Português

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Ramalhete

     Logo nas páginas inicias do romance, o narrador procede a uma descrição pormenorizada do Ramalhete. Essa descrição, de acordo com a estética naturalista, tem um objetivo bem definido: permitir o enquadramento das personagens e a definição dos carateres, enquanto espaço de convergência e harmonia entre o ambiente e os seus anfitriões e frequentadores habituais.
     Na atualidade (outono de 1875), o Ramalhete, situado na Rua de São Francisco, às Janelas Verdes, é a residência da família Maia em Lisboa. O seu nome tivera origem num painel de azulejos representando um ramo de girassóis e substituindo o escudo heráldico da família. Atente-se, desde já, no simbolismo destas referências. Por um lado, o nome da habitação evidencia a ligação da família à terra e à província. Por outro lado, o emblema (o ramo de girassóis) associa-se ao simbolismo do girassol, planta que representa a atitude daquele que ama e que se vira continuamente para contemplar o seu amado e a incapacidade de dominar a paixão. No entanto, esta atitude de submissão e de fidelidade com o ser amado associa (o girassol) à incapacidade de ultrapassar a paixão amorosa e a eventual não correspondência da pessoa amada. Aplicando estas ideias à relação de Pedro da Maia e Maria Monforte, constatamos que aquele assume uma postura de absoluta fidelidade e submissão relativamente ao objeto do seu amor, o que o torna incapaz de enfrentar e prosseguir a vida após a traição e fuga da mulher, optando pelo suicídio. É como se tivesse perdido a vontade própria e se tivesse tornado num duplo dela, sem cuja presença se sente incompleto, incapaz de reagir à perda e de viver. Algo de semelhante parece acontecer com seus filhos. Com efeito, no início, após a primeira visão fugaz de Maria Eduarda, Carlos parece viver apenas para a (voltar a) olhar e contemplar. Após a consumação da paixão, ambos a vivem inebriados e eufóricos até ao seu desenlace, ou seja, até ao momento em que ele, tardiamente, revela a sua repulsa por aquela relação incestuosa e decide afastar-se da irmã.

     No início, o Ramalhete é descrito de forma disfórica: «sombrio casarão de paredes severas», «com um renque de estreitas varandas de ferro», «uma tímida fila de janelinhas», «o aspeto tristonho de residência eclesiástica». Ora, o vocabulário utilizado conota-o com o fechamento, o isolamento e a tristeza, a que se acrescentam as aproximações aos espaços religiosos, que, por um lado, evidenciam a importância e a influência do clero e da mentalidade clerical no passado da família e, por extensão metafórica, em Portugal, e, por outro, reenviam também para a ideia de clausura e pressão. Desabitado durante largos anos, ganhara tons de degradação e ruína; no entanto, o seu interior manifesta o bom gosto, o requinte e a riqueza da família: «disposição apalaçada», «tetos apainelados», «paredes cobertas de 'frescos'», etc. Note-se que a sua arquitetura evoca o último reinado absolutista, o de D. Maria I. Além disso, é de registar a referência de Vilaça à crença/lenda funesta, segundo a qual «eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete.», o que constitui o primeiro indício trágico da obra.

     Subitamente, Afonso decide retornar ao Ramalhete, sacrificando-se pelo neto, Carlos, que, culto, viajado e «com propósitos de trabalho», não gostaria de se «enterrar» na aldeia, decisão em que sofre a oposição de Vilaça, que argumenta com a necessidade de muitas obras e despesas, a falta de um jardim e a lenda funesta. E assim se inicia o seu restauro. Inicialmente, fica encarregado das obras Esteves, «arquiteto, político e compadre de Vilaça», de cuja ação se destaca o aparato grosseiro dos ornatos, que acaba substituído por um «arquiteto londrino» trazido por Carlos, que introduz na residência o conforto, o «luxo inteligente», o bom gosto, a sobriedade e a elegância (traços do protagonista) e que contrastam com a vulgaridade e a ostentação tão apreciadas pela sociedade lisboeta (representada, ironicamente, pelo dito Esteves, entretanto promovido a governador civil). E, assim, o espaço é transformado de acordo com o gosto europeu: introduzindo inovações nos hábitos portugueses (sala de música, bilhar, fumoir), em analogia com os intuitos de renovação da mentalidade portuguesa, empreendidos pela Geração de 70 (característica comum a Eça e a Carlos da Maia).
     Vejamos, em pormenor, a reformulação operada no interior da casa. Desde logo destaca-se o pátio de mármore quadrilhado e com plantas e vasos decorativos e bancos de talha; segue-se a antecâmara com estofos do Oriente, divãs cobertos de tapetes persas e largos pratos mouriscos de cobre; o amplo corredor transformado em rica galeria com arcas góticas, jarrões da Índia, quadros devotos para onde abriam várias salas do Ramalhete - o salão nobre, a sala de música com o seu ar rico de século XVIII, o bilhar defronte, o fumoir, a sala mais cómoda com a fofa vastidão das otomanas. No escritório de Afonso, destacam-se os damascos vermelhos, a mesa de pau-preto, as estantes, as encadernações luxuosas, um quadro de Rubens representando um Cristo na cruz (presságio de tragédia: Jesus morreu para expiar os pecados dos homens <-> Afonso morre por causa dos pecados do neto), o biombo japonês bordado a ouro, a pele de urso e uma venerável cadeira de braços «cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda» (novo indício trágico). Os quartos de Afonso , no segundo andar, dão para o corredor guarnecido com os retratos da família, enquanto os de Carlos merecem a apreciação de Vilaça de «aposentos não de médico mas de dançarina», pelo seu luxo e requinte. Não obstante a modernização do espaço, note-se que a imagem do passado perdura na «fachada tristonha».
     Esta descrição representa, simbolicamente, uma nova oportunidade de modernização ou reforma da habitação (metaforicamente, do país) para uma nova etapa de ressurgimento e abertura; o reflexo do ideal reformista da geração de Carlos; um reflexo da reforma e europeização do país; o dandismo, o gosto pelo luxo, o dandismo e a formação britânica de Carlos. Por outro lado, é clara a intenção crítica de Eça de Queirós: por um lado, critica a importação de modelos estrangeiros e, por outro, caricaturalmente, a mentalidade portuguesa, caracterizada pelo seu atraso, incultura, megalomania e compadrio (o episódio da escolha de Esteves por ser compadre de Vilaça).

     Ao longo do romance, o Ramalhete constitui um marco de referência e acompanha o percurso da família. Símbolo desse percurso é o quintal / jardim, que é apresentado em três momentos diferentes, coincidentes com três momentos vividos pelos Maias.
     Num primeiro momento (cap. I, pág. 6), o jardim tem um aspeto de abandono, degradação, ruína e morte (pobre, inculto e abandonado, cheio de ervas bravas, a cascatazinha seca, o tanque cheio de entulho e a estátua de Vénus enferrujada), que se poderá associar ao desgosto e sofrimento de Afonso, resultantes do suicídio de Pedro (relembre-se o estado da estátua de Vénus, deusa do amor). Sobressaem, nesta primeira descrição, a estátua, «enegrecendo a um canto», sugerindo a indiferença pela estética clássica, repudiada pelo Romantismo, o cipreste, símbolo da imortalidade, e o cedro, símbolo da nobreza e da força, que permanecem eretos, contrariando o abandono e a decadência a que fora votado o Ramalhete.
     Num segundo momento (cap. I, pág. 10), o jardim fica irreconhecível, após as obras de remodelação do Ramalhete. De facto, a estátua reaparece em todo o seu esplendor, simbolizando a ressurreição da família para uma vida feliz e harmónica. Atente-se na sua ligação às personagens femininas do romance: Maria Monforte surge quase sempre como uma estátua, de face «grave e pura como um mármore grego», enquanto Maria Eduarda é apresentada como uma deusa pisando a terra. Porém, após o incesto e o desenlace trágico, a estátua cobre-se de ferrugem. Por seu turno, a cascata, símbolo de regeneração e purificação na tradição judaico-cristã, surge associada ao choro («... esfiado gota a gota na bacia de mármore...»), numa imagem marcada pela água que flui gota a gota, marcando a passagem inexorável do tempo e acentuando, melancolicamente, o destino inexorável da família, condenada ao desaparecimento após um breve momento de ilusão. No entanto, até neste momento se encontram notas dissonantes. Por um lado, o encanto que Afonso encontra no terraço é perturbado pelos prédios de cinco andares que lhe cortam a visão e os horizontes vastos e lhe permitem apenas vislumbrar pormenores que lobriga por entre as filas das ruas. Por outro lado, a tela marinha» que a referida personagem avista de sua casa parece refletir algum desencanto e pessimismo: o movimento dos barcos acentua, por contraste, a quietação e tristeza do moinho e das raras casas, como imagem do isolamento e estagnação da vida portuguesa: «durante dias... o vulto negro de um couraçado inglês» evoca as crises do Constitucionalismo e a dependência do poder da Inglaterra.
     Num terceiro momento




Em atualização...

Subtítulo: «Episódios da Vida Romântica»

     O subtítulo de Os Maias aponta para uma descrição / pintura de um estilo de vida - o romântico (daí a designação de «Vida Romântica» -, feita através da crónica de costumes da alta sociedade lisboeta da década de 70 do século XIX, sobretudo da aristocracia e da alta burguesia.
     Estamos perante uma visão fortemente crítica e uma sátira social que revela os defeitos sociais que impedem o progresso e a renovação das mentalidades e, por extensão, do país.
     A crónica de costumes é concretizada a partir da sátira, da crítica, da ironia, das personagens-tipo e da descrição de ambientes - os episódios - e constitui uma ação aberta:

Manual Página Seguinte (p. 235)

     Por outro lado, note-se que os dois níveis narrativos - a história da família Maia e a crónica de costumes - se articulam, funcionando os ambientes descritos como pano de fundo para a atuação de algumas das personagens da intriga principal que, pelo seu caráter, comportamento e postura, se destacam da mediocridade geral que pauta a sociedade portuguesa:

Elisa Valério, Para uma leitura de Os Maias de Eça de Queirós


Em atualização...

Título - «Os Maias»

     O romance Os Maias narra a história de uma família lisboeta - a família Maia -, representante da alta burguesia, através de três personagens masculinas que representam três gerações, correspondentes a momentos histórico-políticos e culturais diferentes:


     De facto, Eça «serve-se» da história da família Maia para caracterizar três gerações:
  • a geração das lutas entre liberais e absolutistas (que opuseram D. Pedro a D. Miguel) e que corresponde, no romance, à juventude de Afonso da Maia;
  • a geração do Ultrarromantismo, em que se inclui Pedro da Maia e que sobreviverá na figura de Tomás de Alencar;
  • a geração do Portugal da Regeneração, a que Carlos pertence e que continua, no fundo, os ideais da primeira geração romântica.
     Por outro lado, a história da família inclui a ação / intriga central, que se constrói como uma ação fechada.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A génese de Os Maias

     «Em 1878, em carta ao editor Ernesto Chardron, Eça de Queirós menciona «Os Maias» como título do volume XII, e último, de um conjunto de «pequenos romances» sob a designação de «Cenas da Vida Portuguesa», em substituição de «Cenas da Vida Real», referida um ano antes. Todavia, a génese concreta da novela deverá situar-se pouco antes de 1880, pois, neste ano, Eça, de licença em Lisboa, promete ao diretor do Diário de Portugal uma narrativa com este título para ser publicada em folhetins, conforme anuncia o jornal em maio. E apesar de ter enviado, em sua substituição, O Mandarim, a publicidade a Os Maias continua, sendo prometidos «para breve».
     Entretanto, Eça resolvera transformar a «novela breve» num romance, como confessa a Ramalho Ortigão, em carta de 20 de fevereiro de 1881: «Apenas o trabalho ia em meio, reconheci que tinha diante de mim um assunto rico em carateres e incidentes e que necessitava um desenvolvimento mais largo de romance.» Neste ano, é publicado Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, cuja visão pessimista do Constitucionalismo teria influenciado Eça de Queirós n'Os Maias.
     Decidido, portanto, a publicar a obra em livro, e não num jornal, Eça, em Bristol, aceita as propostas de uma editora de Lisboa prometendo-lhe uma «edição rica», perspetiva que o estimula a fazer «um romance em que pusesse tudo o que [tinha] no saco», transformando a novela num «robusto e nédio livro, em dois volumes, um verdadeiro éclat para o burguês», conforme acrescenta na carta citada.
     Desiludido com o serviço prestado pela editora, e sem contrato de edição, Eça, em 12 de julho de 1883, no Porto, onde se encontrava de férias, vende ao editor Ernesto Chardron a primeira edição d'Os Maias. Em 10 de maio de 1884, informa Oliveira Martins, meio a sério, meio irónico: «Eu continuo com Os Maias, essa vasta machine, com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco, toda trabalhada em tons pardos, pomposa e vã, e que me há de talvez valer o nome de Miguel Ângelo da sensaboria.»
     A morte de Chardron em 1885 não interrompeu a impressão, mas Eça continuou a retocar e a ampliar o romance, de acordo com a exigência de perfeição estética que sempre o caracterizou: no fim de dezembro de 1887, ainda não corrigira as últimas provas tipográficas, exigindo reescrever outras já impressas. Finalmente, em junho de 1888, conseguem arrancar-lhe as últimas folhas e, no fim desse mês, depois de quase dez anos de elaboração, Os Maias, o romance mais extenso de Eça de Queirós (o único em dois volumes), e de realização mais cuidada, é posto à venda numa edição de 5000 exemplares, embora contendo lapsos na numeração de alguns capítulos.
     Em 12 de junho, ao anunciar a Oliveira Martins a próxima publicação do romance, pedindo-lhe publicidade no jornal que dirigia (Repórter), e substituindo-se aos editores, a quem censura o desinteresse, Eça indica os episódios do romance que considerava melhor realizados e, portanto, merecedores de mais atenção e apreço: «Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário.»
     Em 26 de outubro, a agradecer a Luís de Magalhães a sua crónica sobre Os Maias, Eça escrevia: «Foi - de todos os artigos sobre este cartapácio - aquele que viu com mais finura e mais altura os lados importantes do romance, como a desnacionalização dos carateres

Orientações para a leitura d'Os Maias, Maria Ema Tarracha Ferreira

O romance português antes de Eça de Queirós

     «O romance surge em Portugal na primeira metade do século XIX com as obras de Almeida Garrett e de Alexandre Herculano, introdutores do Romantismo na literatura portuguesa, exprimindo o nacionalismo e o individualismo dos seus autores, assim como a sua experiência de liberais emigrados em França e Inglaterra.
     Alexandre Herculano cria o romance histórico e medievalista, caracterizado pelo conceito espiritual do amor, aliado à conceção angelical da mulher, tópicos inerentes à mentalidade romântica. Embora Eça de Queirós, em obediência à Escola realista, repudie o romance histórico, pode considerar-se herdeiro de Herculano pelo anticlericalismo que marca grande parte da sua obra.
     Em Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett atualiza a ação do romance, situando-se na sua época, e cria o primeiro herói romântico, Carlos, que, pela complexidade psicológica, pode considerar-se o protótipo do herói moderno, cuja influência, como modelo, se faz sentir na ficção oitocentista. Todavia, a inovação do romance de Garrett é, sobretudo, introduzida a nível da linguagem - viva, coloquial e penetrada de ironia, características que reaparecem, talentosamente cultivadas, na ficção queirosiana, e especialmente n'Os Maias.
     No período que corresponde à segunda geração romântica, ou dos Ultrarromânticos (1840 a 1865), a conceção da vida e da literatura, de acordo com os costumes do tempo, está expressa na obra de Camilo Castelo Branco, o criador da novela passional, género que inclui já a observação imparcial e espontânea da realidade. Narrativa movimentada, em que sobressai o conflito amoroso de desenlace trágico, e marcado de lances inesperados - fugas, raptos, adultérios, duelos, suicídios, incluindo também, pela primeira vez, o tema do incesto -, a novela passional exalta a paixão avassaladora que se abate como uma fatalidade sobre as personagens. N'Os Maias, apesar da intenção crítica e da visão irónica, perdura a paixão fatal, mas apresentada sem enaltecimento sentimental e desenvolvendo-se como uma verdadeira tragédia.
     Júlio Dinis, introdutor do romance de observação filiado na tradição realista inglesa (sem relação com o Realismo francês), estabelece nova temática, atenta à vida quotidiana e, descrevendo as personagens com simpatia e humorismo, mas sem as ridicularizar, cria tipos inolvidáveis, a exemplo de Jane Austen e Dickens, autores que Eça lerá em Inglaterra, conforme testemunha a sua evolução. A técnica narrativa adotada por Júlio Dinis é também de inspiração inglesa: baseada na valorização do tempo narrativo ou diegético, proporciona ao leitor, através do desenvolvimento da ação, longo convívio com as personagens. Esta inovação, admiravelmente explorada por Eça de Queirós n'Os Maias, permite-nos reconstituir as cenas em pormenor, recordando-as como se as tivéssemos vivido.»

Orientações para a leitura d' Os Maias, Maria Ema Tarracha Ferreira
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