Português: Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca


 Dizeres íntimos

 
É tão triste morrer na minha idade
E vou ver os meus olhos penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
 
E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão de morrer em plena mocidade!
 
E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!
 
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem-me baixinho a rir: “Que linda a vida!...”
Responde a minha dor: “Que linda a cova!”
 
            Este soneto, cuja temática gira em torno da morte, pertence à obra Livros de Mágoa, datado de 1919.

            O título da composição aponta para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais (“vou”), quer nos determinantes (“minha”).

            O primeiro verso traduz a tristeza do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde já, perante a ideia da morte como algo triste.

            Os versos seguintes parecem esboçar uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal /i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.

            Pela leitura da primeira estrofe, fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer, dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.

            Os versos 3 e 4, embora contenham vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4). A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada, em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma certeza.

            A segunda quadra abre com a conjunção coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade anunciado dentro dos parênteses.

            Após o discurso parentético, o «eu» prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias” e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no  verso 7, os dedos brancos.

            Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na morte, vai desaparecendo aos poucos.

            Por outro lado, não obstante o Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude; o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a juventude.

            O último terceto precisa a idade do «eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a vontade de viver.

            O soneto termina de forma irónica: “Dizem baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor” e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova” representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o sofrimento, a dor, a angústia terminam.

 

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