O
poema “Pobre velha música” é uma composição poética de Fernando Pessoa, sem
data, publicada na revista “Athena” em dezembro de 1924.
À
semelhança do que sucede noutros poemas do ortónimo, o poeta contrapõe o
período da infância ao presente, considerando aquela como um “período dourado
da sua existência”, o qual, porém, não regressará. No caso da composição
poética em análise, é a “Pobre velha música” que simboliza esse período.
Note-se, a título de curiosidade, que a mãe do poeta tocava piano, daí não ser
de estranhar que esta forma de arte seja presença na sua obra. Aliás, Pessoa
escreveu mesmo um poema que se refere, de forma explícita, à sua progenitora tocando
o instrumento musical.
● Assunto: ao ouvir a músicas, o sujeito poético recorda a
sua infância, e, mesmo não tendo a certeza se foi feliz, solta toda a sua
nostalgia presente ao rememorar esse período da sua vida.
● Tema: a nostalgia da infância.
● Estrutura interna
▪ 1.ª parte (1.ª estrofe) – Nostalgia do
sujeito poético suscitada pela música.
▪ 2.ª parte (2.ª estrofe) – Recordação vaga
e indefinida da infância.
▪ 3.ª estrofe (3.ª estrofe) – Desejo do
sujeito poético de regresso ao passado, motivado pelo estímulo musical.
● Desenvolvimento do
tema
• O sujeito poético é motivado por um estímulo sensorial auditivo que o
emociona e desperta a sua nostalgia, visto que a música suscita em si
recordações da sua infância. Embora seja um período feliz, traz ao «eu» uma
grande tristeza e nostalgia, visto que está associado a uma idade perdida que é
irrecuperável.
• Esta temática – a nostalgia da infância – surge na poesia de Pessoa
como uma fase da vida feliz, pela inconsciência, pela inocência de nada saber
ou pensar, pela despreocupação, pela imaginação. No entanto, trata-se de um
tempo impossível de recuperar, daí ser considerado um paraíso perdido.
• A infância surge sempre em oposição ao presente, constituindo este um
tempo negativo, enquanto aquele é recuperado pela memória como uma época de
felicidade perdida.
• Assim, neste poema, os dois tempos – presente e passado da infância –
estão em equação: o sujeito poético, de olhar «parado» (no presente), chora
quando ouve a música que escutava outrora.
• A dupla adjetivação em posição pré-nominal do primeiro verso (“Pobre
velha”) enfatiza os sentimentos de angústia e a nostalgia do sujeito poético.
Subjetivamente, estes adjetivos mostram que a infância é um tempo longínquo e o
«eu» lírico apresenta-se nostálgico relativamente às vivências desse tempo.
Note-se que, neste passo do poema, está presente igualmente a personificação,
visto que quem é «pobre» e «velho» é o sujeito poético que habitualmente ouvia
aquela música e que, agora, tem consciência de que esse tempo nunca mais
regressará. Daí o choro.
• De facto, a recordação dessa música, embora de um período feliz da
sua vida, aporta-lhe, no presente, grande tristeza, angústia, dor e nostalgia,
pois está associada a uma época perdida, a um paraíso perdido, que nunca mais
regressará, que é irrecuperável. A música é o elo de ligação entre o passado e
o presente.
• A segunda estrofe abre, precisamente, com a recordação do passado. De
facto, o «eu» lembra-se de si enquanto criança que, supostamente, terá ouvido essa
música, deixando no ar a dúvida se realmente a ouviu ou simplesmente a música o
faz, agora, recordar-se da sua infância.
• O sujeito poético recorda, de facto, o passado, mas quem, na
realidade, ouviu a música foi ele, porém noutra idade, noutra fase da sua vida
e com outros sentimentos. O «outro» era o «eu» enquanto criança e ele
recorda-se de si próprio nesse período a escutá-la. Isto só vem confirmar a antítese
passado / presente que percorre o texto.
• Na última estrofe, o sujeito poético revela um desejo desesperado (“ânsia
tão raiva” – v. 9) de regressar ao passado (“Quero aquele outrora!”). Esses
sentimentos de raiva e angústia é acentuado pela exclamação. O sujeito
poético afirma desconhecer se foi feliz na infância, no entanto deseja
veementemente viver de novo esse período da sua vida (“Com que ânsia…”);
todavia, reconhece que tal é impossível, o que gera a sua ira (“tão raiva”).
• Segue-se uma interrogação retórica (“E eu era feliz?” – v.
11), através da qual o «eu» se questiona e destaca a dúvida acerca da
felicidade vivida no tempo da infância, para a qual não tem resposta: “Não sei”.
• Daqui o sujeito poético projeta-se num plano temporal que é
impossível concretizar: ser criança e ser adulto, numa simbiose entre o passado
e o presente. O «eu» lírico exprime o desejo de regressar ao passado, conotado
com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada, mas
questiona-se também se terá, efetivamente, vivido esse tempo de alegria, ou se
esta será apenas produto da sua imaginação.
• O paradoxo do verso 12 procura responder à dúvida: “Fui-o
[feliz] outrora agora”. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (“E
eu era feliz?”) (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa
felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o condão de o fazer
feliz, no presente: “Fui-o outrora agora”. Da associação entre o «outrora» e o
«agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível:
a que permanece na memória e é presentificada através da música. Essa
felicidade, portanto, acontece apenas no pensamento, no instante em que uma
música motiva a memória do tempo da imaginação, da inocência e da
inconsciência.
● Síntese do poema
• A nostalgia da infância é desencadeada pela
audição da música (v. 1).
• A música no
passado é diferente da que recorda no presente (vv. 5-8) – a perceção de dois
modos de ouvir.
• O passado é
lembrado de forma vaga / difusa e duvidosa (vv. 6, 11-12).
• A felicidade
na infância é construída no presente, através da memória, da recordação (vv.
10-12).
• O passado e o
presente fundem-se, sendo vividos em simultâneo (v. 12).
● Retrato do sujeito
poético
• Ao longo de todo o poema, o sujeito poético
revela grande dúvida e incerteza acerca das razões da sua emoção (“Não sei por
que agrado” – v. 2) e da realidade / veracidade dessa felicidade na infância (“E
eu era feliz? Não sei…” – v. 11).
• Situado no presente, o «eu» deseja retornar à
infância, o tempo da inocência, da inconsciência e da ausência da dor de pensar
(vv. 9-10).
• O sujeito poético sente-se triste e irritado
por a infância ser um tempo perdido e irrecuperável (“Com que ânsia tão raiva /
Quero aquele outrora!” – vv. 9-10).
• O sujeito poético, de «olhar parado», chora,
cheio de dor, sendo as suas lágrimas causadas pelo sentimento de perda inexorável
e de infelicidade que o dominam no presente.
• O sujeito poético sente saudade, angústia e
nostalgia da infância, época que deseja recuperar: quando ouve a música,
lembra-se do passado em que também a ouvia, e chora com saudades desse tempo.
• Presentemente, revela abulia, inércia, perda da
vontade, que se traduzem na dor de pensar (“Enche-se de lágrimas / Meu olhar
parado.” – vv. 3-4).
• O «eu» lírico sente uma permanente incapacidade
de ser feliz (“E eu era feliz? Não sei”).
● Estrutura formal
•
Estrofes: 3 quadras.
•
Rima:
-
esquema rimático: ABCB
-
versos brancos alternados com versos rimados cruzados
•
Métrica: redondilha menor.
● A temática da infância
A
nostalgia da infância é um dos temas fundamentais de Fernando Pessoa
ortónimo, partilhado por Álvaro de Campos.
Para
Pessoa, a infância é um tempo passado irrecuperável perdido, o tempo longínquo
em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a
procura de si mesmo e, por isso, não se tinha fragmentado.
Em
Pessoa, a passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e
tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura. Passado e
presente não se completam, antes se opõem; não há uma continuidade entre eles.
Aquele é um tempo de felicidade, alegria inconsciente, enquanto o presente é nostalgia,
ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
A
infância funciona como uma espécie de refúgio, tendo como motivações a
insatisfação com o presente e a incapacidade de o viver em plenitude.
Por
outro lado, a infância é sentida como uma cadeia de instantes que se vão
sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no «eu» poético a
sensação de fragmentação e de ausência de identidade.
Estes
dados geram em si uma visão bastante negativa e pessimista da existência, que o
futuro tenderá a aprofundar, visto que é o resultado de sucessivos presentes
carregados de negatividade.