo, o gosto pelo luxo, o dandismo e a formação britânica de Carlos. Por outro lado, é clara a intenção crítica de Eça de Queirós: por um lado, critica a importação de modelos estrangeiros e, por outro, caricaturalmente, a mentalidade portuguesa, caracterizada pelo seu atraso, incultura, megalomania e compadrio (o episódio da escolha de Esteves por ser compadre de Vilaça).
Ao longo do romance, o Ramalhete constitui um marco de referência e acompanha o percurso da família. Símbolo desse percurso é o quintal / jardim, que é apresentado em três momentos diferentes, coincidentes com três momentos vividos pelos Maias.
Num primeiro momento (cap. I, pág. 6), o jardim tem um aspeto de abandono, degradação, ruína e morte (pobre, inculto e abandonado, cheio de ervas bravas, a cascatazinha seca, o tanque cheio de entulho e a estátua de Vénus enferrujada), que se poderá associar ao desgosto e sofrimento de Afonso, resultantes do suicídio de Pedro (relembre-se o estado da estátua de Vénus, deusa do amor). Sobressaem, nesta primeira descrição, a estátua, «enegrecendo a um canto», sugerindo a indiferença pela estética clássica, repudiada pelo Romantismo, o cipreste, símbolo da imortalidade, e o cedro, símbolo da nobreza e da força, que permanecem eretos, contrariando o abandono e a decadência a que fora votado o Ramalhete.
Num segundo momento (cap. I, pág. 10), o jardim fica irreconhecível, após as obras de remodelação do Ramalhete. De facto, a estátua reaparece em todo o seu esplendor, simbolizando a ressurreição da família para uma vida feliz e harmónica. Atente-se na sua ligação às personagens femininas do romance: Maria Monforte surge quase sempre como uma estátua, de face «grave e pura como um mármore grego», enquanto Maria Eduarda é apresentada como uma deusa pisando a terra. Porém, após o incesto e o desenlace trágico, a estátua cobre-se de ferrugem. Por seu turno, a cascata, símbolo de regeneração e purificação na tradição judaico-cristã, surge associada ao choro («... esfiado gota a gota na bacia de mármore...»), numa imagem marcada pela água que flui gota a gota, marcando a passagem inexorável do tempo e acentuando, melancolicamente, o destino inexorável da família, condenada ao desaparecimento após um breve momento de ilusão. No entanto, até neste momento se encontram notas dissonantes. Por um lado, o encanto que Afonso encontra no terraço é perturbado pelos prédios de cinco andares que lhe cortam a visão e os horizontes vastos e lhe permitem apenas vislumbrar pormenores que lobriga por entre as filas das ruas. Por outro lado, a tela marinha» que a referida personagem avista de sua casa parece refletir algum desencanto e pessimismo: o movimento dos barcos acentua, por contraste, a quietação e tristeza do moinho e das raras casas, como imagem do isolamento e estagnação da vida portuguesa: «durante dias... o vulto negro de um couraçado inglês» evoca as crises do Constitucionalismo e a dependência do poder da Inglaterra.
Num terceiro momento
Em atualização...