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domingo, 9 de outubro de 2022

Análise do capítulo X de Iracema


     Martim parte e Iracema fica na tribo dos Tabajaras. Temos uma penetração na psicologia de Iracema, não por análise da própria, mas pela reação de ará. Há uma intensa ligação entre Iracema e a natureza, neste caso, uma ave. É por uma interpretação dos sentimentos da ave que se chega a uma possível interpretação dos sentimentos de Iracema.
    Num certo momento, Iracema ouve o grito de guerra de Caubi e parte em seu auxílio, encontrando-os rodeados por Irapuã e seus guerreiros. Mas, entretanto, ouve-se o grito de guerra dos pitiguaras. Caubi e a jovem defendem Martim. Mais uma vez temos a caracterização positiva de Iracema, defendendo o amado e a coragem deste, que não foge à luta com Irapuã, que parte em busca dos pitiguaras.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O tempo da história de O Delfim


             O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”

            Os acontecimentos da obra não seguem uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.

            Neste contexto, o Tempo assume enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular, repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.

            De facto, o tempo da narrativa é circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas, repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo transformou também em operários.

            O narrador, que é solidário com os camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…) E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.” Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança, representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por isso que a lagartixa se agita.

            O presente veiculado pelo narrador, a mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.

            Já no que concerne aos acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento criativo.

            Para criar toda esta ambiência, o autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.

            Esta anacronia reflete-se na aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera.”), da Gafeira.

            Existe ainda o tempo da escrita, transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.

O espaço de O Delfim


             O escritor situa-se à janela, o que nos leva a coloca-lo na posição de um observador, não um observador ocasional, mas esclarecido, visto que já tinha estado anteriormente na Gafeira, onde conheceu algumas personagens, nomeadamente a família Palma Bravo; visto que já conhece a história da povoação através da Monografia do Termo da Gafeira; visto que tem curiosidade.
            Ele está num primeiro andar a rever e a pensar. Em quê? “(…) Nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo.” Note-se na expressividade deste excerto. Por um lado, a presença da forma verbal «formigam» significa que as pessoas são vistas por ele à distância, o que propicia a sua atenção e, simultaneamente, o distanciamento que é necessário à clareza de pensamento. Por outro lado, a expressão espacial «lá em baixo» estabelece o contraste entre o narrador, situado «cá», isto é, no quarto, e os outros. Estes considerandos são importantes, na medida em que cada personagem se define em termos de espaço e é a partir da Lagoa que os habitantes de Gafeira medem o mundo, enquanto o escritor o faz solitariamente a partir do seu quarto.
            Esta oposição entre espaços é muito importante, visto que a obra relata uma história de mortes trágicas e a luta pela posse de um determinado espaço físico – a Lagoa. De facto, a personagem Palma Bravo defendo o direito, suspeito, à sua posse exclusiva, enquanto os «camponeses-operários» querem-na para si. Estes últimos acabam por a deter em virtude da degeneração da aristocracia, o que faz com que o tempo circular da Gafeira assuma um sentido progressista e avance para um futuro que não repete o poderio dos Palma Bravo. Deste modo, podemos concluir que esse espaço geográfico constitui um espaço de luta onde cada personagem faz o que está ao seu alcance para conquistar a Lagoa.
            Por outro lado, o quarto é o local onde o escritor se quer fazer representar como numa «fotografia de álbum», todavia esta contém pouco de álbum de família, dado que não é possível encarar a personagem-narrador de frente. Ela olha pela janela, como já foi referido anteriormente, observa a Gafeira e pressente a Lagoa.
            Em termos de estilo, convém notar dois traços característicos da escrita de José Cardoso Pires. Por um lado, o escritor procura mais mostrar as coisas, ao estilo de uma câmara cinematográfica, em vez de as descrever. O cenário onde decorre a ação vai sendo construído à medida que se lhe acrescentam elementos, como, por exemplo, a mesa, a janela, a galinhola, o pato, etc. Cabe ao leitor preencher esse vazio descritivo. Esta fuga à minúcia é uma característica de tipo não naturalista. Nos casos em que Cardoso Pires descreve um espaço de forma mais pormenorizada, faz uso da prosa poética, da qual se obtém um efeito de não precisão. Por outro, o escritor parece preferir o nome ao adjetivo, mais uma vez na tentativa de implicar o leitor na narrativa, dando-lhe a oportunidade de construir o espaço em que a ação se desenrola. Isto não significa que o adjetivo não seja usado; é-o, de facto, mas sobretudo na descrição das personagens, que têm de ser apresentadas de forma mais precisa.
 
1. Gafeira
 
            A personagem-narrador observa a Gafeira a partir da janela do seu quarto, uma localidade que não existe na realidade.
            Outra questão a ter em conta é o significado do vocábulo. Se consultarmos o dicionário, veremos que aquele nome significa «sarna leprosa que ataca os animais; gafa; doença que ataca o gado bovino, causando o inchaço das pálpebras», etc. Assim sendo, podemos concluir que a palavra está associada a doença – atentemos no facto de a lagoa da obra possuir termas e lamas curativas.
            Além disso, convém ter presente que se trata de uma terra caracterizada pelo nevoeiro e pelos fumos diversos que dificultam e encobrem a visão, que é dominada por uma aristocracia decadente, que é marcada por um regime de censura da livre circulação de ideias, que é um espaço de luta, habitado por personagens que são ou virão a ser amputadas, hidrópicas, isto é, figuras doentes que sofrem de alguma doença física ou psicológica. Assim sendo, tendo em conta estes dados, á fácil concluir que o espaço da Gafeira é simbólico: constitui o retrato de um país oprimido, coberto de História e de mitos, conservador e desfasado no tempo, cada vez mais abandonado pelos seus habitantes, a meio caminho entre a agricultura e a indústria, em suma, uma metonímia de um certo Portugal.
 
2. Largo
 
            A palavra «Largo» é grafada no texto em itálico, à semelhança de outros elementos textuais.
            O narrador descreve este espaço como um local «… grande demais, inútil, sem sentido, apesar de estar no coração da comunidade». Esta descrição informa o leitor de que o Largo perdeu o seu sentido por se tratar de um povoado cada vez menor e por as atenções estarem concentradas essencialmente na Lagoa.
            Quando descreve a muralha que envolve o Largo, o narrador estatui o seguinte: «(…) o paredão figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto num certo sentido.» Este excerto demonstra que o narrador pretende conduzir o leitor na interpretação da muralha enquanto metáfora de algo. Mais à frente podemos ler isto: «Pois é, mas agora o largo é o que se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exatamente, um terreiro enfeitado de argolas.» Esta passagem, juntando à anterior, mostra claramente que a narrativa é construída de forma a criar dois níveis de leitura: um, superficial, denotativo; o outro, simbólico, que exige decifração. Terá esta opção narrativa a ver com o facto de a obra ter sido escrita numa época de censura, que obrigava os autores a socorrerem-se de metáforas e símbolos cuja decifração não estava ao alcance de todos os leitores?
            Para concluir, convém reter ainda que, não obstante o Largo ser apresentado como um terreiro vazio, possui alguma vida.

3. Igreja
 
            A igreja é um espaço igualmente simbólico. Ela está unida à muralha, levando a sua sombra “uma mensagem antecipada noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só (…)”. Estes dois elementos configuram uma metáfora da situação opressora que o regime de Salazar impunha a Portugal.
            No que diz respeito ao interior do edifício, o narrador nada diz, visto que tal descrição é descartável, visto que a igreja apenas está identificada enquanto motivo para a crítica ao Estado Novo, cuja ideologia assentava em três pilares: Deus, Pátria e Família.
            A História diz-se que a Igreja enquanto instituição esteve concluída com a situação política vigente então, não usando a sua proeminência para confrontar o regime ditatorial que não respeitava os direitos humanos. No entanto, poderemos questionar se o papel da Igreja se resume unicamente a ajudar a muralha na sua missão opressora? Enquanto espaço, representa, de facto, a disforia, com a sua sombra asfixiante, contudo aparece reabilitada na pessoa do Padre Novo.
            Os três membros do clero presentes na obra simbolizam coisas diferentes: o Abade Agostinho Saraiva, uma personagem de ficção, representa o passado; o Padre Benjamim Tarroso, representa o presente enquanto continuação do passado; o Padre Novo, que constitui um exemplo de catolicismo contestatário, como o foi o bispo do Porto, por exemplo, representa o presente, perspetiva de futuro.
            Por outro lado, convém reter que o Padre Novo é jogador do Olho Vivo, “um passatempo patriótico, exclusivo dos bons portugueses”, o que significa que, mesmo dentro da Igreja, havia almas que possuíam um espírito mais lúcido e atual do que os seus chefes, que acreditavam na democracia, no progresso social, e que, por isso, eram consideradas figuras subversivas. Muitas delas foram perseguidas, presas e torturadas pela PIDE. Por outro lado, é importante notar que o Padre Novo é também conhecido por Padre Vaga-Lume, por fazer sinais com os faróis do carro, avisando, assim, os camponeses que algo não estava bem: o Engenheiro tinha sido avistado na bomba da Shell.
 
4. A loja do Regedor
 
            O Regedor, tal como o Padre Novo, não possui nome próprio, pelo que constitui também uma personagem-tipo. A sua loja é um espaço comercial característico das aldeias do interior do país. Tem quase tudo o que é indispensável à sobrevivência das pessoas, desde fósforos a farinha, tudo disposto numa desorganização arrumada que é controlada pelo dono. Por outro lado, a loja está forrada de editais e é bafienta, refletindo claramente o baixo nível de vida da maioria da população portuguesa da época e o estado débil da economia nacional, que, até há pouco mais de um século, era praticamente medieval. Aliás, esta última palavra, ou um seu sinónimo, surge várias vezes ao longo do texto. Observe-se o rol das contas de um agricultor para o seu assalariado em 1861 ou a forma como a administração paternalista controla o salário do trabalhador, dando-lho, mas em pequenas doses, para o manter na sua dependência.
            Simbolizam também este estado de subdesenvolvimento a furgoneta do almocreve que abastece igualmente a povoação; o facto de a loja acumular as funções de junta de freguesia, o que indicia que o estado não disponibilizava meios para a manutenção dignas das suas instituições; o silêncio fechado das viúvas de vivos; a festa de Natal, os cachecóis e os presentes para os filhos dos camponeses-operários, que constituem ainda marcas de um regime paternalista patrocinado pelo Engenheiro, que pratica a “caridade”.
            Para além de representar a versão oficial do contar das mortes, por ter lido os autos, o Regedor também tem uma história subversiva para contar: a criação de uma cooperativa – uma associação de caçadores que conseguiu o direito de exploração da caça na lagoa, o que representa uma viragem no tempo, isto é, um triunfo do povo sobre a classe não produtora.
            A loja é suficientemente sossegada e pachorrenta para permitir conversas que não se podem ter noutros lugares, dado que termos como “política” e “progresso” não podem ser pronunciadas em todo o lado. Como sói dizer-se, as paredes tinham ouvidos e existia sempre o perigo de quem pisava o risco ser denunciado à polícia. Note-se, porém, que estas conversas falavam de política precisamente por a evitarem, mas nomeando-a: “Nada de política, nada que não fosse rigorosamente dentro da lei”.
            Na parede da loja, pode ver-se um calendário com os seguintes dizeres: John M. da Cunha – Grocery Store & Meat Market – Newark, N. J. O objeto remete, assim, para gente que está emigrada noutros locais e que é recordada diversas vezes, o que é confirmado pela frequente passagem de “viúvas de vivos” pelo espaço narrativo.
 
5. O café
 
            A pensão onde está hospedado o narrador situa-se no fim da rua que vai desaguar no largo e defronte àquela está o café, que conquistou alguma freguesia às “tabernas sonolentas” daquele espaço.
            O café é o local de encontro da aldeia, onde todos vão, desde o habitante ao forasteiro caçador. Por isso, o narrador evita esse espaço, para preservar o seu estatuto de homem empenhado na recordação e na observação. Para além disso, é fácil adivinhar o que lá se passa; as conversas entre o Cauteleiro e o Batedor ou entre caçadores são conhecidas. Por outro lado, é lá que se sabem todas as notícias, desde logo porque o café tem uma televisão, e é lá também que o narrador fica a conhecer grande parte da narrativa enviesada do Cauteleiro. Deste podemos, podemos concluir que este espaço funciona para o Escritor como fonte de informação, mas mais ainda como espaço de oposição. Esta personagem é bastante solitária, pelo que, quando dialoga com alguém, o faz normalmente para obter alguma informação, caso contrário é encontrado no quarto, “no seu posto”, como um “guerreiro das letras”.
 
6. A casa da lagoa
 
            Ad usum Delphini, ou seja, “para uso do Delfim”, é a legenda que o narrador imagina para a casa dos Palma Bravo.
            Mas, afinal, o que é o Delfim? De acordo com o dicionário, o delfim é o primogénito, o herdeiro do trono de França. Ora, se jogarmos ao “olho vivo”, podemos fazer a seguinte associação: herdeiro – Palma Bravo – Delfim – Marcelo Caetano.
            A casa da lagoa é o território exclusivo dos Palma Bravo. É a partir deste espaço que algumas personagens se definem, como, por exemplo, a esposa e o criado mestiço, que representa as ex-colónias portuguesas em África. Por outro lado, a casa acompanha a história da família aristocrática, pelo que, através dela, ficamos a conhecer alguns dos antepassados do Engenheiro.
            Anteriormente, a casa era maior, no entanto, após o terramoto da pólvora, isto é, uma explosão que ocorreu quando um antepassado preparava pólvora para ajudar o exército que pretendia manter a situação política que existia, obrigou a que tivessem de a reconstruir mais pequena. O edifício assenta sobre uma adega – o bodegón. A parte superior é constituída pelos quartos, pela cozinha e, mais importante, pelo estúdio, uma grande sala que o Engenheiro mandou envidraçar para melhor ver e ser visto. Abaixo dos jarrões da varanda sem grades situa-se o pátio, o território do Domingos, o criado. Um pouco mais abaixo estende-se a fumosa lagoa.
 
7. A Lagoa
 
            A Lagoa constitui o espaço referencial por excelência: é a partir dela que os camponeses-operários medem o universo. Isto significa que o largo morreu e que a lagoa passou a ser o móbil da luta entre o Engenheiro e os camponeses-operários e que essa luta é ganha por aqueles que Fernão Lopes apelidou “arraia-miúda”. Esta lógica de tensão entre os espaços é o que marca o lugar do homem no mundo. Salazar, quando declarou que quem não estava com ele estava contra ele, demarcou claramente o espaço político de Portugal durante o seu longo consulado. De um lado, situava-se uma minoria, enquanto no outro estavam todos aqueles – aos milhares – que, mesmo não se envolvendo ativamente no movimento antifascista, ansiavam pela democracia, pelo progresso social e, consequentemente, se opunham ao regime.
            Efetivamente, tudo passa pela Lagoa, cujas águas são contraditórias: milagrosas, queimam, são o sepulcro, o desejo, o motivo de pesca clandestina. Por ser simbólica, cada pessoa tem a sua forma particular de a tornar sua, o que faz com que parte do seu simbolismo permaneça sempre nebuloso.
            A Lagoa é “uma ilha de água cercada de terra”, tal como Portugal é uma península cercada de água e, como ela, ligada à vida por uma estreita passagem. A personagem-narrador conhece-a bem, bem como aos animais que a habitam, e concede-lhe algumas das passagens mais poéticas da obra, em suma, ama-a.
            Quanto mais é nomeada, mais carga simbólica adquire, exatamente o percurso inverso ao das personagens, como é o caso, por exemplo, do Engenheiro, que vai sendo descaracterizado à medida que se vai carregando de epítetos: Infante, Tomás Manuel Undécimo, mitómano que repete os gestos dos avós e se apropria dos seus traços de personalidade mais marcantes, o que vinca a sua falta de personalidade. Como foi referido, com a Lagoa sucede exatamente o oposto: quanto mais epítetos lhe são acrescentados (um halo, uma nuvem, queima, é milagrosa, santa, maldita, omnipresente, criada pela pata de um ganso mitológico) mais mítica se torna.
            Palma Bravo defende este espaço com todas as suas forças, pois sente que o seu fim está próximo, isto é, não propriamente a sua existência física, mas o seu modo de vida, o seu poder. Por seu turno, o narrador urde a sua teia para mostrar as várias facetas da sua degenerescência, como o questionamento sobre a sua virilidade, ou o pôr em causa do regime paternalista, como sucedeu na festa de Natal. De facto, a Lagoa é tão importante para Palma Bravo que é nela que deseja fazer a sua campa, o que indicia também a sua avareza atávica, dado que, não tendo um delfim a quem a deixar como herança, não a vai largar mesmo depois de morto, ou seja, não cede o poder a ninguém. Esta personagem é um homem completamente acabado, apesar dos seus trinta anos, visto que, não obstante limitado, lê os sinais do tempo que são claramente desfavoráveis a quem pretenda perpetuar uma circularidade temporal.
            A ociosidade pode causar o esvaziamento do ser, o que, juntamente com a provável impotência ou homossexualidade de Palma Bravo, fazem da sua esposa, Maria das Mercês, uma mulher “inabitável”, logo insatisfeita, infeliz. Para ela, a Lagoa é um espaço disfórico, isto é, difícil de suportar, um autêntico fardo. Aí, vive sozinha, sem ninguém do seu estatuto cultural com quem possa conviver. Deste modo, aliena-se, embora tente desesperadamente iludir a sua existência vazia fazendo tricô para a caridade, com a televisão e as revistas. Quando finalmente procura realizar-se como mulher com Domingos, que “tinha coração de passarinho” e que, por isso, falece após o coito ou ainda durante o ato na sua cama, ela foge, alucinada pelo medo da vingança do marido ou pelo pânico do pecado da mulher burguesa, acabando por morrer numa zona pantanosa da Lagoa, a Urdiceira.
 
8. O espaço interior
 
            O espaço interior possui uma grande relevância em O Delfim, desde logo porque as confidências, as conversas clandestinas, por serem subversivas, só ocorrem em espaços fechados como o bodegón, o carro do Padre Novo e a loja do Regedor. Exemplo disso é a conversa travada entre a personagem-narrador e o Engenheiro no bodegón (capítulo VIII), durante a qual falam de política e de convicções e que vem demonstrar a supremacia argumentativa do Escritor relativamente ao Engenheiro, que se vai tornando previsível, tão grande é a sua estreiteza de vistas e a circularidade do seu discurso.
            A sabedoria do Engenheiro resido no que viveu e numa sequência de provérbios e máximas bastante duvidosos, dado que, para um provérbio que diz sim, existe outro, igualmente válido, que diz não. Esses provérbios e máximas não vão além do senso comum, enquanto a argumentação do Escritor possui uma finura socrática que o faz prevalecer sobre o marialvismo do seu antagonista.
            O bodegón é um espaço exclusivamente masculino, tal como o Bar da Shell, ou o Cais do Sodré. Porém, mesmo dentro do estúdio existem lugares demarcados. Assim, Maria das Mercês senta-se no chão entre as revistas (Elle, Horoscope, Flama), enquanto o marido fica deitado no maple, com um braço pendurado para a bebida que repousa em cima do tapete. Deste modo, a figura feminina situa-se num plano inferior relativamente ao marido e de igualdade em relação à bebida, o que a reduz à condição de objeto “ad usum Delphini”. De acordo com o lema Deus, Pátria e Família, o papel da mulher é servir o homem, zelando pelo seu bem-estar e pelo da restante família. Por outro lado, o Engenheiro é uma figura marialva, isto é, um macho dominador. Como já foi referido, Maria das Dores é uma personagem marcada pela solidão, para a qual também contribui o facto de não ter filhos, daí ter de se distrair e ocupar o tempo com algo: o tricô para a caridade, a televisão, as revistas, a confeção de bolos, o fumar de cigarros nervosos…
            Dentro das quatro paredes da sua casa, Palma Bravo domina todas as conversas, reduzindo qualquer tentativa de participação da mulher ao silêncio, recorrendo ao sarcasmo ou a qualquer tema que lhe seja desagradável, monopolizando-a. Porém, apesar de Maria das Dores ser uma mulher paciente e resignada, são visíveis nela sinais que indiciam uma mudança, como, por exemplo, a descoberta do seu corpo, ou o aconselhar Domingos a não acompanhar o amor ao Cais do Sodré. Maria das Dores tanto questiona a autoridade do homem que a tornou inabitável que acaba por sucumbir ao adultério com Domingos, com as trágicas consequências já referidas. Mas isso sucede num tempo posterior. Por agora, existe uma rivalidade entre a mulher e o criado, pois ela sente que muita da atenção que é dedicada a Domingos lhe deveria ser dispensada a ela.
            Parece clara a existência de um rancor muito profundo em Maria das Dores e dedicado ao criado, uma sombra do marido, já que Palma Bravo entende ser o Pigmalião, ou seja, o criador de Domingos. Talvez por isso ela concretize o adultério com este, o que faz com que o Engenheiro sofra uma dupla traição, o que só parece comprovar a degenerescência da sua força. Esta espécie de triângulo amoroso é particularmente complexa, nomeadamente por o Engenheiro ser impotente, homossexual ou ambas as coisas. Nas palavras do Cauteleiro, “(…) quem muito fornica acaba fornicado”.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Análise de "Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos"


            “Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos” é um quadro da autoria de Angelica Kauffmann, uma pintora neoclássica suíça e membro fundador da Academia Real Inglesa (1769), nascida em Coira, a 30 de outubro de 1741 e falecida em Roma, a 5 de novembro de 1807.

            Na pintura, encontramos, ao centro, portanto em posição de destaque, uma figura feminina, Cornélia, que, vestida de branco (cor que simboliza a pureza), se dirige a uma outra mulher vestida de vermelho (símbolo da paixão, neste caso, das coisas mundanas) e branco. Esta personagem, sentada, exibe as suas joias valiosíssimas; como resposta, Cornélia mostra os seus três filhos, o seu maior tesouro. Deste modo, através desta situação contrastante, a pintora enfatiza o materialismo e a frivolidade da mulher de vermelho, provocando o seu visível embaraço.

            Cornélia, na realidade, era uma figura histórica romana, uma das poucas mães em Roma às quais se credita uma poderosa influência sobre a vida pública dos filhos. Era também conhecida por se vestir de forma menos vistosa do que muitas das suas contemporâneas. Cornélia era mãe dos Gracos, dos quais dizia que eram as suas joias, e, depois de ficar viúva, recusou voltar a casar, preferindo dedicar-se exclusivamente à educação dos filhos, que ficaram conhecidos pelas iniciativas reformistas e que acabaram por provocar o seu fim trágico.

            Em suma, esta obra critica o apego excessivo aos bens materiais e a vaidade feminina, demonstrando-se que há valores muito mais importantes na vida do ser humano, como, por exemplo, o amor maternal.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca


 Dizeres íntimos

 
É tão triste morrer na minha idade
E vou ver os meus olhos penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
 
E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão de morrer em plena mocidade!
 
E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!
 
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem-me baixinho a rir: “Que linda a vida!...”
Responde a minha dor: “Que linda a cova!”
 
            Este soneto, cuja temática gira em torno da morte, pertence à obra Livros de Mágoa, datado de 1919.

            O título da composição aponta para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais (“vou”), quer nos determinantes (“minha”).

            O primeiro verso traduz a tristeza do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde já, perante a ideia da morte como algo triste.

            Os versos seguintes parecem esboçar uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal /i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.

            Pela leitura da primeira estrofe, fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer, dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.

            Os versos 3 e 4, embora contenham vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4). A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada, em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma certeza.

            A segunda quadra abre com a conjunção coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade anunciado dentro dos parênteses.

            Após o discurso parentético, o «eu» prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias” e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no  verso 7, os dedos brancos.

            Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na morte, vai desaparecendo aos poucos.

            Por outro lado, não obstante o Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude; o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a juventude.

            O último terceto precisa a idade do «eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a vontade de viver.

            O soneto termina de forma irónica: “Dizem baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor” e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova” representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o sofrimento, a dor, a angústia terminam.

 

"You have what it takes", A-ha

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa


            Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.

            Na primeira estrofe, o sujeito poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo em que vive, que o oprime.

            Diariamente reduzida a uma coisa, um objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”) – a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito, aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição, nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma realidade que não o deixa respirar.

            A cidade, percecionada, pois, como extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e “sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.

            No final do dia, espera-o um quarto, uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia de quem pensa de modo diferente.

            Habituado a ser dirigido pelo “chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.

            No início da segunda estrofe, autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.

            Isto significa que existe um desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário. De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta de empregado”.

            Apesar de tudo, é no local de trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora), atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do “Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal encarcerado, tal como ele.

            A realidade é que, da janela do escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o quintal e distrai o dono com o seu canto.

            Domesticado como um animal numa jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso. O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver” por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do papel.

            A divisão interior que o conflito entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si mesmo.

            Cansado de não viver, mas da vida desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por razões diferentes.

            Na solidão do quarto, o funcionário “soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.

            Em suma, na segunda estrofe, o «eu» poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de “poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma lírica não participa.

            Apesar da sua condição de funcionário que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”, “namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto, beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu» faltam.

            No entanto, o sonho de libertação é impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o «eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”, sem as quais a vida se resume a nada.

            Em suma, neste poema de António Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético, tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade individual.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Análise do prefácio da segunda edição de Amor de Perdição (1863)


 
1. Fontes usadas para reconstituir a história de Simão Botelho, tio paterno de Camilo Castelo Branco: os relatos da tia Rita, irmã do protagonista, as informações inscritas nos livros de registo da cadeia, uns “maços de papéis antigos” guardados em casa da irmã do próprio Camilo e o testemunho de contemporâneos do seu tio.
 
2. Efeito obtido com a referência a diversas fontes: grande curiosidade e preocupação com a verdade por parte do autor; deste modo, confere veracidade ao retrato e desperta o interesse do leitor.
 
3. Elementos que permitem a identificação entre o narrador-autor e Simão: o parentesco (tio – sobrinho) e a prisão na mesma cadeia.
 
4. Características de Amor de Perdição (segundo o próprio autor): o caráter “triste”, “sombrio” e angustiante; “a rapidez das peripécias”; a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo; a ausência de divagações filosóficas; a linguagem simples e sem artifícios.
 
5. Relação entre a rapidez da escrita da obra (quinze dias) e o estado de espírito do narrador: uma grande ânsia em relatar a história de amor trágica de Simão Botelho.
 
6. Atitude crítica do autor acerca da obra: Camilo considera que Amor de Perdição contém “defeitos” e é um “tolhiço incorrigível”.
 
7. Significado da autocrítica: ao mostrar modéstia, apontando defeitos à obra, o autor pretende captar a simpatia e a adesão do leitor.
 
8. Receção pública: a novela alcançou uma popularidade / recetividade superior a qualquer outra obra do escritor.
 
9. Causas do sucesso: a rapidez das peripécias, a concisão do diálogo, a ausência de divagações. A lhaneza da linguagem, o facto de possuir uma linguagem são e ajeitada à expressão das ideias.
 
10. Referências ao título e subtítulo
 

Título

a caracterização da história de Simão: “triste história”, “trágicas e afrontosas dores”

 

Subtítulo

as referências à família do protagonista e do autor (“a triste história do meu tio paterno”, “Minha tia […] estava sempre pronta a repetir o facto”, etc.)

 
            No entanto, em 1879, no prefácio da quinta edição, embora critique o Realismo, acusando-o de “devassar alcovas, usar calão, espremer opus das escrófulas”, considera Amor de Perdição ultrapassado em relação a uma estética atualizada, ainda que, interiormente, continue fiel ao Romantismo e, no fundo, use a ironia para o classificar. Assim, nesse texto classifica-o como:
. romântico;
. declamatório;
. com aleijões líricos;
. com desaforo de sentimentalismos;
. apresentando as lágrimas nos braços da retórica.

O «stress» sobe


     A resposta é SIM: depois de ler isto, fiquei sob grande stress.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre


            Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.

            O título do texto relaciona-o com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas composições.

            Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão combate o medo.

            A primeira estrofe dá-nos conta de uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina, governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.

            Por que motivo terá o «eu» selecionado estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala. Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.

            Deste modo, podemos deduzir que os ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo, etc.

            A segunda estrofe mostra a atividade e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato. Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e a situação vivida.

            A última estrofe reflete o poder transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é, todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país (Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.

            Deste modo, podemos concluir que este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.

            A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.

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