António Vieira nasceu em Lisboa, em
6 de fevereiro de 1608, numa casa da Rua dos Cónegos, situada perto da Sé, e
morreu na Baía em 18 de julho de 1697.
A sua ascendência é bastante modesta.
Filho primogénito de Cristóvão Vieira Ravasco, natural de Santarém (embora de
origem alentejana), e de Maria de Azevedo, natural de Lisboa, era neto de uma
mestiça pelo lado paterno. Tanto o avô como o pai tinham sido criados dos
Condes de Unhão. O pai, escrivão das devassas dos pecados públicos num tribunal
em Lisboa, servira na Armada antes do casamento. Em 1614 (tinha então Vieira
seis anos), Ravasco, nomeado para o cargo de escrivão na Relação da Baía,
partiu com a família para o Brasil.
Vieira iniciou o curso de
Humanidades, como aluno externo, no Colégio dos Jesuítas na Baía. Neste início
de aprendizagem escolar, o jovem não se teria revelado um aluno excepcional. Só
mais tarde é que os seus dotes, realmente notáveis, vieram à superfície quando,
mercê de uma inspiração providencial, se teria produzido na sua mente o
fenómeno que ficou conhecido como o célebre «estalo de Vieira».
Um testemunho escrito por ele
próprio revela-nos que o prenúncio da sua vocação religiosa se manifestou na
tarde de 11 de março de 1623 ao escutar uma pregação do Padre Manuel do Couto,
durante a qual este sacerdote deu uma vívida descrição dos castigos infernais
que, porventura, aguardariam os pecadores renitentes.
Na noite de 5 de maio desse mesmo
ano, Vieira, que contava então 15 anos, tomou a resolução de se evadir da casa
dos pais para o Colégio dos Jesuítas, onde foi acolhido com regozijo. Logo no
dia seguinte iniciou o noviciado, árduo treino de dois anos pelo qual se
pretendia que a individualidade de todo e qualquer aprendiz a sacerdote,
sujeita a um conjunto de regras inexoráveis, se fosse esfumando numa estrita
disciplina tendente a uma submissão total, tecida de humildade e modéstia.
Animado de sincero e entusiasta
espírito missionário aquando da sua transferência para a aldeia indígena do
Espírito Santo, situada a sete léguas da Baía, logo se empenhou em aprender a
fundo o tupi-guarani, ou seja, a língua geral do Brasil (instrumento então imprescindível
para a comunicação dos catequistas e comerciantes com os Índios), bem como o
quimbundo, língua utilizada com os escravos negros provenientes de Angola.
Após o período estipulado para o
noviciado, António Vieira fez os primeiros votos de obediência, pobreza e
castidade, renunciando à efemeridade dos prazeres terrenos.
Em setembro de 1826, graças aos seus
predicados estilísticos que já então se iam afirmando, foi incumbido de redigir
em latim a Carta Ânua que a Província costumava enviar ao Geral da
Companhia. Nesse relatório anual, além de estarem patentes as qualidades de
latinista de escol (fruto da sua formação cultural no colégio jesuítico), é
também de salientar, pelo interesse histórico de que se reveste, a descrição do
ataque holandês de que foi vítima a cidade da Baía, bem como da capitulação do
opressor nos anos agitados de 1624 e 1625.
Talvez no final de 1626, ou no
início de 1627, começou a ensinar Retórica no Colégio de Marim, cidade
aprazível situada junto ao mar, mais tarde denominada «Olinda a Bela», devido à
sua situação e clima privilegiados. Aí permaneceu e exerceu o magistério durante
três anos, findos os quais rogou aos seus superiores que o deixassem devotar-se
à tarefa missionária, prescindindo por isso do estudo de Filosofia e Teologia.
A Companhia, porém, tinha intenções bem diversas a seu respeito e logo lhe
impôs o imediato regresso à Baía para ali encetar os estudos filosóficos.
Ordenado padre em dezembro de 1634, Vieira continuou a sua obra de missionário,
percorrendo, durante cinco anos, as aldeias baianas mais longínquas, onde procurava
instilar os benefícios da civilização na mente do indígena ignaro.
A par das actividades desenvolvidas
para a conversão do gentio, que denunciavam uma perceção muito aguda dos
problemas sociais, despontavam já em Vieira as virtudes oratórias reveladoras
do pregador que iria seduzir os auditórios de Lisboa e Roma. A 16 de abril de
1638, sob o comando de Maurício de Nassau, os Holandeses, sequiosos de poder,
tentaram novo ataque à cidade da Baía que opôs resistência e conseguiu expulsar
o inimigo. Atento aos acontecimentos, Vieira interveio através da palavra,
suporte de uma dialéctica ágil e sagaz. Nos dois sermões que então proferiu,
vibrantes de entusiasmo pelo triunfo obtido, pressentia-se o tom profético que
iria nortear toda a sua acção.
A notícia da libertação de Portugal
da tutela castelhana, após a revolução de 1 de dezembro de 1640, só chegou a
Salvador em fevereiro do ano seguinte. Acompanhando D. Fernando de Mascarenhas,
filho do vice-rei, Vieira foi enviado a Lisboa, tendo por incumbência apresentar
saudações ao novo rei, D. João IV.
Novos caminhos se ofereciam agora ao
jesuíta. O monarca, confiado na lucidez deste homem e na sua extraordinária
sensibilidade aos negócios de Estado, designou-o seu conselheiro particular e
nomeou-o pregador régio. A 1 de janeiro de 1642 Vieira proferiu o Sermão dos
Bons Anos, na Capela Real. As palavras exaltadas do apaixonado patriota
incendiaram os ânimos e incutiram neles o desejo ardente da luta contra
Castela. Aproveitando os fumos do Sebastianismo que ainda pairavam nos ares,
Vieira projetaria em D. João IV os sonhos de grandeza de uma pátria à espera do
rei predestinado. Contudo, para que a Restauração se consolidasse, era
indispensável lançar mão dos recursos dos judeus portugueses expatriados e dos
cristãos-novos radicados em Portugal. Vieira dirigiu, nesse sentido, diversas
petições ao monarca, entre elas o regresso dos hebreus ao reino e o abrandamento
dos processos implacáveis do Santo Ofício. Homem de rara visão, procurava o
jesuíta com estas medidas atrair o capital necessário para a criação de
companhias de comércio na Índia e no Brasil.
Ia começar para Vieira uma intensa
actividade diplomática. Os anos de 1646 a 1650 vão vê-lo atarefado em missões
políticas em França, Holanda e Itália.
Como embaixador, Vieira não alcançou
o sucesso que outros êxitos anteriores tinham feito prever. De todas as
tentativas saldou-se apenas a criação da Companhia de Comércio para o Brasil,
em 1649. Se suscitara admiradores, havia também semeado muitos inimigos. Acusado
de sugestionar o monarca num assunto de divisão das províncias, que competia à
Sociedade, chegou a ser ameaçado de expulsão da Companhia de Jesus pelo próprio
Geral, que não acatava o facto de um seu membro ter atentado contra as duras
normas de disciplina jesuítica.
Desiludido, partiu em novembro de
1652 para S. Luís de Maranhão, com o propósito de aí reatar as actividades
missionárias.
O Índio era, nessa época, a vítima
apetecida dos colonos que o sujeitavam impiedosamente a um regime de escravidão
semelhante ao do negro. Considerados escravos por direito de conquista,
proporcionavam os naturais uma mão-de-obra excepcionalmente barata e
irresistível à cobiça dos governadores. A defesa da liberdade do indígena
empreendida pela Companhia de Jesus constituía um evidente obstáculo aos
desígnios do branco ambicioso e cruel, empenhado apenas em avolumar os
rendimentos com o metal reluzente à custa do sacrifício e, muitas vezes, da
vida de vítimas indefesas, «peças indispensáveis de uma máquina produtora de
riqueza.
Com o arrebatamento que o
caracterizava, Vieira lançou-se em arriscadas expedições. Tinha imposto a si
próprio a tarefa de proteger os Ameríndios, catequizá-los, criar aldeias para
os recolher, defendê-los das garras vorazes dos colonos brancos. Espírito desprendido
dos bens materiais, prescindiu do ordenado que lhe era conferido na qualidade
de pregador régio para com ele subsidiar a obra. A provisão de 17 de outubro de
1653, favorável à causa da liberdade dos Índios, suscitou o imediato desagrado
entre os colonos que teimavam em não reconhecer aos jesuítas outros direitos
que não fossem os de ordem espiritual.
Na solidão do denso Amazonas, Vieira
ia retomando, nos poucos momentos de lazer que a piedosa faina lhe concedia, a
leitura de textos sagrados. Mergulhado no sonho utópico do Quinto Império, que aflorara nas páginas da sua História
do Futuro, lançava-se na criação de outros escritos proféticos que iriam,
mais tarde, causar-lhe amargos dissabores por parte do Santo Ofício.
Em novembro de 1654, Vieira chegava
a Portugal, após uma curta estada nos Açores, e regressava pouco depois ao
Brasil.
Com o falecimento de D. João IV em
1656, o jesuíta perdia não só o protetor de todos os momentos, cuja indulgência
lhe evitara a expulsão da Companhia em 1649, como também o prestígio disfrutado
nos meandros da corte. Em setembro de 1661, após uma revolta dos habitantes do
Maranhão, foi forçado a recolher-se ao Pará e pouco depois preso e enviado para
Portugal. Sem brilho, amargurado, aparentemente vencido, foi o único jesuíta a
quem em, 1663, o rei negou autorização para voltar ao Brasil: «... excepto o
Padre António Vieira, por não convir ao meu serviço que volte àquele Estado».
António Vieira veio encontrar um
país vacilante cujos destinos, ardilosamente enredados pelo astucioso Conde de
Castelo Melhor, se anteviam pouco promissores. Só, desamparado e contrário à
causa de Afonso VI, o jesuíta estava agora inteiramente à mercê do santo
Ofício. Invocando as Esperanças de Portugal, escrito que Vieira dirigira
ao Bispo do Japão e onde profetizava a ressurreição de D. João IV, obreiro do
Quinto Império português no mundo, o Tribunal apressou-se a exercer sobre ele
as inevitáveis represálias. As suas atitudes intransigentes face ao problema
dos judeus foram também habilmente exploradas.
Após o desterro no Porto e
julgamentos humilhantes, a Inquisição encerrou-o num cárcere frio e húmido de
Coimbra a 1 de outubro de 1665. É então que se entrega com todo o afinco à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício.
A sentença foi proferida em dezembro
de 1667. Condenado à reclusão e sem a possibilidade de pregar, restava-lhe a
companhia da Bíblia e do breviário. Tolhido o movimento mas liberto o espírito,
Vieira aproveitou o silêncio do cativeiro para se devotar às suas congeminações
quiméricas.
No ano seguinte, D. Afonso VI foi
deposto pelas Cortes. A nova regência, confiada ao irmão, trouxe como
consequência a absolvição de Vieira. Descoroçoado, porém, perante a situação
desfavorável criada na corte pelos seus inúmeros inimigos, e também pela ostensiva
indiferença de D. Pedro II, partiu para Itália em 1669 em missão da Companhia.
Em Roma aguardava-o o sucesso. Nomeado pregador e confessor da rainha Cristina
da Suécia, lançava do púlpito poderosos torrenciais de eloquência às massas
aturdidas de admiração. O problema dos Cristãos-Novos continuava a merecer-lhe
o entusiástico empenho de sempre. Colaborou em Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição, relato das
injustiças e crueldades aplicadas às vítimas do Santo Ofício em Portugal, que
causou grande escândalo em toda a Europa. Conseguiu então que o Papa Clemente X
emitisse um Breve em outubro de 1674, pelo qual ficaram suspensos os processos
inquisitoriais em Portugal. D. Pedro II, despeitado porém pela imposição papal,
que prescindia deste modo da prévia consulta régia, e por outro lado receoso da
reacção popular que fanaticamente mais uma vez se iria insurgir contra os
Cristãos-Novos, apressou-se a pronunciar-se contra toda e qualquer reforma em
benefício da «gente da nação».
Também o seu plano para a fundação
de uma Companhia Mercantil para a Índia (à semelhança da Companhia Geral do
Comércio do Brasil), na qual a maior parte do capital seria proveniente de
cristãos-novos, sob condição de insenção de fisco, esbarrou contra a tenaz
oposição do reino. Foi então que os Judeus, desiludidos com a marcha dos
acontecimentos, renunciaram ao «perdão geral» que antes tinham solicitado ao
Papa, limitando-se por ora a um mero pedido de mudança de métodos do Santo Ofício
português. Nessa altura escreveu Vieira o Desengano Católico sobre a Causa
de Nação Hebreia.
Durante a estadia de cerca de seis
meses em Roma lutou ainda debalde pela revisão do seu processo. Em
contrapartida, quando em 1675 regressou à pátria por ordem expressa de D. Pedro
II, levava com ele um Breve do Pontífice que lhe dava a reconfortante garantia
de jamais vir a ficar sob a alçada da voraz inquisição portuguesa.
Foram de sofrimento os últimos anos
que passou em Portugal, num ambiente mesquinho que nada mudara e em que
triunfavam apenas os malabaristas da intriga, da calúnia e da intolerância. A
pretexto de problemas de saúde, Vieira regressou para sempre ao Brasil em 1681.
Na Quinta do Tanque, perto do
Colégio da Baía, encontrou a paz e a serenidade que lhe permitiram dedicar-se à
paciente tarefa de reconstituição dos seus Sermões, já antes iniciada em Lisboa
com o aparecimento em 1679 do primeiro volume. Nomeado aos 80 anos Visitador
das missões pelo Geral da Companhia, foi nessa altura residir para o Colégio da
Baía. Após o mandato, regressou em 1691 à Quinta do Tanque, onde decorreram os
derradeiros anos da sua vida, entre os manuscritos dos Sermões que ia enviando
para o prelo, e a elaboração da Clavis
Prophetarum que não chegou a concluir.
A correspondência com os amigos que
deixara em Portugal (na qual figura uma circular de despedida enviada em 1694)
proporcionava-lhe ainda a ilusão de contacto com os problemas da sua pátria, à
qual dedicou sempre um amor inalterável feito de ternura, desalento,
desesperança e revolta.
Entretanto, o lutador que havia em
si continuava a imiscuir-se nos mais variados problemas locais. Mais uma vez
teve ensejo de intervir na eterna questão de direito à liberdade que
reivindicava para os Índios, quando os paulistas os reclamavam para a
exploração das minas de ouro.
De resto, a Aventura que constituiu
toda a vida do Padre António Vieira reservara-lhe ainda o duro vexame de
acusação do assassinato do Alcaide-mor (ocorrido em 1683 na Baía), de
conivência com o seu irmão Bernardo Vieira Ravasco, então Secretário de Estado.
O processo só terminou passados quatro anos, com a absolvição de ambos os
acusados.
Não obstante a extrema idade e a
invalidez que lhe sobreveio após uma queda, guardou até ao termo da sua vida a
frescura de espírito, a rara lucidez, o domínio, enfim, da palavra e do
pensamento que sempre o caracterizaram.
Morreu com a idade avançada de 89
anos em julho de 1697 no Colégio da Baía, e com ele uma arte inimitável
patenteada sobretudo nos seus célebres Sermões.