● Contextualização do capítulo
A carta de Carlos a
Joaninha, datada de 1843, ocupa vários capítulos (XLIV-XLVIII) e é lida pela
narrador-viajante e cronista da obra, em 1843, quando a recebe das mãos de Frei
Dinis, que reencontra ao passar pelo vale de Santarém de regresso a Lisboa.
A carta é, sem simultâneo,
uma carta-punhal e um texto autobiográfico e memorialístico, e evoca a
tragédia familiar, que termina na mor, física ou moral, de todos os
intervenientes.
● Estrutura do capítulo XLIV
▪
1.ª parte (linha 1 – “Olha o que será o resto!”): Considerações gerais
sobre o passado e a personalidade de Carlos.
▪
2.ª parte (“Tu não ignoras…” – “e não guardei verdade a ninguém.”):
Análise da situação da família e dos erros cometidos.
▪
3.ª parte (“Mas espera, ouve…” – Exílio de Carlos em Inglaterra e a sua
devoção às três filhas da família que o acolhe.
● Mudança de narrador e narratário
▪
Narrador: Carlos → autodiegético (1.ª
pessoa), com uma dimensão de relato autobiográfico.
▪
Narratário: Joaninha (2.ª pessoa).
● Retrato de Carlos
▪ Carlos mostra confusão emocional
(«confunde-se, perde-se-me esta cabeça nos desvarios do coração.»), algum desespero
(«Eu estou perdido.») e sentimento de culpa.
▪ Carlos perdeu a sua
pureza e o seu idealismo quando integrou a vida em sociedade e aceitou as suas
convenções.
▪ Possui uma grande ânsia
de viver («excessos»), mas, em simultâneo, sente uma grande frustração
existencial por não ser quem sonhou.
▪ Quando se refere ao
passado familiar, Carlos mostra-se:
» amargurado («e imaginei-a poluída de um enorme
crime…»);
» enraivecido e revoltado («não o podia ver, hoje que
sei o que ele me é… Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!»);
» ressentido («… ainda o posso ver menos!») e incapaz
de perdoar («… eu, como lhe hei de perdoar eu…»).
▪ No amor, Carlos é uma
figura volúvel, egoísta e mentirosa (mente às mulheres que o amam).
▪ Afirma-se «perdido»,
por duas razões: a sua natureza incorrigível → energia em excesso e coração demasiado
ardente; a perda da sua integridade pessoal e da sua
honestidade, passando a reger-se pelas convenções, pelos interesses e pelas
manhas sociais, o que o deixa profundamente angustiado e a sensação de que
falhou.
▪ Duvida que Joaninha o
compreenda, pois é mulher, e ele acredita que as mulheres, como são diferentes
dos homens, jamais entenderão os seus excessos. No entanto, conta-lhe a
verdade, destruindo-lhe as ilusões, para que ela, conhecedora da verdade da
natureza masculina, se prepare para as armadilhas do amor/coração.
▪ A sua partida do vale
ficou a dever-se ao crime que manchou a casa paterna (a morte do seu suposto
pai), ignorando que o verdadeiro era Frei Dinis.
▪ Por outro lado, julgava
que a avó tinha sido cúmplice do crime e, não o sendo, culpa-a de omissão e
confessa que não consegue também perdoar o adultério da mãe.
▪ Confessa a Joaninha que
a amou, mas o seu coração não era inteiramente livre e mentiu-lhe (e a si
próprio), ainda que involuntariamente, por isso não se considera merecedor do
seu amor.
● A carta como analepse e como
digressão sobre o amor
2.1.
A carta como analepse:
.
escrita em maio de 1834 – lida em 1843:
-
a juventude de Carlos;
-
o exílio em Inglaterra;
-
a relação com as três irmãs inglesas;
-
regresso a Portugal.
2.2.
A carta como digressão sobre o amor:
.
o drama amoroso de Carlos:
- a sua paixão (correspondida por Laura);
- a impossibilidade dessa paixão (Laura é
comprometida);
- a recordação de Joaninha;
- a aproximação a Júlia;
- a paixão por Georgina;
- a separação, com a partida para os Açores;
.
a evolução do sentimento de Carlos;
- “Em breve eu amava perdidamente uma delas” (Laura);
- “… pois nesse mesmo instante distintamente me
apareceu diante dos olhos de alma a única imagem que podia chamá-la do abismo:
era a tua, Joana!”;
- “Júlia era parte de nós, era uma porção do nosso
amor… E já as confundia ambas por tal modo no meu coração, que me surpreendia a
não saber a qual queria mais.”;
- “Uma delas, jovem, ardente, apaixonada, quis tomar
a empresa de me consolar. (…) Era Soledad. (…) Eu não amei Soledad.”;
. “… todo o passado me esqueceu assim que te vi.
Amei-te.” (Joaninha).
● Visão de Joaninha segundo Carlos
▪ É generosa: «tens
generosidade».
▪ Não o compreende, por
causa da sua natureza de mulher.
▪ É jovem e inexperiente,
vista como de outro tempo, que destoa no mundo moderno: «Tu és jovem e
inexperiente, a tua alma está cheia de ilusões doces.»
▪ Vive cheia de ilusões:
«a tua alma está cheia de ilusões doces».
▪ É uma vítima de ter
amado um herói perseguido por um destino adverso: «Tu não compreendes isto,
Joaninha, não me entendes decerto; e é difícil».
● Visão de Carlos da mulher e da génese
do amor
1.
Visão romântica da mulher
» natureza diferente do homem: «… as mulheres não
entendem os homens.»;
» é um «produto» social e natural que suscita
admiração, desejo, amor: «Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher
que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama.»;
» a mulher-anjo: «E era um anjo…».
2.
A génese do amor
- a admiração
- a beleza
- o espírito →
«os dotes de alma e do corpo»
- a graça
- o amor romântico:
. é indefinível («O amor não está
definido nem o pode ser nunca»);
. distingue-se do flirt, da
admiração, do desejo.
● Informações sobre o passado da
família
▪ A mãe de Carlos manteve
uma relação adúltera com Frei Dinis.
▪ Dessa relação nasceu
Carlos.
▪ A avó escondeu essa
relação dos olhos do mundo.
● A vida de Carlos em Inglaterra
▪ No início, Carlos
estranhou os hábitos da aristocracia inglesa, protegida e artificial, no
entanto depressa se lhe moldou, revelando a maleabilidade do seu caráter.
▪Adaptou-se também à arte
da sedução, aprendendo a flartar, de modo inconsequente, com as três
irmãs. No seu caso, a emoção dominava a razão, e ele enganava-se a si mesmo,
interiormente.
● Carlos, o herói romântico: «Tenho
energia demais, tenho poderes demais, no coração».
▪ Carlos luta pelo
ideário liberal, pela liberdade.
▪ Temperalmente, é
impulsivo, intenso, não admite injustiças nem afrontas.
▪ Sentimentalmente, é um
homem sensível, com alma de poeta, que se entrega ao amor de forma excessiva e
se deixa dominar pelo coração, pelo sentimento, que coloca à frente da razão.
● Recursos expressivos
▪ Metáfora:
- «sabia-a [à casa materna] manchada de um grande
pecado, e imaginei-a poluída de um enorme crime»: os erros («pecado», «crime»)
cometidos por membros da família de Carlos a uma sujidade que conspurca aquele
lar para dar conta de que a pureza inicial foi «manchada» e «poluída» pelos
comportamentos ilícitos do pai, da mãe e da avó do protagonista;
- «afiz-me a vegetar docemente na branda atmosfera
artificial daquela estufa sem perder a minha natureza de planta estrangeira.»:
Carlos tinha confessado a Joaninha que a amava, no entanto, pela leitura da
carta, declara que amava outra mulher e que ficara fascinado ainda por outras
duas. Revela-se, assim, um marialva, egoísta e desonesto no amor, ou seja, um
D. Juan.
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