A propósito do que o futebol significa para o povo, J. B. Priestley escreveu, no romance The Good Companions, uma frase célebre: "Definir o futebol como 22 mercenários a correr atrás de uma bola equivale a dizer que um violino é madeira e corda de tripa, e que o Hamlet não é mais do que papel e tinta." A tradução talvez não seja das mais competentes, até porque fui eu que a fiz, mas é mais ou menos isto. Sempre que algum impertinente, como a minha mulher ao fim-de-semana, ou o Pacheco Pereira a toda a hora, trata a bola com desprezo sobranceiro, lembro-me do sr. Priestley e rio-me deles. Mais do Pacheco Pereira do que da minha mulher, que não é para brincadeiras.
Naquela manhã de Julho de 1992, eu já sabia o que o futebol era. E por isso tive dificuldade em acreditar quando vi Deus, ansioso e frágil, na berma da estrada, dedicado à tarefa muito prosaica de chamar um táxi. Havia muito movimento, nesse dia, e todos os táxis estavam ocupados. O negócio dos transportes públicos, pelo que se podia ver, não respeitava a única regra que um eventual código deontológico do taxista devia contemplar: "Quando Deus precisa de táxi, o motorista deve parar, mandar sair o cliente que segue no veículo nessa altura, e transportar a divindade gratuitamente." Eu limitei-me a fazer o que era decente: convenci os meus pais a parar para dar boleia a Deus. Naquele tempo, Deus era treinador-adjunto do Benfica, e nesse dia iria partir para o estágio de pré-época. Não foi fácil convencer Deus a entrar no carro. Habituado a ser abordado por mortais estava Ele, portanto tive de O persuadir de que não era um idiota qualquer (tive de Lhe mentir), e garantir-Lhe que aquela família teria todo o gosto em levá-Lo ao aeroporto. E então, Deus entrou no meu carro. E, sem querer blasfemar, tenho de dizer que fez um milagre muito estranho: durante toda a viagem, resolveu comportar-Se como se fosse apenas um ser humano. Conversou com os meus pais, que não eram crentes e por isso tiveram coragem para falar com Ele. Tirou um galhardete da mala e deu-me um autógrafo (os meus pais disseram-Lhe o meu nome). E, quando chegámos, agradeceu como se tivéssemos sido nós a fazer-Lhe um favor, despediu-Se e saiu.
No dia seguinte, uma notícia breve, na última página de um jornal desportivo, dizia: "A equipa do Benfica chegou com algum atraso ao aeroporto, uma vez que o autocarro que transportava a comitiva ficou retido no intenso trânsito que se fez sentir ontem em Lisboa. Eusébio [o jornal tratava Deus pelo nome], foi o único que chegou a horas, porque se deslocou por meios próprios." De acordo com a imprensa, o carro do meu pai tinha passado a ser "meios próprios" de Deus. Mesmo quem respeita acima de tudo a propriedade privada tem de admitir que não se tratava de um engano, mas simplesmente de uma evidência.
Assim que tive dinheiro para isso, comprei aquele carro ao meu pai (que, suspeito, por saber que o carro tinha valor sentimental para mim, carregou no preço). E, em 2003, quando nasceu a minha primeira filha, instalei a cadeirinha da menina no lugar em que Deus tinha viajado. Em 2005, quando nasceu a segunda, foi a vez de ela andar lá. E andei com o carro até ele parar.
O principal é a alegria. Acho que é isso. Eusébio deu muita alegria a muita gente muitas vezes. Uma alegria muito intensa, que as pessoas contam às gerações seguintes, como se faz com todas as outras coisas mesmo importantes. E fê-lo como se não fosse nada de especial, como se ninguém lhe devesse nada por isso.
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No parque de estacionamento do estádio da Luz há uma zona reservada às viaturas dos dirigentes do clube. Várias placas indicam o proprietário do lugar. Uma diz "Presidente da Direcção", outra diz "Conselho Fiscal", e por aí fora. Entre estas placas, havia uma que dizia, simplesmente: "Eusébio". Nas muitas vezes em que, infelizmente, ele não podia deslocar-se no meu carro, era ali que parava o dele. No Benfica, há os cargos que existem nos outros clubes (Presidente da Assembleia-Geral, Secretário Técnico, etc.) e havia ainda um cargo único: Eusébio. É difícil imaginar a vida de um clube sem um Eusébio na estrutura dirigente. Toda a gente precisa de um Eusébio. De um símbolo que ganhou o lugar na História - e no parque de estacionamento, que também dá jeito - porque desempenha um cargo para o qual também foi eleito, mas numas eleições antigas e sem necessidade de cruzinha: foi eleito lenda.
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Vestir a camisola do Benfica é uma honra para todos os jogadores. Alguns, e não são assim tantos, honram tanto a camisola como ela os honra a eles. Outros, ainda mais raros, conseguem dar mais ao Benfica do que o Benfica lhes dá. A esses, o clube ergue-lhes uma estátua à porta do estádio. É por isso que só está lá uma.