Português: Castro Alves
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sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Análise do poema "A canção do africano"


             Este poema, escrito em 1863 por Castro Alves, tem como tema o africano exilado da sua terra natal africana que tem de se encontrar em território brasileiro, ou seja, a composição mostra a solidão de um povo oprimido numa terra estranha. Assim sendo, estamos na presença de um contraste entre continentes: a África representa a liberdade e a América a escravidão. Perante esse desenraizamento e essa solidão, para não se perder, o escravo negro entoa canções da sua terra natal.

            O poema é constituído por nove estrofes, cinco sextilhas e quatro quadras, com rima emparelhada e interpolada nas sextilhas (AABCBC) e cruzada nas quadras, com dois versos brancos ou soltos (ABCB). Nas quadras, o poeta dá voz ao escravo africano cativo em terras brasileiras, colocando na sua boca uma suposta canção popular africana, que ele canta dentro de uma senzala expondo o seu sentir de cativo e exilado.

            Na primeira estrofe, o «eu» poético apresenta o escravo africano preso numa senzala húmida e acanhada, sentado no chão junta a um pequeno braseiro, inundado pela saudade de África, a sua terra natal, que o faz chorar silenciosamente enquanto canta uma canção cujo teor ainda se desconhece, mas indiciado desde já pelo título da composição poética: a recordação da sua vida em África.

            Na segunda, são introduzidas outras figuras que se encontram no interior da senzala: uma mulher, também escrava, com uma criança ao colo, que ela embala nos braços para a adormecer. Quando ouve uma canção entoada pelo homem, a figura feminina começa também a cantar, num tom de voz bem baixo, pois não quer que o filhou ouça.

            A terceira estrofe – a primeira quadra – revela-nos o conteúdo da canção pela voz do próprio cantor. O tema musical, marcado pela saudade de África, caracteriza-a como uma terra muito distante (“Minha terra é lá bem longe”), de onde vem o sol, menos bela do que as terras brasileiras (o resultado desta comparação, isto é, a superioridade da beleza brasileira relativamente ao continente africano, mostra que o poeta romântico, por mais que queira, não consegue escapar ao seu espírito ufanista). No entanto, apesar disso, a sua saudade e os eu amor são dedicados à terra de onde foi roubado: “Mas à outra eu quero bem!”).

            A quadra seguinte dá continuidade à canção, que dá conta de quão quente é o astro-rei em África através de várias hipérboles (“O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia;”), todavia o «eu» afirma que é bela a visão da estrela da tarde no céu de África, que é apelidada de “papa-ceia”, o equivalente ao planeta Vénus ou Estrela d’Alva: “Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!”

            A próxima quadra volta a estabelecer uma comparação entre o Brasil e a África, através, nomeadamente, da vastidão das terras, comparada por sua vez à do mar (“Aquelas terras tão grandes, / Tão compridas como o mar”) e ao menor número de palmeiras (“Com suas poucas palmeiras”). Deste modo, o «eu» poético estabelece um contraste entre a natureza paradisíaca brasileira e a escravidão que lá     se faz sentir.

            A última quadra que dá voz à canção saudosa do escravo canta a felicidade que este experimentou na sua terra natal e que é um sentimento coletivo (“Lá todos vivem felizes”), recorda as danças típicas africanas (“Todos dançam no terreiro”) e, sobretudo, denuncia a escravatura que experimenta no Brasil, por oposição à liberdade que existia em África: «”A gente lá não se vende / Como aqui, só por dinheiro”.» Por outro lado, nesta estrofe, à semelhança do que sucede nas demais quadras, está presente uma antítese entre os dois primeiros versos e os dois últimos: ela começa aludindo ao sonho bom que era a vida em África e termina afirmando que o povo africano não é movido pelo dinheiro como o brasileiro, que é capaz de vender pessoas em troca do vil metal.

            Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera a sua voz no poema, para contar que o escravo fica em silêncio junto ao fogo que se começava a apagar. A escrava, que cantava baixinho enquanto embalava o filho no colo, emudece também: mais do que cantar, ela soluça, chorosa, triste pela saudade da sua terra (“O escravo calou a fala, / Porque na húmida sala / O fogo estava a apagar; / E a escrava acabou seu canto, / Pra não acordar com o pranto / O seu filhinho a sonhar!”). Deste modo, o que ela silencia não é a canção ou o canto, mas o choro, para que o filho não acorde.

            As duas últimas estrofes dão notícia da preparação das três figuras para se deitarem: “O escravo enão foi deitar-se…”; “E a cativa desgraçada / Deita seu filho…”. Porém, estas notas são apenas o pretexto para o «eu» poético denunciar a realidade dura enfrentada pelos escravos. Por exemplo, o cativo, se simplesmente acordasse tarde, seria espancado: “Pois tinha de levantar-se / Bem antes do sol nascer, / E se tardasse, coitado, / Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser.”. Por seu turno, a mulher deita-se angustiada e receosa, com medo que, durante a noite, o seu «dono» surgisse e lhe levasse o filho. Pelo contrário, a criança, por oposição aos adultos, ainda não tem consciência da realidade e de que não passava de uma simples mercadoria naquele ambiente de escravidão, em que homens, mulheres e crianças de pele negra não tinham liberdade nem voz.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Análise do poema "A Cachoeira de Paulo Afonso"


             A Cachoeira de Paulo Afonso é um poema narrativo, composto por trinta e três poemas dramático-narrativos dispostos segundo uma ordem cronológica para cada acontecimento, interligados uns aos outros de modo a formar uma narrativa, publicado em 1876, cinco anos após a morte do seu autor, Castro Alves, e em pleno período em que o movimento abolicionista ganhava força entre os intelectuais brasileiros. A independência do Brasil, em 1822, serviu de estímulo à nação para a redefinição da identidade nacional.

            A obra explora liricamente o tema romântico da impossibilidade da vivência do amor, o cerceio dos direitos primários – representado pela violação sofrida pela escrava Maria –, a escravidão e, por fim, a restauração moral dos indivíduos escravizados, que efetivam metafisicamente o seu amor através do suicídio, despenhando-se de uma cachoeira a bordo de uma canoa. Deste modo, o casal preserva a honra por meio da morte e liberta-se da tragédia e da opressão social através da recuperação do seu próprio destino. A narrativa constrói-se em torno do estupro sofrido por Maria às mãos do filho do senhor de escravos. Apesar do desejo de vingança, Lucas, o escravo amante de Maria, desiste desse seu propósito quando descobre que o criminoso é seu meio-irmão. Dado que o projeto de vingança não se concretizará, o casal lança-se do alto da cachoeira de Paulo Afonso, um conjunto de imensas quedas de água do Rio São Francisco, na Baía, assegurando, assim, a sua união cósmica.

            Os poemas que constituem a obra são os seguintes: “A tarde”, “Maria”, “O baile na flor”, “Na margem”, “A queimada”, “Lucas”, “Tirana”, “A senzala”, “Diálogo dos ecos”, “O nadador”, “No barco”, “Adeus”, “Mudo e quedo”, “Na fonte”, “Nos campos”, “No monte”, “Sangue de africano”, “Amante”, “Anjo”, “Desespero”, “História de um crime”, “Último abraço”, “Mãe penitente”, “O segredo”, “Crepúsculo sertanejo”, “O bandolim da desgraça”, “A canoa fantástica”, “O São Francisco”, “A cachoeira”, “Um raio de luar”, “Despertar para morrer”, “Loucura divina”, “À beira do abismo e do infinito” e “A cachoeira de Paulo Afonso”.

            Maria e Lucas marcam um encontro no rio S. Francisco. Ela chega primeiro e decide banhar-se no curso de água, no entanto é surpreendida por um homem. Inicia-se, então, uma longa perseguição pelos campos, até que é alcançada e estuprada. Enquanto isso, Lucas anda pela mata cantando o seu amor por Maria. Quando chega a casa dela, não a encontra, por isso volta a percorrer a mata à sua procura. Encontra-a a dormir numa canoa que ia descendo o rio em direção à cachoeira Paulo Afonso (hoje desaparecida para dar lugar a uma hidroelétrica). O escravo nada até à embarcação e acorda a amada, que confessa que está ali de propósito para cometer suicídio. Posteriormente, conta-lhe que, enquanto tomava banho numa fonte, foi atacada e estuprada, não sem antes ter tentado escapar. Lucas não duvida de Maria nem a culpabiliza, mas diz-lhe que, em vez de se matar, ambos deveriam procurar o culpado e vingar-se. No entanto, a escrava recorda uma promessa que ele fizera a sua mãe no leito de morte: a velha escravizada tinha revelado que fora estuprada pelo patrão (o Senhor) e morta por ciúmes pela sua esposa (a Sinhá). Além disso, pedira-lhe que não se vingasse, o que o torna impotente perante a situação trágica em que se vê envolvido. Na sequência, Maria fá-lo prometer que não buscará vingança. Como sucede por vezes com algumas vítimas de agressão, a jovem parece sentir-se culpada do crime que ela própria sofreu. Maria revela, então, que o estuprador tinha sido Sinhozinho, o filho do patrão e irmão paterno de Lucas. A memória do último pedido da mãe convence-o a não procurar vingança. Aparentemente concordando com ambas as mulheres vitimizadas, para não desrespeitar a promessa feita e assassinar o seu meio-irmão, conclui que a morte é a melhor solução e abraça-se a Maria enquanto a canoa se precipita na cachoeira de Paulo Afonso, no rio São Francisco.

            A obra abre com o poema “A Tarde”, que descreve a atmosfera bucólica e deslumbrante em que vivia Maria, uma jovem delicada como a flor do sertão e sensual, com um corpo harmonioso e belo como a natureza, a qual desempenha um papel relevante em todas as situações em que a antítese é chamada a sublinhar contrastes reveladores de um conflito moral ou sentimental. As paisagens predominantes são as naturais, como a natureza sertaneja. Ocasionalmente, surge, nas visões das personagens, a paisagem bíblica, como, por exemplo, no texto “A Senzala”, em que há referência à luz do Paraíso, feita por Lucas.

            No poema “Maria”, é-nos apresentada a protagonista, logo após o desvendar, em “A Tarde”, da atmosfera bucólica em que vivia. Temos, assim, o uso de uma técnica romântica: inserir as personagens no ambiente que as rodeia. Maria é uma mucama, palavra que não tem o mesmo significado da literatura africana, e o seu retrato corresponde ao modelo romântico da figura feminina, ou seja, o de uma escrava, mulher mulata, uma presença que desperta o desejo, a luxúria, que está carregada de sensualidade: “‘‘A grama um beijo te furta / Por baixo da saia curta, / Que a perna te esconde em vão… / Mimosa flor das escravas.”. Ao longo do poema, o sujeito lírico mistura essa imagem de escrava à condição de mulher duplamente violada – por ser mulher e por ser escrava negra –, suscitando no leitor sentimentos de compaixão.

            Em “O baile na flor”, o sujeito poético descreve a rara beleza da natureza, comparando a floresta com um baile no qual os convidados são silvos e fadas, flores e insetos, que bailam ao som de uma animada “orquestra de grilos nas flores”, e explora a riqueza exuberante, «mágica» e intocada e cheia de vida da fauna e da flora brasileira.

            Na descrição da “Queimada”, o narrador percorre o campo a cavalo, acompanhado do seu perdigueiro, à procura de descanso e de reencontro consigo mesmo, o que proporciona cenas que captam tanto a realidade física e geográfico quanto a social, pois nelas estão presentes tipos regionais, como o tropeiro, o vaqueiro, o violeiro, a mulata, entre outros, que formam com os elementos naturais um painel variado e grandioso. Nesse seu percurso, o «eu» testemunha um incêndio que destrói tudo, como consequência da ação humana. Esta parte funciona como uma espécie de prólogo do que está para ser narrado. A natureza é antropomorfizada, é vista como um conjunto de vidas. Nela, o coração sangra e o cedro, tal como um ser humano, esbraceja para o alto perante a devastação total.

            Lucas entra em cena no poema homónimo, que mostra como o «eu» lírico valoriza o negro enquanto homem, que passa a ter uma identidade: chama-se Lucas, é um lenhador, escravo e pretendente de Maria. O poema valoriza a sua beleza negra, destacando traços do seu rosto, as suas mãos, o seu vigor físico, bem como o seu canto. Descendo a encosta do monte, ao clarão da queimada, à procura da cabana, ele pensa na sua amada e canta baixinho a tirana, uma melodia criada por si mesmo. Na canção, Lucas faz referência à beleza da amada, que não é percebida apenas pelo escravo, pois o filho do patrão também já tinha notado a sensualidade de Maria. Em simultâneo, a natureza é enquadrada como o trabalho do escravo lenhador e como uma espécie de sua mãe, ele que é tão vigoroso como a floresta: “Um belo escravo da terra / Cheio de viço e valor… / Era o filho das florestas! / Era o escravo lenhador! / Que bela testa espaçosa, / Que olhar franco e triunfante! / E sob o chapéu de couro / Que cabeleira abundante! / De marchetada jiboia / Pende-lhe a rasto o facão… / E assim… erguendo o machado // Na larga e robusta mão…”.

            O sétimo poema, intitulado “Tirana”, parece uma cantiga, pelo uso da redondilha maior, que lhe dá um ritmo acentuado. Aliás, a seleção do ritmo e da métrica é típica de um certo folclore, mas nele encontramos outras características, como a comparação da mulher com elementos da natureza do Brasil: manoca, baunilha, valorizada pela forma como cresce, pelo seu odor, que mostra uma certa sensualidade. No que diz respeito à caracterização de Maria (mulata, com tranças, etc.), a descrição é toda eufemística, dado que a intenção é idealizar o negro, tal como a de José de Alencar passava por valorizar o índio. O processo é o mesmo, o que diverge são as figuras e a respetiva função: a idealização do indígena tinha por objetivo a busca das raízes da nacionalidade, enquanto a do negro visava a sua defesa. Em ambos os casos, a idealização procura a aproximação ao branco. Castro Alves coloca um véu sobre o negro, pois é sempre referido por “moreno” / “mulato”. No “Navio Negreiro”, o objetivo era chocar o leitor; neste poema, é arrastá-lo. A estrofe final tem uma imagem parecida com a que aparece no final de Iracema: Martim ouve a voz de Iracema na palmeira.

            Em “Senzala”, o sujeito poético procura retratar a casa onde Maria, a escrava mulata, vivia, uma habitação pequena, bela e singela, e onde os passarinhos chilreavam e brincavam.

            No poema “O Nadador”, é introduzido o filho do patrão, que surpreende Maria a tomar banho no rio, a qual se assusta com a sua presença. A perseguição e o estupro são motivos que o excitam, dado que a escrava denota o sentido da caça. Este tipo de atos, na época da escravatura, era bastante comum, por isso, se o pai cometera tal violência no passado, o filho imita-o e repete-a. Além do caráter repugnante e intolerável do crime que é a violação, a verdade é que a mesma provoca a desestruturação do sentido da família negra. O escravo, como consequência, via-se impossibilitado de ter o mínimo de organização social e psicológica. De facto, a escravidão e a depravação sexual andam de mãos dadas, pois fazem parte do regime da escravatura. Um dos motivos que justificava estas atitudes por parte dos fazendeiros era, além do prazer da caça, o interesse financeiro. Com efeito, estes atos favorecia o crescimento do número de escravos, pois eram muitas vezes estimulados a procriar em troca da liberdade. Contudo, os fazendeiros, em muitos casos, encarregavam-se pessoalmente de aumentar o seu número de escravos.

            Por outro lado, na maioria dos poemas românticos sobre escravos, a beleza do corpo da escrava é descrito como mulher-flor e mulher-caça, isto é, como um objeto. Este poema de Castro Alves realiza uma série de inversões e deslocamentos relativamente ao que era característico entre os românticos. O erótico e o sensual, por exemplo, são inscritos simultaneamente; a tragédia que atinge este casal é situada num nível racial e social. A violência erótica complementa a violência racial, social e económica. Há uma série de fatores que desencadeiam esta prática violenta, como o desejo de dominação do objeto, dado pela atração sexual. Ganha destaque a união do prazer com a violência sexual como prática social: para o obter, o homem necessita de caçar um ser de outra espécie, alguém que seja diferente de si, o que pode passar pela posição social, como é o caso do senhor e da escrava. Esta diferença social torna a prática sexual em algo tão satisfatório como a caça. Maria, na sua condição de escrava, constitui o objeto ideal para esta busca de prazer sexual.

            A obra mostra que Maria é diferente das outras mucamas: ela não quer nada do patrão, não possui nenhum interesse, como sucede no caso de uma troca de favores, visto que não faz uso dos seus atributos físicos para retirar benefícios. Na verdade, ela é metaforizada como a noiva da morte, dado que os seus projetos de felicidade são destruídos tragicamente. Maria é descrita como a “flor manchada por cruel serpente”, “a rola”, “a perdiz” tomada pelo violador. A sedução não existe, apenas violência, a qual determina não só o drama do casal, mas o da sociedade, cuja repressão não deixa margem para a concretização do desejo de liberdade.

            Numa sociedade escravocrata, brancos e negros desempenhavam papéis bem definidos. O facto de o homem burguês branco ver a mulher de categoria social inferior – neste caso, a escrava – como objeto sexual associou a ideia do prazer sexual à decadência social e até económica, o que inviabilizava qualquer hipótese de existir sentimentos afetivos entre pessoas de estratos sociais e económicos diferentes.

            Em “Adeus”, Lucas critica o facto de Maria, a sua amada, lhe ter dito adeus, pois sem ela ele não consegue viver; pelo contrário, se a separação se concretizasse, morreria de tanta dor, situação que prossegue em “Mudo e quedo”, onde se mostra a desgraça de um amor passado e a dor que deixa marcas permanentes para aquele que fica – uma das características do romantismo brasileiro.

            O primeiro monólogo de Maria na obra sucede nos poemas “Na Fonte”, “Nos Campos” e “No Monte”, nos quais a escrava relata, na primeira pessoa, a experiência da violência sexual que sofreu. Para Castro Alves, o estupro da mulher amada pelo dono de escravos correspondia ao derradeiro degrau na descida moral do escravo à indignidade irrestrita. Maria, após percorrer a mata durante bastante tempo, chega a uma fonte, um ambiente que representa o local onde (uma divindade que alguns autores associam à masturbação, à epilepsia e, inclusive, à violação) espera as ninfas. A jovem escrava decide banhar-se na água da fonte, mas, de súbito, surge em cena o filho do patrão. Maria fica em pânico (segundo alguns autores, este nome provém precisamente de Pã), pois estava num local ermo, sozinha com ele, estava nua e sem ninguém que lhe pudesse acudir. Começa a correr, então, para o campo, mas a fuga é em vão, dado que logo é alcançada pelo homem, que representa o deus acima referido no poema, só que, enquanto Pã era escuro e perseguia ninfas brancas, o filho do patrão é branco e encontra-se na presença de uma “ninfa mulata”.

            A cena, que deveria corresponder a um momento de sedução do amado (Lucas) transforma-se num ato de extrema violência física que impede o encontro amoroso dos dois escravos. O erotismo e a sexualidade adquirem, assim, um caráter manifestamente negativo, associado à violência física e psicológica, a um comportamento patológico e doentio, não só em termos psicológicos e genéricos, mas também físicos e concretos, visto que estas atitudes levaram a que o negro brasileiro adquirisse doenças venéreas, como, por exemplo, a sífilis, sobretudo nas senzalas coloniais.

            A obra gira em torno do casal de escravos, que lutam pela dignidade, pela liberdade e pela moral da personagem feminina, que foi violentada. No poema “Desespero”, encontramos o discurso de Lucas, quando a amada lhe implora que esqueça a vingança e ele lhe responde dizendo que a jovem nunca soubera o que era ser escrava de verdade, que os escravos são injustiçados desde o berço. Deste modo, Castro Alves procura mostrar que o papel do negro nunca foi de apatia e inércia, pelo contrário ele constitui-se como sujeito, tal como Maria, que é estuprada e se preocupa com o seu valor moral.

            Em “História de um Crime”, Maria descreve o cenário do episódio da morte da mãe de Lucas: “estreita e lodosa sala”, na qual arquejava a mulher em “triste agonia”, numa noite sombria de vendaval, e a parca iluminação do espaço contrastava com a face amarelada de Cristo na parede; os latidos do cão de guarda; o abatimento físico da escrava nos seus derradeiros instantes de vida (“o derradeiro suor”, “acordava a mártir”, “ouvia em torno com medo”, “Do peito cansado, exangue, / Às vezes rompia o sangue”).

            Nos poemas seguintes – “Último Abraço”, “Mãe Penitente” e “O Segredo” –, rememoram-se os eventos passados, presentificando-os, estabelecendo o «eu» poético um paralelismo entre os traumas vivenciados pela mãe de Lucas e por Maria, o que evidencia a perpetuação da violência senhorial entre sucessivas gerações de escravos. Estes poemas convocam também a questão da religião, à qual está associado um caráter omisso perante a violência, como é o caso do estupro de Maria. Além disso, apenas os brancos eram protegidos; a mãe de Lucas não teve nenhuma prece quando estava a morrer; o padre era representado por duas crianças, como se pudessem dar a extrema-unção: “Ainda me lembro agora / Daquela noite sombria / Em que u’a mulher morria / Sem rezas, sem oração!... / Por padre – duas crianças… / E apenas por sentinela / Do Cristo a face amarela / No meio da escuridão.” (“História de um crime”). A imagem da mãe agonizante é bastante emotiva, como se pode comprovar pelo uso de recursos como os vocativos (“Filho, adeus!”) e nas apóstrofes exclamativas (“Que sina, meu Deus!”, “Pois que seja feita, Senhor!”). O apelo insistente da escrava, dirigido ao filho, é intenso e pleno de emoção e dramatismo: “Chega-te perto… mais perto; / Nas trevas procura ver-te / Meu olhar, que treme incerto, / Perturbado, vacilante…” (“Último Abraço”). Um outro recurso importante é a gradação de ideias relacionadas com os abusos cometidos contra si: “De espedaçarem-se as carnes / O tronco, o açoite, a tortura, / De tudo quanto sofri.”), cuja progressão ascendente denuncia a violência a que foi sujeita. No final de “Mãe Penitente”, a mulher pede perdão ao filho por o predispor, na condição de propriedade alheia, ao sofrimento infindável: “fiz o maior dos crimes: / – Criei um ente para a dor e a fome!”

            Por seu turno, “O Segredo” está dividido em quatro segmentos. Os dois primeiros compreendem a fala da mãe de Lucas, na qual ela, no leito de morte, lhe revela que o pai é o patrão, de quem primeiro foi vítima e que quem a havia induzido à morte fora a sua esposa, num ímpeto de raiva e ciúme. De facto, estas figuras, dominadas pelo ciúme, visto que não eram amadas nem respeitadas pelos maridos, procuravam dominar, tiranizar e exercer violência sobre os escravos, com o objetivo de se vingarem. Esta noção é comprovada pela seguinte fala da mãe: “Matou-me como um tigre carniceiro, / Bem vês, / Uma branca mulher, que em se resume / Do tigre – a malvadez / Da cascavel – rancor!” De seguida, apela ao filho que tenha piedade do pai, obrigando-o a prometer-lhe que nunca se vingaria dele em nome dos laços de sangue que os unem: “Mas hás de jurar primeiro, / Que jamais tuas mãos inocentes / Ferirão meu algoz derradeiro…”; “Deixo-te, pois… / (…) Um crime a perdoar…”. O terceiro segmento do poema é constituído por uma estrofe que dá conta do desalento do pequeno Lucas atrelado ao corpo da mãe já morta. As doze estrofes seguintes regressam ao presente, ao momento em que Maria e o amado dialogam sobre a promessa feita à mãe na infância e, na sequência, a jovem confessa o nome do seu violador: o filho do patrão, meio-irmão de Lucas. Na última estrofe de “O Segredo”, o escravo sustenta não apenas o desejo de defender a honra dos seus, mas também a recusa do seu rebaixamento moral: “Ninguém! que a nada humilho-me”, mas, logo de imediato, é esmagado pela revelação de Maria: “Mata-me!... É teu irmão!...”. Esta revelação de parentesco altera dramaticamente o curso dos acontecimentos, nomeadamente o futuro do casal de jovens escravos. É o momento da anagnórise da tragédia clássica grega, segundo a qual a revelação de um dado desconhecido muda o rumo da ação. É o que acontece, por exemplo, em Frei Luís de Sousa, quando é revelado que o Romeiro é, afinal, D. João de Portugal, ou n’Os Maias, o conhecimento de que Carlos e Maria Eduarda da Maia são irmãos.

            A revelação do crime e do parentesco entre Lucas e o estuprador da sua amada, juntamente com a promessa feita há muitos anos à mãe daquele, impedem a concretização do sonho de permanecerem juntos, do seu amor. Perante estes dados e inconformismo com a situação, a morte surge como a solução para o drama, pois, paradoxalmente, traz consigo o símbolo da liberdade. Deste modo, Eros torna-se Thanatos (irmão de Hipno, o sono, e filho de Caos e das Trevas), ou seja, o erotismo desemboca na morte, no momento em que ambos se precipitam na cachoeira. Este desfecho pode ser associado ao mito do mergulhar, afogar-se e renascer, no fundo, o batismo. Assim sendo, o gesto dos amantes representaria a morte para um nascer de novo.

            A partir do poema “Despertar para Morrer”, somos confrontados com antíteses que enfatizam a descrição da violação erótica e social e traduz as sensações de surpresa e de imprevisto, enquanto, em “Loucura Divina”, se assiste à transmutação da natureza, entre o mundo real e o mundo ideal. Por exemplo, quando se alude à morte, esta corresponde ao seu oposto – “redenção”; a “canoa”, que se refere ao “esquife”, passa a possuir o sentido de “berço”, embalado não pela morte, mas pela mãe natureza. Este poema mostra um diálogo entre duas pessoas que discutem o que seriam os sons que estão a ouvir, desconhecendo que se tratava da morte, que os chamava sob a forma do som da cachoeira. Por outro lado, mostra que, para Lucas e Maria, a morte é uma libertação. No processo de busca da morte, os escravos deixam a canoa em que navegam deslizar rio abaixo, até a mesma se precipitar na cachoeira, concretizando, assim, metaforicamente em himeneu, isto é, um casamento. Nele, as estrelas são como as tochas de uma igreja; os rochedos são a representação de incensos e Deus é o sacerdote que celebra a união dos “noivos da morte”. Assim sendo, Maria e Lucas consumam as núpcias na morte. A natureza envolvente constitui o cenário da celebração da sua união externa.

            No poema final, “À beira do abismo e do infinito” revela-nos uma cena em que a morte cobre o casal de escravos através das águas do rio São Francisco num último suspiro e beijo de amor que os eterniza.

            O suicídio do casal remete para a história de Romeu e Julieta. O amor entre este casal não constitui a negação da vida, pois o seu caráter trágico aprofunda e enobrece o verdadeiro sentido do seu amor, visto como transcendental. Algo semelhante parece acontecer com Maria e Lucas, só que num âmbito diferente, pois a impossibilidade de concretização do seu amor deve-se não a uma rivalidade e ódio entre famílias, como sucede na peça de Shakespeare, mas em diferenças hierárquicas e sociais. O desejo de liberdade e o amor parecem ser coartados pela repressão da época. Assim, o suicídio tem um caráter social que é fruto dessa repressão, a qual tornou impossível o sonho dos amantes: o casal de escravos em conflito com as forças sociais que o coage e desmoraliza. No final a morte representa a abdicação da vida, pois esta não corresponde às expectativas de Maria e Lucas, que não se submetem aos ditames do regime escravocrata. As mortes assumem um caráter de recusa e de protesto contra esse sistema, contra essa «organização» social. A morte, enquanto símbolo de redenção, transpõe o sentido do amor do casal, atingindo, assim, a transcendência do amor: “A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo / O precipício!... e o céu!...”.

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