Na
1.ª estrofe, o sujeito poético lamenta a sorte daqueles que vivem felizes. Ela
inicia-se com a oposição «triste» / «contente»: na perspetiva do sujeito
poético, a alegria do conformista é triste para ele mesmo, já que ignora o prazer
que a aventura que se segue ao sonho lhe pode proporcionar em termos pessoais,
e é triste para a sociedade de que faz parte pela razão de que sem ideais e
sonhos e sem a ousadia de os tentar concretizar, a sociedade não evolui,
estagna e torna-se decadente.
O ato
de sonhar acordado leva quem sonha a agir no sentido de buscar outra realidade
através da libertação daquela (a rotineira e banal) que conhece, tal como
aconteceu com Ícaro, que quis libertar-se da ilha de Creta, onde se encontrava
prisioneiro, voando com as asas de penas e cera que os eu pai, Dédalo,
construiu para ele. Foi o sonho que impulsionou Ícaro a voar, daí a referência
ao «erguer da asa» no verso 3. O mito grego exemplifica o sonhador que ousa pôr
em prática os sonhos, chegando a morrer por eles, como Ícaro.
A
referência à lareira onde arde «mais rubra a brasa» relaciona-se com antigos
costumes romanos, já que era costume, sempre que os romanos mudavam de cidade,
levar parte das brasas que ardiam nas lareiras das suas antigas casas para as
novas, para manter viva a ligação à respetiva terra de origem. Assim, a brasa
que arde mais intensamente («mais rubra») é um sinal de partida recusado por
aquele que está «Contente com o seu lar» e que, portanto, não deseja a mudança.
O
oximoro que inicia a segunda estrofe retoma a ideia que inicia o poema, agora
através de uma frase exclamativa que expressa o desdém do sujeito poético face
à aceitação da rotina como se de uma atitude positiva se tratasse; deste modo,
o sujeito poético desmistifica o conceito de «felicidade» aceite pela sociedade
em geral e que assenta na valorização da vida ao nível mais rudimentar ‑ a vida
instintiva ou «a lição da raiz». A lição que podemos retirar da raiz é simples:
quem vive apenas por viver, sem sonhos e ideais («porque a vida dura» ‑ v. 7) é
semelhante a uma raiz: vive como se estivesse sepultado. Os nomes «raiz« e
«sepultura» associam-se ao imobilismo e à ausência de vida e de sonho. Por
outro lado, a forma verbal «dura» (v. 7) remete para a existência enquanto mero
passar do tempo. Assim, quem «Vive porque a vida dura» não a aproveita e
limita-se a existir, a sobreviver. Esta aceitação da vida segundo os instintos
conduz à morte do indivíduo porque a vida digna de ser vivida é a que é
orientada pelos mitos, pelo sonho, pela loucura de sinal positivo (vide poema “D.
Sebastião”), pela partida em direção a horizontes desconhecidos, pela vitória
sobre o Mostrengo «porque quem passar além do Bojador / Tem que passar além da
dor» (“Mar Português”), pela vontade de chegar «lá» custe o que custar, animado
pela fé em Deus («Cheio de Deus, não temo o que virá» ‑ “D. Fernando”). O apego
ao conforto do lar, ao espaço familiar, o medo do desconhecido, a fraqueza
anímica conduzem à «sepultura», pois só a busca da plenitude confere
imortalidade.
Em
suma, estamos perante duas posturas do ser humano, pautadas por traços
diferenciados:
. mediocridade .
movido pelo sonho, única forma de atingir
. conformismo a grandeza de alma («erguer da asa»)
. rotina . insatisfação permanente
. banalidade .
inquietação
. comodismo .
visão para lá dos limites da condição /
. sem sonhos, projetos, ideais /
finitude humana
. apatia . a vida só vale a pena ser vivida se
. vida sem sobressaltos
seguirmos os nossos sonhos
O
tempo não pára e as «eras» ou tempos passados «somem», desaparecem e são substituídos
por novos tempos, novas eras.
No
terceiro verso da terceira estrofe, um aforismo defende a insatisfação porque
ela é o motor da mudança; quem se contenta com o que tem não sente necessidade
de mudar, mas esses não são verdadeiramente «homens», porque o que distingue o
ser humano dos outros seres é precisamente a capacidade de imaginar, sonhar,
lutar por objetivos e ideais. Deste modo, o mundo avança com os descontentes e
não com os acomodados. Note-se que este verso é chave, que ocupa a posição de centralidade
(12 versos antes e 12 depois) e que remete para uma condição inerente ao
próprio homem: o descontentamento. É esta insatisfação constante que faz o
progresso, é o seu agente impulsionador. Nos dois versos finais desta estrofe,
o sujeito poético deseja que a grandeza de alma domine / cale as «forças cegas»
ou forças da natureza (aquilo que nos prende à terra, ao mundo da matéria), de
modo a que o homem se liberte da prisão terrena e se vire para uma dimensão
transcendente em busca da plenitude existencial.
Na
penúltima estrofe, o sujeito poético alude aos quatro impérios do «ser que
sonhou» (Grécia, Roma, Cristandade, Europa), o qual assistirá ao renascimento
da idade do ouro, mito grego segundo o qual a humanidade regressará a um tempo
de pureza e de imortalidade que a chegada do Quinto Império vai proporcionar.
Assim, «A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite
começou» (vv. 18 a 20), isto é, das trevas da noite deserta e esta escuridão
dará lugar à luz ou verdade ou Quinto Império, que resplandecerá de paz e
harmonia. Observe-se a antítese presente nos versos 19 e 20, que coloca em
confronto o tempo passado e presente («… atro / Da erma noite…») e o tempo
futuro («dia claro»), que se anuncia sob a égide espiritual dos portugueses.
Depois dos «quatro / Tempos» (vv. 16-17), os quatro impérios considerados por
Pessoa, chegará o Quinto Império. Observe-se igualmente a metáfora aí presente,
que transmite a profecia de que o mundo assistirá («será teatro») ao nascimento
de um novo império («Do dia claro»).
Os
quatro impérios anteriores morreram. Agora, é tempo de ser descontente do
presente e perseguir o sonho de construção futura do Quinto Império, o império
espiritual que nascerá da procura da verdade. É neste contexto que o sujeito poético
interroga: «Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?». Esta interrogação
anuncia o Quinto Império que, sucedendo-se aos quatro anteriores, deles diferirá
pela natureza: será o império da «verdade», nascida com a morte de D.
Sebastião.
Relativamente à estrutura interna, sugerem-se duas divisões diferentes do poema:
.
1.ª parte (estrofes 1 e 2) ‑ O sujeito poético lamenta a
sorte daqueles que vivem felizes com a mediocridade e faz a apologia do sonho
como única forma de aceder a grandes feitos.
.
2.ª parte (estrofe 3) ‑ Reflexão sobre a passagem do tempo
e sobre a condição indispensável para ser homem ‑ a insatisfação.
.
3.ª parte (estrofes 4 e 5) ‑ O sujeito poético anuncia,
profeticamente, a chegada do Quinto Império.
.
1.ª parte (estrofes 1 a 3) ‑ Reflexão acerca da vivência
humana e da importância do sonho.
.
2.ª parte (estrofes 4 e 5) ‑ Anúncio de uma nova época, de
um novo império.