A Cachoeira de Paulo Afonso é
um poema narrativo, composto por trinta e três poemas dramático-narrativos
dispostos segundo uma ordem cronológica para cada acontecimento, interligados
uns aos outros de modo a formar uma narrativa, publicado em 1876, cinco anos
após a morte do seu autor, Castro Alves, e em pleno período em que o movimento
abolicionista ganhava força entre os intelectuais brasileiros. A independência
do Brasil, em 1822, serviu de estímulo à nação para a redefinição da identidade
nacional.
A obra explora liricamente o tema
romântico da impossibilidade da vivência do amor, o cerceio dos direitos
primários – representado pela violação sofrida pela escrava Maria –, a
escravidão e, por fim, a restauração moral dos indivíduos escravizados, que
efetivam metafisicamente o seu amor através do suicídio, despenhando-se de uma
cachoeira a bordo de uma canoa. Deste modo, o casal preserva a honra por meio
da morte e liberta-se da tragédia e da opressão social através da recuperação
do seu próprio destino. A narrativa constrói-se em torno do estupro sofrido por
Maria às mãos do filho do senhor de escravos. Apesar do desejo de vingança,
Lucas, o escravo amante de Maria, desiste desse seu propósito quando descobre
que o criminoso é seu meio-irmão. Dado que o projeto de vingança não se concretizará,
o casal lança-se do alto da cachoeira de Paulo Afonso, um conjunto de imensas
quedas de água do Rio São Francisco, na Baía, assegurando, assim, a sua união
cósmica.
Os poemas que constituem a obra são
os seguintes: “A tarde”, “Maria”, “O baile na flor”, “Na margem”, “A queimada”,
“Lucas”, “Tirana”, “A senzala”, “Diálogo dos ecos”, “O nadador”, “No barco”,
“Adeus”, “Mudo e quedo”, “Na fonte”, “Nos campos”, “No monte”, “Sangue de
africano”, “Amante”, “Anjo”, “Desespero”, “História de um crime”, “Último
abraço”, “Mãe penitente”, “O segredo”, “Crepúsculo sertanejo”, “O bandolim da
desgraça”, “A canoa fantástica”, “O São Francisco”, “A cachoeira”, “Um raio de
luar”, “Despertar para morrer”, “Loucura divina”, “À beira do abismo e do
infinito” e “A cachoeira de Paulo Afonso”.
Maria e Lucas marcam um encontro no
rio S. Francisco. Ela chega primeiro e decide banhar-se no curso de água, no
entanto é surpreendida por um homem. Inicia-se, então, uma longa perseguição
pelos campos, até que é alcançada e estuprada. Enquanto isso, Lucas anda pela
mata cantando o seu amor por Maria. Quando chega a casa dela, não a encontra, por
isso volta a percorrer a mata à sua procura. Encontra-a a dormir numa canoa que
ia descendo o rio em direção à cachoeira Paulo Afonso (hoje desaparecida para
dar lugar a uma hidroelétrica). O escravo nada até à embarcação e acorda a
amada, que confessa que está ali de propósito para cometer suicídio.
Posteriormente, conta-lhe que, enquanto tomava banho numa fonte, foi atacada e
estuprada, não sem antes ter tentado escapar. Lucas não duvida de Maria nem a
culpabiliza, mas diz-lhe que, em vez de se matar, ambos deveriam procurar o
culpado e vingar-se. No entanto, a escrava recorda uma promessa que ele fizera
a sua mãe no leito de morte: a velha escravizada tinha revelado que fora
estuprada pelo patrão (o Senhor) e morta por ciúmes pela sua esposa (a Sinhá). Além
disso, pedira-lhe que não se vingasse, o que o torna impotente perante a
situação trágica em que se vê envolvido. Na sequência, Maria fá-lo prometer que
não buscará vingança. Como sucede por vezes com algumas vítimas de agressão, a
jovem parece sentir-se culpada do crime que ela própria sofreu. Maria revela,
então, que o estuprador tinha sido Sinhozinho, o filho do patrão e irmão
paterno de Lucas. A memória do último pedido da mãe convence-o a não procurar
vingança. Aparentemente concordando com ambas as mulheres vitimizadas, para não
desrespeitar a promessa feita e assassinar o seu meio-irmão, conclui que a
morte é a melhor solução e abraça-se a Maria enquanto a canoa se precipita na
cachoeira de Paulo Afonso, no rio São Francisco.
A obra abre com o poema “A Tarde”,
que descreve a atmosfera bucólica e deslumbrante em que vivia Maria, uma jovem
delicada como a flor do sertão e sensual, com um corpo harmonioso e belo como a
natureza, a qual desempenha um papel relevante em todas as situações em que a
antítese é chamada a sublinhar contrastes reveladores de um conflito moral ou
sentimental. As paisagens predominantes são as naturais, como a natureza
sertaneja. Ocasionalmente, surge, nas visões das personagens, a paisagem
bíblica, como, por exemplo, no texto “A Senzala”, em que há referência à
luz do Paraíso, feita por Lucas.
No poema “Maria”, é-nos
apresentada a protagonista, logo após o desvendar, em “A Tarde”, da atmosfera
bucólica em que vivia. Temos, assim, o uso de uma técnica romântica: inserir as
personagens no ambiente que as rodeia. Maria é uma mucama, palavra que não tem
o mesmo significado da literatura africana, e o seu retrato corresponde ao
modelo romântico da figura feminina, ou seja, o de uma escrava, mulher mulata,
uma presença que desperta o desejo, a luxúria, que está carregada de
sensualidade: “‘‘A grama um beijo te furta / Por baixo da saia curta, / Que a
perna te esconde em vão… / Mimosa flor das escravas.”. Ao longo do poema, o
sujeito lírico mistura essa imagem de escrava à condição de mulher duplamente
violada – por ser mulher e por ser escrava negra –, suscitando no leitor
sentimentos de compaixão.
Em “O baile na flor”, o
sujeito poético descreve a rara beleza da natureza, comparando a floresta com
um baile no qual os convidados são silvos e fadas, flores e insetos, que bailam
ao som de uma animada “orquestra de grilos nas flores”, e explora a riqueza
exuberante, «mágica» e intocada e cheia de vida da fauna e da flora brasileira.
Na descrição da “Queimada”, o
narrador percorre o campo a cavalo, acompanhado do seu perdigueiro, à procura
de descanso e de reencontro consigo mesmo, o que proporciona cenas que captam
tanto a realidade física e geográfico quanto a social, pois nelas estão
presentes tipos regionais, como o tropeiro, o vaqueiro, o violeiro, a mulata,
entre outros, que formam com os elementos naturais um painel variado e
grandioso. Nesse seu percurso, o «eu» testemunha um incêndio que destrói tudo,
como consequência da ação humana. Esta parte funciona como uma espécie de
prólogo do que está para ser narrado. A natureza é antropomorfizada, é vista
como um conjunto de vidas. Nela, o coração sangra e o cedro, tal como um ser
humano, esbraceja para o alto perante a devastação total.
Lucas entra em cena no poema
homónimo, que mostra como o «eu» lírico valoriza o negro enquanto homem, que
passa a ter uma identidade: chama-se Lucas, é um lenhador, escravo e
pretendente de Maria. O poema valoriza a sua beleza negra, destacando traços do
seu rosto, as suas mãos, o seu vigor físico, bem como o seu canto. Descendo a
encosta do monte, ao clarão da queimada, à procura da cabana, ele pensa na sua
amada e canta baixinho a tirana, uma melodia criada por si mesmo. Na canção,
Lucas faz referência à beleza da amada, que não é percebida apenas pelo
escravo, pois o filho do patrão também já tinha notado a sensualidade de Maria.
Em simultâneo, a natureza é enquadrada como o trabalho do escravo lenhador e
como uma espécie de sua mãe, ele que é tão vigoroso como a floresta: “Um belo
escravo da terra / Cheio de viço e valor… / Era o filho das florestas! / Era o
escravo lenhador! / Que bela testa espaçosa, / Que olhar franco e triunfante! /
E sob o chapéu de couro / Que cabeleira abundante! / De marchetada jiboia /
Pende-lhe a rasto o facão… / E assim… erguendo o machado // Na larga e robusta
mão…”.
O sétimo poema, intitulado “Tirana”,
parece uma cantiga, pelo uso da redondilha maior, que lhe dá um ritmo
acentuado. Aliás, a seleção do ritmo e da métrica é típica de um certo
folclore, mas nele encontramos outras características, como a comparação da
mulher com elementos da natureza do Brasil: manoca, baunilha, valorizada pela
forma como cresce, pelo seu odor, que mostra uma certa sensualidade. No que diz
respeito à caracterização de Maria (mulata, com tranças, etc.), a descrição é
toda eufemística, dado que a intenção é idealizar o negro, tal como a de José
de Alencar passava por valorizar o índio. O processo é o mesmo, o que diverge
são as figuras e a respetiva função: a idealização do indígena tinha por
objetivo a busca das raízes da nacionalidade, enquanto a do negro visava a sua
defesa. Em ambos os casos, a idealização procura a aproximação ao branco.
Castro Alves coloca um véu sobre o negro, pois é sempre referido por “moreno” /
“mulato”. No “Navio Negreiro”, o objetivo era chocar o leitor; neste poema, é
arrastá-lo. A estrofe final tem uma imagem parecida com a que aparece no final
de Iracema: Martim ouve a voz de Iracema na palmeira.
Em “Senzala”, o sujeito
poético procura retratar a casa onde Maria, a escrava mulata, vivia, uma
habitação pequena, bela e singela, e onde os passarinhos chilreavam e
brincavam.
No poema “O Nadador”, é
introduzido o filho do patrão, que surpreende Maria a tomar banho no rio, a
qual se assusta com a sua presença. A perseguição e o estupro são motivos que o
excitam, dado que a escrava denota o sentido da caça. Este tipo de atos, na
época da escravatura, era bastante comum, por isso, se o pai cometera tal
violência no passado, o filho imita-o e repete-a. Além do caráter repugnante e
intolerável do crime que é a violação, a verdade é que a mesma provoca a
desestruturação do sentido da família negra. O escravo, como consequência,
via-se impossibilitado de ter o mínimo de organização social e psicológica. De
facto, a escravidão e a depravação sexual andam de mãos dadas, pois fazem parte
do regime da escravatura. Um dos motivos que justificava estas atitudes por
parte dos fazendeiros era, além do prazer da caça, o interesse financeiro. Com
efeito, estes atos favorecia o crescimento do número de escravos, pois eram
muitas vezes estimulados a procriar em troca da liberdade. Contudo, os
fazendeiros, em muitos casos, encarregavam-se pessoalmente de aumentar o seu
número de escravos.
Por outro lado, na maioria dos
poemas românticos sobre escravos, a beleza do corpo da escrava é descrito como
mulher-flor e mulher-caça, isto é, como um objeto. Este poema de Castro Alves
realiza uma série de inversões e deslocamentos relativamente ao que era
característico entre os românticos. O erótico e o sensual, por exemplo, são
inscritos simultaneamente; a tragédia que atinge este casal é situada num nível
racial e social. A violência erótica complementa a violência racial, social e
económica. Há uma série de fatores que desencadeiam esta prática violenta, como
o desejo de dominação do objeto, dado pela atração sexual. Ganha destaque a
união do prazer com a violência sexual como prática social: para o obter, o
homem necessita de caçar um ser de outra espécie, alguém que seja diferente de
si, o que pode passar pela posição social, como é o caso do senhor e da
escrava. Esta diferença social torna a prática sexual em algo tão satisfatório
como a caça. Maria, na sua condição de escrava, constitui o objeto ideal para
esta busca de prazer sexual.
A obra mostra que Maria é diferente
das outras mucamas: ela não quer nada do patrão, não possui nenhum interesse,
como sucede no caso de uma troca de favores, visto que não faz uso dos seus
atributos físicos para retirar benefícios. Na verdade, ela é metaforizada como
a noiva da morte, dado que os seus projetos de felicidade são destruídos
tragicamente. Maria é descrita como a “flor manchada por cruel serpente”, “a
rola”, “a perdiz” tomada pelo violador. A sedução não existe, apenas violência,
a qual determina não só o drama do casal, mas o da sociedade, cuja repressão
não deixa margem para a concretização do desejo de liberdade.
Numa sociedade escravocrata, brancos
e negros desempenhavam papéis bem definidos. O facto de o homem burguês branco
ver a mulher de categoria social inferior – neste caso, a escrava – como objeto
sexual associou a ideia do prazer sexual à decadência social e até económica, o
que inviabilizava qualquer hipótese de existir sentimentos afetivos entre
pessoas de estratos sociais e económicos diferentes.
Em “Adeus”, Lucas critica o
facto de Maria, a sua amada, lhe ter dito adeus, pois sem ela ele não consegue
viver; pelo contrário, se a separação se concretizasse, morreria de tanta dor,
situação que prossegue em “Mudo e quedo”, onde se mostra a desgraça de
um amor passado e a dor que deixa marcas permanentes para aquele que fica – uma
das características do romantismo brasileiro.
O primeiro monólogo de Maria na obra
sucede nos poemas “Na Fonte”, “Nos Campos” e “No Monte”,
nos quais a escrava relata, na primeira pessoa, a experiência da violência
sexual que sofreu. Para Castro Alves, o estupro da mulher amada pelo dono de
escravos correspondia ao derradeiro degrau na descida moral do escravo à
indignidade irrestrita. Maria, após percorrer a mata durante bastante tempo,
chega a uma fonte, um ambiente que representa o local onde Pã
(uma divindade que alguns autores associam à masturbação, à epilepsia e, inclusive,
à violação) espera as ninfas. A jovem escrava decide banhar-se na água da
fonte, mas, de súbito, surge em cena o filho do patrão. Maria fica em pânico
(segundo alguns autores, este nome provém precisamente de Pã), pois estava num
local ermo, sozinha com ele, estava nua e sem ninguém que lhe pudesse acudir.
Começa a correr, então, para o campo, mas a fuga é em vão, dado que logo é
alcançada pelo homem, que representa o deus acima referido no poema, só que,
enquanto Pã era escuro e perseguia ninfas brancas, o filho do patrão é branco e
encontra-se na presença de uma “ninfa mulata”.
A cena, que deveria corresponder a
um momento de sedução do amado (Lucas) transforma-se num ato de extrema
violência física que impede o encontro amoroso dos dois escravos. O erotismo e
a sexualidade adquirem, assim, um caráter manifestamente negativo, associado à
violência física e psicológica, a um comportamento patológico e doentio, não só
em termos psicológicos e genéricos, mas também físicos e concretos, visto que estas
atitudes levaram a que o negro brasileiro adquirisse doenças venéreas, como,
por exemplo, a sífilis, sobretudo nas senzalas coloniais.
A obra gira em torno do casal de
escravos, que lutam pela dignidade, pela liberdade e pela moral da personagem
feminina, que foi violentada. No poema “Desespero”, encontramos o
discurso de Lucas, quando a amada lhe implora que esqueça a vingança e ele lhe
responde dizendo que a jovem nunca soubera o que era ser escrava de verdade,
que os escravos são injustiçados desde o berço. Deste modo, Castro Alves
procura mostrar que o papel do negro nunca foi de apatia e inércia, pelo
contrário ele constitui-se como sujeito, tal como Maria, que é estuprada e se
preocupa com o seu valor moral.
Em “História de um Crime”,
Maria descreve o cenário do episódio da morte da mãe de Lucas: “estreita e
lodosa sala”, na qual arquejava a mulher em “triste agonia”, numa noite sombria
de vendaval, e a parca iluminação do espaço contrastava com a face amarelada de
Cristo na parede; os latidos do cão de guarda; o abatimento físico da escrava
nos seus derradeiros instantes de vida (“o derradeiro suor”, “acordava a
mártir”, “ouvia em torno com medo”, “Do peito cansado, exangue, / Às vezes
rompia o sangue”).
Nos poemas seguintes – “Último
Abraço”, “Mãe Penitente” e “O Segredo” –, rememoram-se os
eventos passados, presentificando-os, estabelecendo o «eu» poético um
paralelismo entre os traumas vivenciados pela mãe de Lucas e por Maria, o que
evidencia a perpetuação da violência senhorial entre sucessivas gerações de
escravos. Estes poemas convocam também a questão da religião, à qual está
associado um caráter omisso perante a violência, como é o caso do estupro de
Maria. Além disso, apenas os brancos eram protegidos; a mãe de Lucas não teve
nenhuma prece quando estava a morrer; o padre era representado por duas
crianças, como se pudessem dar a extrema-unção: “Ainda me lembro agora /
Daquela noite sombria / Em que u’a mulher morria / Sem rezas, sem oração!... /
Por padre – duas crianças… / E apenas por sentinela / Do Cristo a face amarela
/ No meio da escuridão.” (“História de um crime”). A imagem da mãe
agonizante é bastante emotiva, como se pode comprovar pelo uso de recursos como
os vocativos (“Filho, adeus!”) e nas apóstrofes exclamativas (“Que sina, meu
Deus!”, “Pois que seja feita, Senhor!”). O apelo insistente da escrava,
dirigido ao filho, é intenso e pleno de emoção e dramatismo: “Chega-te perto…
mais perto; / Nas trevas procura ver-te / Meu olhar, que treme incerto, /
Perturbado, vacilante…” (“Último Abraço”). Um outro recurso importante é
a gradação de ideias relacionadas com os abusos cometidos contra si: “De
espedaçarem-se as carnes / O tronco, o açoite, a tortura, / De tudo quanto
sofri.”), cuja progressão ascendente denuncia a violência a que foi sujeita. No
final de “Mãe Penitente”, a mulher pede perdão ao filho por o predispor,
na condição de propriedade alheia, ao sofrimento infindável: “fiz o maior dos
crimes: / – Criei um ente para a dor e a fome!”
Por seu turno, “O Segredo”
está dividido em quatro segmentos. Os dois primeiros compreendem a fala da mãe
de Lucas, na qual ela, no leito de morte, lhe revela que o pai é o patrão, de
quem primeiro foi vítima e que quem a havia induzido à morte fora a sua esposa,
num ímpeto de raiva e ciúme. De facto, estas figuras, dominadas pelo ciúme,
visto que não eram amadas nem respeitadas pelos maridos, procuravam dominar,
tiranizar e exercer violência sobre os escravos, com o objetivo de se vingarem.
Esta noção é comprovada pela seguinte fala da mãe: “Matou-me como um tigre carniceiro,
/ Bem vês, / Uma branca mulher, que em se resume / Do tigre – a malvadez / Da
cascavel – rancor!” De seguida, apela ao filho que tenha piedade do pai,
obrigando-o a prometer-lhe que nunca se vingaria dele em nome dos laços de
sangue que os unem: “Mas hás de jurar primeiro, / Que jamais tuas mãos
inocentes / Ferirão meu algoz derradeiro…”; “Deixo-te, pois… / (…) Um crime a
perdoar…”. O terceiro segmento do poema é constituído por uma estrofe que dá
conta do desalento do pequeno Lucas atrelado ao corpo da mãe já morta. As doze
estrofes seguintes regressam ao presente, ao momento em que Maria e o amado
dialogam sobre a promessa feita à mãe na infância e, na sequência, a jovem
confessa o nome do seu violador: o filho do patrão, meio-irmão de Lucas. Na
última estrofe de “O Segredo”, o escravo sustenta não apenas o desejo de
defender a honra dos seus, mas também a recusa do seu rebaixamento moral:
“Ninguém! que a nada humilho-me”, mas, logo de imediato, é esmagado pela
revelação de Maria: “Mata-me!... É teu irmão!...”. Esta revelação de parentesco
altera dramaticamente o curso dos acontecimentos, nomeadamente o futuro do
casal de jovens escravos. É o momento da anagnórise da tragédia clássica grega,
segundo a qual a revelação de um dado desconhecido muda o rumo da ação. É o que
acontece, por exemplo, em Frei Luís de Sousa, quando é revelado que o
Romeiro é, afinal, D. João de Portugal, ou n’Os Maias, o conhecimento de
que Carlos e Maria Eduarda da Maia são irmãos.
A revelação do crime e do parentesco
entre Lucas e o estuprador da sua amada, juntamente com a promessa feita há
muitos anos à mãe daquele, impedem a concretização do sonho de permanecerem
juntos, do seu amor. Perante estes dados e inconformismo com a situação, a
morte surge como a solução para o drama, pois, paradoxalmente, traz consigo o
símbolo da liberdade. Deste modo, Eros torna-se Thanatos (irmão de Hipno, o
sono, e filho de Caos e das Trevas), ou seja, o erotismo desemboca na morte, no
momento em que ambos se precipitam na cachoeira. Este desfecho pode ser
associado ao mito do mergulhar, afogar-se e renascer, no fundo, o batismo.
Assim sendo, o gesto dos amantes representaria a morte para um nascer de novo.
A partir do poema “Despertar para
Morrer”, somos confrontados com antíteses que enfatizam a descrição da
violação erótica e social e traduz as sensações de surpresa e de imprevisto,
enquanto, em “Loucura Divina”, se assiste à transmutação da natureza,
entre o mundo real e o mundo ideal. Por exemplo, quando se alude à morte, esta
corresponde ao seu oposto – “redenção”; a “canoa”, que se refere ao “esquife”,
passa a possuir o sentido de “berço”, embalado não pela morte, mas pela mãe
natureza. Este poema mostra um diálogo entre duas pessoas que discutem o que
seriam os sons que estão a ouvir, desconhecendo que se tratava da morte, que os
chamava sob a forma do som da cachoeira. Por outro lado, mostra que, para Lucas
e Maria, a morte é uma libertação. No processo de busca da morte, os escravos
deixam a canoa em que navegam deslizar rio abaixo, até a mesma se precipitar na
cachoeira, concretizando, assim, metaforicamente em himeneu, isto é, um
casamento. Nele, as estrelas são como as tochas de uma igreja; os rochedos são
a representação de incensos e Deus é o sacerdote que celebra a união dos
“noivos da morte”. Assim sendo, Maria e Lucas consumam as núpcias na morte. A
natureza envolvente constitui o cenário da celebração da sua união externa.
No poema final, “À beira do
abismo e do infinito” revela-nos uma cena em que a morte cobre o casal de
escravos através das águas do rio São Francisco num último suspiro e beijo de
amor que os eterniza.
O suicídio do casal remete para a
história de Romeu e Julieta. O amor entre este casal não constitui a negação da
vida, pois o seu caráter trágico aprofunda e enobrece o verdadeiro sentido do
seu amor, visto como transcendental. Algo semelhante parece acontecer com Maria
e Lucas, só que num âmbito diferente, pois a impossibilidade de concretização
do seu amor deve-se não a uma rivalidade e ódio entre famílias, como sucede na
peça de Shakespeare, mas em diferenças hierárquicas e sociais. O desejo de
liberdade e o amor parecem ser coartados pela repressão da época. Assim, o
suicídio tem um caráter social que é fruto dessa repressão, a qual tornou
impossível o sonho dos amantes: o casal de escravos em conflito com as forças
sociais que o coage e desmoraliza. No final a morte representa a abdicação da
vida, pois esta não corresponde às expectativas de Maria e Lucas, que não se
submetem aos ditames do regime escravocrata. As mortes assumem um caráter de
recusa e de protesto contra esse sistema, contra essa «organização» social. A
morte, enquanto símbolo de redenção, transpõe o sentido do amor do casal,
atingindo, assim, a transcendência do amor: “A canoa rolava!... Abriu-se a um
tempo / O precipício!... e o céu!...”.